sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Leituras extraviadas de Extraviário, de Dennis Radünz.

— “o poeta é o cego que, de repente, vê”
Anamnese, Dennis Radünz.

Há pouco tempo tentei escrever sobre Extraviário. Não procurava muito, não. Apenas uma resenhazinha ou um artigo descompromissado. Só uns apontamentos do que me saltou à leitura. O desejo ficou um tempo em suspensão. Simplesmente não sabia como começar. Extraviário é texto que se esquiva do texto. Fugidio, me deixou sem via mais de uma vez. Agora, retomo a tentativa. Quem sabe, dessa vez, ele se deixe capturar.

Extraviário é complexo. Daí provavelmente a minha dificuldade em discursar sobre ele. Extraviário rouba-nos a segurança do terreno comum. É difícil mesmo definir a obra. Por isso intriga. Não é uma leitura fácil, mas seus poemas têm um quê de musicalidade que tornam a leitura menos pesada do que se espera à primeira vista. Parte dessa complexidade se dá pelo fato de que a obra não ensina o leitor a lê-la. Ao contrário, mostra-se uma via inconstante, mudando a abordagem a cada passagem. Varia de experimentações de estilo em Ghost-Writer, tenta desconstruir a forma no quase concreto Música de Inverno, resgata as já consagradas no soneto À inconstância das coisas desse mundo. Extraviário torna-se, assim, experimental. O autor explora a forma, o fonema, o ritmo e a métrica, buscando distorcer uma, reinventar a outra, desconstruir a palavra e desafiar o idioma: “me nom deves de negar parávoas / oh Lengoa Portoglesa Brasiléria”.

Mas, se é difícil definir Extraviário, é na sua sonoridade que a obra ecoa. Com o domínio dos fonemas e aliterações, Radünz explora a oralidade e a musicalidade, envolvendo o leitor numa via de sibilanças orquestradas de forma a explorar a fonética, a dicção e conduzir o leitor através dos sons do poema. O texto torna-se, apesar de intrincado, fluido, liquefeito, mas não menos rebuscado. Torna-se quase música, como em Sobreaviso dos Sobrevividos:

(...)
respiram
alevinos e nenúfares
as vértebras visíveis
os açúcares salobros
sonados e insalubres
(...)

Ou no crítico Última Epístola ao Império:

“E a víbora da raiva – rápida – vibra em toda a relva,
Talvez vestal, talvez, às vezes máquina (...)”

Como em Crescente Fértil:

“o jorro de esperas em que nasce nessa vida a véspera
Sem nenhum duto de onde esvair esse devir de fonte”

Os temas de Extraviário também são vias inconstantes. Radünz flerta com erótico em Idéia com Mulher na Relva:

“intrusos na treva,
inteiriça e tesa,
talvez, erva-casta,
de onde o escuro,
casca, se enxota
e a relva esfolia-se, rosácea,

e

poliniza espaços
desencorpados
entre uns lábios
e úmidos lábios
onde deitou-se,
ereta, até a estrela aberta
(...)”

Beira o político em Última Espístola ao Império: “arrasta pelo ermo o turismo de desastres / nessa indústria do destroço, no rastilho sem a órbita / a serpe do império – talvez, o império serpe”

Canta o lírico em Fim de Fábula:

“se eu houvesse lhe mentido
e sobrasse apenas a saliva em seu ouvido
ou se eu lhe fosse ácido
e deixasse para si o amargo de um amor vencido
se eu houvesse lhe ferido
e restasse ainda a cicatriz em seu vestido
me responderias com um grito de sabor mal dito
como se houvesse lido uma história
de morangos mortos em um livro de hortelã

pores-do-sol, bocas-de-leão
brincos-de-princesa na escuridão
(...)”

Resgata o local, terrivelmente contemporâneo, em História Liquefeita:

“o rio rebenta as suas bordas
à beira de ácidos e de felpas
bordados em linha lânguida
na limalha de água cinzenta:
rio de vires sonoros: lento

mehr licht. milosc. memento mori.”

Extraviário é, enfim, uma via sinuosa. Não oferece um núcleo coeso constante ao redor do qual o leitor possa orbitar. Ao contrário, Radünz parece querer criar justamente um “lugar erradio em que o leitor se desorbita entre dois seres: o si mesmo e o ser no qual tornou-se, atravessado pelo texto”, que cita em Ghost-writer. E esse ser, atravessado pelo texto, torna-se dissociado, esquizofrênico, fora de órbita. Divide-se como propõe o ghost-writer de Radünz. E nessa divisão, algo em nós também se extravia. A certeza, talvez.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Coincidências de Segunda

Com problemas para atualizar por enquanto. Inclusive pro Duelo de Escritores tem sido meio corrido pra postar qq coisa. E entre falta de tempo e de monitores, isso fica mesmo meio parado. Sem muito o que escrever, tb, dedico este post a tirar a poeira destes bytes abandonados e dividir um fragmento da minha leitura online de hoje.

Por coincidência, li hj a entrevista da Urda Klüeger pro Sarau Eletrônico e ela mencionou, rapidamente, a questão palestina.

Por acaso, no blog Saramago, em um post acerca da situação na faixa de Gaza e a questão israleita/palestina, encontrei esta pérola "Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores". Aquela frase que desarma e o leitor e perpetua-se por si própria. E Saramago segue: "Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado".

Em seguida, mais uma coincidência sobre o tema, visitando o ótimo Frases Ilustradas, ao encontrar mais uma grande passagem de Schopenhauer: “As religiões são como os vaga-lumes; precisam das trevas para esplender.”

Os temas se repetem. O erros, aparentemente, também. Como era no princípio, agora e sempre.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A Narrativa no Formalismo Russo

Esse é um artigozinho meio chinfrim que fiz durante a pós. É uma abordagem superficial do Formalismo Russo, em especial na narrativa. Não acho que seja um texto especialmente consistente ou mesmo bom, mas acho pior deixar isso aqui parado por muito tempo. Quem sabe serve para alguém que esteja procurando um ponto de partida.


A NARRATIVA NO FORMALISMO RUSSO
Rodrigo Oliveira

1915. A data marca o que se convencionou chamar Formalismo Russo. Neste ano foi fundado por um grupo de estudantes, entre eles Roman Jakobson, o Círculo Lingüístico de Moscou, criado com o intuito de estudar a teoria literária, explorando novas abordagens no estudo da língua e da literatura, buscando uma nova visão sobre a literatura, a crítica e o fazer literário. Quase ao mesmo tempo, em Petersburgo, surgia a Associação para o Estudo da Linguagem Poética — OPOIAZ. Alguns dos membros do Círculo Lingüístico também tomaram parte deste novo núcleo, como o próprio Jakobson. Além dele, o OPOIAZ abarcou nomes como Boris Eikhenbaum, Victor Chklóvski e Ossip Brik. A associação propôs uma redefinição do objeto dos estudos literários, focando-se exclusivamente ao texto e refutando qualquer interpretação ou influência extraliterária, inclusas aí a filosofia, a psicologia e a sociologia, e elementos como o leitor, o autor e o contexto histórico.

Apesar de não constituírem uma visão hegemônica entre si, o OPOIAZ e o Círculo Lingüístico de Moscou dividiram visões aproximadas acerca do que deveria ser considerado literatura e sua relação com os padrões de crítica vigentes em voga até o início do século XX. Esse contraste com a crítica literária da época cunhou a ambos os núcleos a alcunha de “Formalistas”, ainda que esses intelectuais, e outros influenciados por eles, não assumissem um status de movimento propriamente dito.

Apesar disso, essas idéias críticas e seus ideais textualistas entraram para a história como o Formalismo Russo. Essa nova visão teve uma vida breve, propostas polêmicas, mas um legado de inegável valor até os dias atuais. Leon Trotsky, em seu Literatura e Revolução lega à Escola Formalista a alcunha pouco lisonjeira de “insólito aborto”. Mas em seguida, reconhece: “O trabalho, que os formalistas não temem denominar ciência formal da poesia ou poética, é indiscutivelmente necessário e útil, com a condição de que se deve considerar seu caráter parcial, subsidiário e preparatório”. E retoma afirmando que “Os métodos do formalismo, mantidos dentro de limites razoáveis, podem ajudar a esclarecer as particularidades artísticas e psicológicas da forma”. (Trotsky, 1969, pág. 144-145). A Escola Formalista deve, apesar de um marco histórico importante para a Teoria Literária e alicerce de para diversos movimentos e autores, ser apreciada com olhares cuidadosos, do ponto de vista de uma crítica literária contemporânea.

Mesmo após a dissipação desses grupos e a dispersão de seus membros pelo então ascendente regime stalinista, no final dos anos 20, o olhar crítico textualista do Formalismo influenciou outros pensadores e outros movimentos, como o New Criticism estadunidense e o Estruturalismo. O legado de um olhar mais cuidadoso para o texto e para a arte permanece influenciando críticos, escritores e artistas de diferentes movimentos.


A auto-suficiência do texto
O principal princípio do Formalismo Russo, como das demais correntes textualistas, é o próprio texto. O texto é, não apenas o objeto da crítica, como seu próprio limite. Dessa forma os formalistas restringiram ao texto — seus elementos e estruturas, conteúdo, processo criativo e características — o olhar crítico, excluindo dessa visão o contexto histórico em que o texto foi escrito ou foi lido, a intenção ou a biografia do autor, os processos políticos e sociais vigentes que envolviam a própria obra ou o leitor. Ou, nas palavras de Schnaiderman:

A filosofia, a sociologia, a psicologia, etc., não poderiam servir de ponto de partida para a abordagem da obra literária. (...) do ponto de vista do estudo literário, o que importava era o priom, ou o processo, isto é, o princípio da organização da obra como produto estético, jamais um fator externo”. (Schnaiderman, in Franco Junior, in Bonnici e Zolin, 2003, pág.95)

Esta preocupação centrada e exclusiva ao texto, no processo de criação literária, contrastava com a crítica mais romântica praticada na época, que abordava o autor da obra, sua biografia e outras referências já citadas, como a filosofia e psicologia. Essa nova abordagem pode ser melhor observada se nos detivermos por um momento em alguns dos principais princípios da crítica formalista.

Princípios do Estudo Literário Formalista
Além da exclusividade da materialidade do texto como foco de estudo literário, era preciso definir o que consistia esse objeto de estudo. O que é e o que pode ser considerado literatura? A definição de literatura se apresenta mutante sob a ótica de diferentes correntes literárias. Zappone e Wielewicki citam Williams ao tratar da conceituação e descrição de literatura: “Esse é um sistema de abstração poderoso, e por vezes proibitivo, no qual o conceito de ‘literatura’ é ativamente ideológico.” (Williamns, in Zappone e Wielewicki, in Bonnici e Zolin, 2003, pág.19).

Para o formalismo, esse conceito ideológico que vem cunhar a definição de literariedade de um texto é evidenciado por Jakubinski e Chkloviski. Para os formalistas russos, existe uma distinção preponderante que caracteriza o texto literário. Uma distinção de processo construtivo e de linguagem, entre a linguagem poética e a linguagem prosaica. Enquanto a última é a ferramenta de comunicação cotidiana, com função referencial e utilitária, a primeira tem ênfase na desautomatização da percepção do receptor, exigindo do leitor uma leitura mais atenta e um maior comprometimento com o texto artístico. “O procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção”. (Chkloviski, in Franco Júnior, in Bonnici e Zolin, 2003, pág. 95). Chkloviski destaca a singularização do objeto. A arte, a visão e atuação do artista sobre determinado objeto, teria o poder de torná-lo único, singular. Através da arte, da literatura, o autor poderia tornar singular um dia chuvoso comum, por exemplo. Fazer dele lúgubre ou purificador. Desautomatizando a leitura, um objeto cotidiano passa a ser arte quando visto sob a ótica da linguagem poética, ao invés do simples utilitarismo da linguagem prosaica. O cerne da linguagem poética

é criado conscientemente para libertar do automatismo; sua visão representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de maneira que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração”. (idem, pág.96)

Essa desautomatização da leitura de um texto literário se dá pelo estranhamento do texto. Na ótica formalista, a arte sempre causa estranhamento. O leitor não passa intocado pelo texto. Ele deve, de alguma forma, se comprometer com ele, nem que seja apenas se detendo com mais atenção em sua leitura. Isso implica em um texto artístico mais denso do que a linguagem cotidiana. A função poética torna o texto mais opaco, do que, segundo a teoria formalista, surge a literariedade do texto.

Assim, se destaca o predomínio da forma. O conteúdo apenas, já não basta para esta nova visão da arte. Mais do que com o “o que” ou o “por que”, o estudo da literatura passa a ter uma preocupação com o “como”.

Elementos Primordiais de Análise
Na busca por desvendar esse “como” do processo narrativo literário, Chkloviski (Franco Júnior, in Bonnici e Zolin, 2003, pág. 97) deslumbrou duas estruturas da narrativa sobre o qual se suporta o texto. A Fábula e a Trama. Enquanto a fábula é seria a simples descrição dos acontecimentos da narrativa, a trama é como se dá a elaboração desses acontecimentos na narrativa. Resgatando o parágrafo anterior, enquanto a fábula seria o “o que”, a trama representa o “como” o objeto é apresentado. A trama é, portanto, resgatando os primeiros princípios aqui apresentados, o “estranhamento” da fábula. É a ação poética sobre a mesma.

Dois elementos ainda se destacam na caracterização da narrativa. Motivo e Motivação atuam de forma bastante próxima. O motivo constitui-se no menor elemento que compõe a narrativa. São suas estruturas mais elementares, unidades temáticas que, agrupadas, dariam forma à fábula. A motivação é o sistema que gere e coordena esses motivos. É a forma como eles são dispostos e/ou apresentados na obra. Novamente, o “como” atuando sobre os “o quês” da narrativa. As maneiras como essa motivação coordena os motivos, são separadas em três vertentes por Tomachevski, cada uma de acordo com a proposta a que se destina.

A Motivação Estética ordena os motivos levando em conta a valorização da forma, o estranhamento, a literariedade da obra. A Motivação Realista preocupa-se mais com a verossimilhança do texto. Os motivos introduzidos no decorrer da narrativa devem ser os mais prováveis e plausíveis possíveis. A Motivação Composicional detém-se na composição dos elementos e divide-se em três linhas. A Funcional prega que cada motivo inserido no texto deve ter sua função. Se uma cadeira é descrita em um cenário, por exemplo, é porque terá um papel preponderante, ou ao menos importante, na narrativa. Os motivos são escolhidos por sua funcionalidade, pela maneira como atuarão na cena. Um a segunda linha dá importância à dinâmica da obra, ordenando os motivos para traduzir o tom necessário à narrativa. Por exemplo, o dia chuvoso citado no início desse ensaio. Os motivos podem ser trabalhos a torná-lo misterioso e sombrio, se este for o tom do texto. Uma terceira linha trabalha com a Falsa Motivação, um engodo que, através da ordenação dos motivos, induz o leitor a uma pressuposição para depois revelar-se o oposto.

Por fim, todos esses elementos — Fábula, Trama, Motivos e Motivação — são carregados e percorridos pelos personagens da narrativa. São estes os suportes dos motivos. E a abordagem formalista abarca a caracterização dos personagens em duas vertentes. Direta, quando o narrador ou algum personagem expõe essa caracterização, classificando o personagem como afável, destemido ou manipulador; ou Indireta quando as ações deste personagem no decorrer da obra acabam revelar suas características, sua índole.

Legado
O Formalismo Russo levantou questões polêmicas, em muito refutadas pelas teorias literárias mais modernas. Ainda assim, sua contribuição para literatura persiste no olhar acurado para o texto, para uma escrita e leitura mais aprofundadas. Na atenção aos elementos do texto e na valorização do processo criativo. O Formalismo influenciou e dialogou com outros movimentos ou grupos textualistas e continua dialogando com as teorias contemporâneas, mesmo após a breve e polêmica existência do Círculo Lingüístico de Moscou e da OPOIAZ.

Referências:
BONNICI, Thomas. ZOLIN, Lúcia Ozana; Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá. Eduem. 2003.
TROTSKI, Leon. Literatura e Revolução. Rio de Janeiro. Zahar. 1969.

sábado, 29 de novembro de 2008

Negra - Ilustração Nova



Uma ilustra nova já que não tenho texto pra postar.

Ao lado o, traço à BIC. Clicando nas imagens amplia um pouco.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Pra não dizer que não falei das flores (soterradas)

Eu não ia escrever nada aqui sobre as enchentes em SC. Mas com essa confusão toda, não deu pra escrever nada direito. Como tinha que postar algo pro Duelo de Escritores e eu estava sem tempo, acabei fazendo isso aí em baixo de supetão. E acabou sendo de enchente. Pra não deixar isso aqui parado, estão aí os meus parcos versos de lama sobre Cinismo (mais ou menos).

Escrito na lama
Cinismo é crer que alguém ainda escreva sob as águas.
No entanto, se as águas levam tudo, não podem levar as palavras.
Continuemos, pois, com todo o cinismo do mundo.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Selenita

Selena vivia no mundo da lua. Selena Selenita, lhe chamavam. Selena orbitava a vida, de saia rodada rodando o mundo. Sem nunca tocá-lo. Caminhava tão leve com as sapatilhas brancas de trama xadrez, que parecia flutuar, evitando macular o solado nesta nossa aspereza. Selena, diziam, não era daqui. Não podia ser. Translava pelo mundo em rotação. Girando, girando, bailando, bailando. Sem deixar pegadas. Selena, selenita, se ria de tudo. Se ria do mundo, se ria de todos. Mesmo se riam de si. E como riam. É doida, diziam os loucos. Desocupada, acusavam os ociosos. Tola, criticavam os parvos. Pobrezinha, se apiedavam os miseráveis. E todos no mundo riam de Selena. Mas ela, selenita, continuava sua órbita de vestido rodado e sapatilhas sem meia, impulsionada pelas molas acastanhadas dos cabelos fragrantes. Na face, o riso fresco doutro mundo. O rubor das bochechas, olhos abertos para ver o mundo a girar. Dentro deles, a íris amarelada de quem porta o sol nas órbitas.

Mas Selena sabia que não podia rodar pra sempre. E sob a lua já minguante na noite fluorescente, cruzou a avenida quase sem perturbar as faixas brancas do asfalto. O semáforo ruborizou. Inveja velada. Os faróis pararam para ver Selena passar. Com as sapatilhas brancas, nas pontas dos pés, e com as molas dos cabelos saltando, Selena Selenita saltita à beira rio. E todos viam Selena girar. Selena Selenita, que orbitava o mundo sem o tocar. Rodopiou pela grama sem espantar o orvalho, vestido enfunado pelo vento que corria no rio. E o povo que caminhava, em malhas justas, fones e marcas, apontava Selena. E riam-se dela que ria-se deles. Ria-se ela do mundo que girava porque ela girava. Porque ela por ele tangenciava. E com ela, ria-se a lua, minguante no leito do rio. E o povo parou quando Selena pisou a água, com aqueles pés que mal pisavam a terra. Na margem, deixou a sapatilha molhada, embalada pela marola, flutuando sem tocar o chão. Selena ninguém mais apontou. Só viam seu riso marcado no meio do rio. Selenita encontrou-se com a lua. Selena Selenita, de tanto girar sozinha, escapou pela tangente. E os miseráveis ficaram sem ter de quem se apiedar. Os tolos já não tinham a quem apontar. Os ociosos ficaram sem ter o que fazer.

Selenita se fora. Os loucos diziam, tinha voltado para casa.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Alfa

O Duelo de Escritores acabou de completar um ano. Em comemoração houve uma rodada especial, em que os leitores é que foram os duelistas. O vencedor dessa rodada foi o leitor Jefferson. Como prêmio pela conquista, ele teve o direito de escolher o tema desta rodada. O infeliz escolheu: Revele as técnicas de escrita você usa, mas de uma forma original. Ofensas à parte pelo tema que me deu uma dor de cabeça, aí embaixo vai o resultado. Como o tema pede discussões e diálogos, é bom antecipar que, ao menos para mim, existem algumas (ou várias) técnicas que podem ser usadas. O texto abaixo se refere apenas a uma delas, que vem me... perseguindo... nos últimos textos. Vou parar por aqui antes que fale demais. Taí o texto. E se quiser participar da discussão e da votação, pode tb dar um pulo lá no Duelo de Escritores. O ano II está só começando.


Alfa

Corria com passos largos, quase aos saltos, colina acima. Não ousava olhar por sobre o ombro. Só ouvia o farfalhar veloz na grama às suas costas. O galpão velho e poeirento da ultrapassada oficina tinha a porta aberta. Refúgio débil, não obstante, um refúgio. Cruzou o vão de entrada e arrastou com esforço a porta de madeira pesada. O facho de luz exterior foi minguando junto com a imagem das perseguidoras. Passou o ferrolho, respirou fundo e colocou o ombro de encontro à porta, projetando todo seu peso. Não tardou para sentir o impacto do outro lado. O choque fez a porta tremer, mas ela se manteve firme e imperturbável. Ele, no entanto, não podia dizer o mesmo. Já o tinham atingido de alguma forma, mas não o tinham alcançado. E por hora isso parecia o suficiente.

Podia ouvi-las através das paredes de madeira. Uma luz frágil entrava filtrada pelo teto de vidro sujo. Dentro, em meio a placas de madeira e restos de serragem, serras, martelos e pregos enferrujados sugeriam armas pouco eficazes. Podia praticamente sentir as criaturas contornando a construção, cercando o barracão. Não eram muitas, mas eram implacáveis. Ouvia o roçar incessante contra as paredes, um choque aqui, um golpe mais adiante. E tudo que o mantinha protegido não era mais que uma tênue fronteira de madeira fina.

Um estalido de madeira partida o pôs em movimento. Driblou o ferramental velho a procura de um local melhor protegido. Pôde ouvir a parede se partindo e as invasoras se arrastando para o interior do velho galpão. Ouvia o som correndo pelos corredores de equipamentos ociosos, já podia sentir o cheiro das criaturas se aproximando. Em um canto, dava as costas à parede para evitar um ataque inesperado. Pôde ver surgir os olhos brilhantes, pregados nele e, mesmo sob a luz filtrada pelo telhado, pôde ver as criaturas se aproximando. Tentou esquivar-se da primeira investida, a segunda arranhou-lhe o corpo. Não pôde evitar a terceira. Quando a criatura se afastou ainda podia sentir as marcas deixadas pelas presas. As criaturas se afastaram um pouco, rondando, enquanto ele se prostrava ao chão. Sentia o conteúdo inoculado percorrer-lhe o corpo até o coração. Sentiu quando lhe subiu pelo peito à cabeça. Sentiu-se transformando.

Quando ergueu a cabeça tinha os mesmo olhos brilhantes das criaturas. Tornou-se um pouco como elas. E elas como ele. Quando o bando partiu, ele estava entre elas. Deixou-se levar, selvagem. Correu como um igual. Farfalhando grama, deixando para trás o galpão envelhecido. Quando se ergueu entre elas, era outro. Quando deu por si, elas não mais o perseguiam. Agora, elas o seguiam.

domingo, 9 de novembro de 2008

Playmobil

Eu já fui um Playmobil. E aparentemente um concorrente do Inri Cristo.

Ilustra das antigas, de quando fiz um a camiseta com todos os funcionários da Callier em versão Playmobil.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Micro-conto

Na pia batismal o missionário se banhava. Nu, renasceu puro e molhado frente às beatas descrentes.

Esse micro-conto está inserido no meu último conto no Duelo de Escritores (sob o tema A Missão). Não achei aquele conto muito bom, mas acho q esse micro-conto é interessante. Foi ele inclusive que me levou a escrever o outro. Acho que daqui pode pintar mais alguma coisa um dia.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Vermorréia

Lá vem o vermartista.
Cinzel ao encontro do poeta verborrágico.
Lá vem o verme vermorrágico.

Rastejoscultor, esculpecaminha-me
e xilogravura-me os restos rotos.
Descarnescarneia o cadáver meu,
e assina-me num arroto podre.

domingo, 26 de outubro de 2008

Linguagem

não entendo o que falas
nesta tua língua
mas também, pouco importa
que não é falar que quero com a língua tua

falo-te na minha
língua
falo na tua
língua

na minha língua falo
que me basta a tua
na minha

porque as línguas são assim
as línguas se bastam
e desconhecem idioma

terça-feira, 14 de outubro de 2008

A Condição do Principado

Quando escrevi o Príncipe dos Suicidas, mais do que a própria história, o personagem me interessou. Tem algo o nele que me intriga. Acho que havia (e que ainda pode haver) algo mais, abaixo da supertfície do personagem. O texto todo foi inspirado por construções mitológicas repaginadas, mas assim, sem pesquisa e de cabeça, não consigo lembrar de nenhum correspondente ao Príncipe. Então, pra tentar entender melhor o infeliz, aproveitei o tema do Duelo de Escritores desta rodada pra revisitar aquele texto, aquele personagem. Queria desenvolver melhor a sua psique, buscando um pouco mais de dimensão e profundidade pra ele. Revisitando o texto, acho que pude resignificar alguns aspectos do Príncipe, talvez o próprio personagem. E com o novo visitante (que na verdade já aparecia discretamente no primeiro texto), mostrar um lado complementar da primeira história, tentando ainda, manter o diálogo e a importância do primeiro texto, inserindo o leitor, definitivamente na história e tentando um novo foco narrativo. Sem mais ladainhas segue o texto. Se vc quiser, pode lê-lo tb no Duelo de Escritores, sob o tema Condição, junto com o texto dos outros duelistas e votar no seu preferido até o dia 16.



A Condição do Principado

Ainda te demoraste alguns minutos naquela última frase, com o restante das folhas manuscritas na outra mão. Não a lias mais, apenas a olhavas. O conteúdo, já gravado na memória confusa: “Mas o protagonista desta história, leitor, não sou eu”. Finalmente levantaste a cabeça para a figura do velho, retratada como há pouco havias lido, escorado numa das paredes de tora da casa. Quando falaste, a voz saiu-te baixa, mas firme. Uma constatação que, estranhamente, não foi tão pesarosa quanto esperavas:

— O protagonista sou eu.

O velho, na mesma jardineira parda descrita na carta, esboçou um leve aceno afirmativo de cabeça, mas interrompeu o movimento breve para ir até o fogão de pedra no centro da sala.

— O protagonista desta história já morreu — completaste. O velho não precisou responder.

Ficaste olhando as costas entroncadas e pensaste ainda que não lhe parecia bem um príncipe. Ele lançou-te um olhar ancestral por sobre o ombro, que não pudeste suportar. Desviaste os teus, inda jovens, para a porta, esbarrando-os na enxada afiada ao lado dela.

“Às vezes o grão despenca antes do tempo e não pode ser colhido pela foice. Aí vem a mim.” A passagem lhe veio à mente como se ainda a estivesses lendo.

— Então foi isso que me aconteceu? —Perguntaste à enxada ao lado da porta. Mas foi o velho junto ao fogão que te respondeu, virando-se para ti com as mãos ocupadas por duas xícaras fumegantes de metal:

— A você e a todos que passaram por aqui antes de você. Inclusive a quem escreveu essa carta.

— Inclusive a você? — Inquiriste já com uma das xícaras quentes nas mãos. Não sorveste o líquido. Sabias que poderias esperar até que esfriasse. Já sabias que havia tempo de sobra.

O velho parou à tua frente. Olhos fixos nos teus. Mas perdidos em um tempo muito distante, vago, nublado, como a fumaça branca que lhe escalava as barbas ralas. Ele se afastou, sentou noutra cadeira a alguma distância, inclinando-se para trás, equilibrado em dois pés do móvel, apenas.

— A todos que já estiveram aqui, respondeu.

— E como foi que aconteceu? Com você, quero dizer.

Ele pensou um pouco antes de responder-te. Ao que disse:
— Já não lembro. O tempo que passamos aqui, entre a névoa, apaga o aconteceu antes. Esqueci. Você também vai esquecer. Já está acontecendo.
Ele tinha razão, percebeste. A névoa que se instalava do lado de fora da casa no meio da mata, também se instalava em tuas memórias, já diáfanas, nada mais que um vulto acinzentado.

— E antes de você, havia outro Príncipe que o recebeu?

— Não — respondeu-te o velho — eu fui o primeiro dentre nós. O primeiro dentre todos. O primeiro grão a se precipitar antes da colheita. O primeiro a se apaixonar por ela. A desejar o beijo prematuro. Eu não podia esperar. Não havia tempo. Não queria esperar. E me precipitei. Quando saí das árvores, avistei o mesmo trapiche que você encontrou. Fui até o mesmo homenzinho que lhe trouxe aqui. E, pela primeira vez, eu a vi. A pele queimada, os olhos vibrantes, os ombros nus. Eu quis ir até ela, mas o homenzinho não deixou. Disse que eu não poderia fazer a travessia. Que ainda não era hora. Eu não podia ficar ali, meu nome não estava na lista, ele dizia. Não ainda. Tudo o que me restou foi esperar. Eu procurei um lugar pra esperar, aqui entre as árvores. Esperei até não agüentar mais essa névoa. Então construí essa casa. E continuei a esperar, aqui. Sozinho. O único da nossa espécie. O primeiro. Enquanto esperava, a lembrança dela me fazia companhia. Das mãos da camponesa, dos ombros nus de pele tisnada. Da cor do vestido, do jeito de olhar. Até que percebi que já não esperava mais a travessia. Esperava apenas ver a camponesa de novo. A Dama da Colheita. Um dia o homenzinho me achou aqui. Disse que tinha chegado minha hora. Que eu já poderia fazer a travessia. Finalmente eu poderia revê-la! Quando cheguei à margem, ela me recebeu. E conversamos por um bom tempo até a chegada da balsa. Mas quando chegou o momento, percebi que apenas eu faria a travessia. Ela teria de ficar ali. Eu jamais a veria novamente. Foi quando eu tomei a decisão. De ficar, para sempre, à margem. De jamais completar a travessia. De, para sempre, caminhar entre a névoa. Só pela chance de, vez por outra, tornar a revê-la, mesmo que não possa tê-la. O homenzinho não gostou. Disse que meu nome estava na lista. Que eu tinha que cruzar. “Nenhum nome na lista pode ficar, ninguém fora dela pode cruzar”, ele repetia. Mas outros como eu viriam. Outros como nós. Suicidas. Condenados a esperar. Nomes fora da lista. Alguém deveria aguardar por eles. Eis que me tornei o Príncipe dos Suicidas. O Portador da Enxada. Aquele que recolhe os grãos que se precipitaram antes da colheita. Que coleta com a enxada aqueles que a foice não alcança. Todos aqueles que se apaixonaram por ela, mas que jamais poderão a ter. Esse é o nosso Desígnio.

— Nosso? — Ainda perguntaste preocupado, tirando o velho dos seus desvarios. Ele respondeu, com um suspiro, ainda olhando as brumas pela janela.

— Não, nosso não. Eles, e você, todos cruzarão, a seu tempo, o rio. Ninguém pode viver à margem, sem completar a travessia. Apenas eu. À margem, entre as névoas, esperando, para sempre. Essa é a Condição. A Eterna Condição. Não há nós. Não para mim. Jamais haverá.

Em silêncio, guardaste a carta que leste, de outro que já estivera onde agora estavas. E compreendeste, olhando o líquido fumegante que embaçava os olhos do Príncipe. Há tempo. Há tempo de sobra. Tempo é tudo o que tem, o Príncipe dos Suicidas.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Bibliogamia. Da adoração ao tesão por livros.

Antes de partir para o ensaio, é preciso atentar para alguns pontos. O texto a seguir traz apenas algumas reflexões descompromissadas. O leitor pode, então, encontrar imprecisões históricas ou mesmo reflexões equivocadas por falta de pesquisa. Esse texto é base para outro diálogo que pretendo, mas adiante, tratar aqui. Por hora ele ainda está em um estágio muito embrionário na minha cabeça e creio que as discussões que possam vir a surgir a partir deste ensaio possam desenvolver melhor a idéia. Portanto, comentários, correções e observações são, como sempre, bem vindas. Ao texto, pois:



Bibliogamia. Da adoração ao tesão por livros.
Reflexões sobre a importância do suporte para a literatura.


“O livro é um animal vivo”.
— Aristóteles

A relação do leitor com a narrativa ou, ainda mais primeiramente, com o texto, passa, invariavelmente pelo suporte deste último. Divido estes suportes em duas vertentes: o Suporte Intangível e o Suporte Tangível. No primeiro grupo, incluo os códigos simbólicos e lingüísticos que trazem e codificam o fato narrado ou a idéia expressa. Em geral, compreendem formas de alfabeto e de idiomas, que não interessam especialmente a este ensaio. No segundo grupo, de Suportes Tangíveis, incluo os suportes mais palpáveis, mais materiais, dos quais os suportes intangíveis fazem uso para chegarem até nossas mãos — ou olhos e ouvidos. Neste caso, apresenta-se uma gama de possibilidades: desde pixels numa tela brilhante, passando por lâminas de celulose banhadas em offset, páginas manuscritas amareladas nos códices antigos, peles de animais e compostos de plantas, até as pedras e paredes de templos ou cavernas(1).

Com o desenvolvimento e surgimento de novos suportes, que marcaram a história do livro e da própria sociedade universal, é natural que a relação do leitor com os textos tenha também se desenvolvido e se alterado com o decorrer destas mudanças. O livro ou, antes dele, o texto, tem sua relação com o leitor através do suporte. E é graças a esse suporte que a nossa relação com os textos mais diversos passou da adoração ao tesão. Novas plataformas e suportes trazem novas idéias a esse namoro e novas posições para a nossa bibliogamia.

O primeiro encontro do homem com a literatura escrita, em um Suporte Tangível, deu-se provavelmente sobre a parede de alguma caverna. A partir de elementos pictórios e icônicos, começou-se a criar uma representação simbólica(2) para transmitir as narrativas e idéias. O contato com esse texto, escrito sobre a pedra, era frio, áspero, imóvel. A posição de leitura era não era cômoda, não era prático (apesar de breve) o ato de ler. Esse primeiro encontro do leitor com o texto escrito estava ainda muito longe da relação atual, muito mais próxima e afetiva. Ainda assim, um certo fascínio já começava a compor o triângulo amoroso entre autor, texto e leitor. Começa, de forma tímida, o flerte da literatura.

Na antiguidade, o texto verbal escrito ganha corpo e se desenvolve. Os códigos usados são mais versáteis, muito mais apoiados em símbolos do que em ícones, permitindo um maior envolvimento do texto com o leitor e mais recursos ao autor. O suporte também se desenvolveu. Os textos deixaram a imobilidade das paredes das moradas e a narrativa ganhou um pouco de mobilidade nas placas e tabuletas de argila ou pedra. O leitor pode finalmente abraçar o texto. Apesar do peso dos suportes deste período, da dificuldade de se esculpir o texto sobre a pedra e cortar as tabuletas em tamanhos adequados, apesar da fragilidade das placas de argila sob impacto, os textos ganharam um suporte que permitiu mais interação na sua relação com o leitor. Mesmo com certas dificuldades, o namoro dos raros leitores com o texto torna-se mais palpável. O toque já é menos áspero e o flerte torna-se menos difícil. No entanto, o próprio suporte ainda dificulta o acesso à leitura e são poucos os que têm esse privilégio. Para a maior parte do público, o texto é ainda algo distante, uma presença difusa, cercada de ritos e cuidados, apenas acessível para uns poucos escolhidos. A literatura começa a tomar um ar quase sacro. E o que começava como um namoro tímido, passa a encaminhar-se para a adoração.

Ainda na antiguidade, a partir do século II A.C, a literatura ganha muito em mobilidade. As tabuletas minerais dão lugar aos papiros, suporte vegetal, feito à base de uma planta que era moldado em longas lâminas, que ultrapassavam os cinco metros de comprimento e poderiam ser enrolados em formato de canudo, facilitando o transporte e armazenamento. A figura do escriba já está bem estabelecida e a literatura começa a ganhar importância cada vez maior, ainda que com foco nos aspectos historiográficos ou de exaltação de divindades ou governantes. O relacionamento do texto com o leitor continua a ser de uma divindade adorada, não um parceiro a ser conquistado, de um relacionamento afetivo. A emoção envolvida restringe-se ao medo, à surpresa, à adoração. Além disso, o fato do contato do público com o texto escrito só ocorrer através de escribas e sacerdotes em rituais religiosos, não ajuda a reverter esse quadro. No entanto, o suporte já se mostra mais amigável. Mais leve, menor, mais agradável ao toque. Ele aceita mais facilmente as palavras do autor, relaciona-se de forma mais prazerosa com este. Já permite uma leitura mais agradável, mais confortável. Tanto na precisão dos tipos escritos, quanto na própria postura de leitura.

O papiro é posteriormente substituído pelo pergaminho. O vegetal dá espaço para o couro animal. O pergaminho dá ao texto uma durabilidade superior, permitindo que a relação do leitor e do texto perdure por mais tempo. Ainda que o relacionamento esteja ainda muito mais próximo de uma relação deus-adorador do que de amantes, a possibilidade de um relacionamento de longa duração já se torna aceitável.

O pergaminho é, pelos gregos e romanos, aos poucos, substituído pelos códex. As lâminas são agora agrupadas em volumes, não mais enroladas. Nos primeiros anos da Era Cristã, o suporte da literatura começa a tomar as formas que conhecemos hoje. O leitor passa, a partir de então, a relacionar-se com o livro. Mas não é ainda que o relacionamento se torna mais íntimo. Os códex são ainda frágeis, pesados, grandes e incômodos. A leitura normalmente ainda chegava ao público através de um terceiro, de um leitor “oficial”. Mas o suporte permite, mesmo em leituras públicas, uma proximidade um pouco maior do público com a literatura, e o texto parece, aos poucos, mais próximo dos leitores.

Como o livro era de acesso, normalmente, restrito aos indivíduos de grandes posses — nobres, clero, oligarcas — passa a ser também um símbolo deste status (além do poder de controle da informação e da História). Surge, mais evidentemente, o desejo pelo livro. Ao menos nas elites, a adoração começa a dar lugar a um relacionamento mais pessoal, mais próximo. O flerte parece querer retornar entre leitor e literatura.
Se, por um lado, a Idade Média Ocidental exaltou o aspecto da adoração do livro como algo sagrado através da influência do poder eclesiástico, por outro, começa a surgir a literatura vernacular européia, com o latim cedendo espaço para os idiomas nacionais. Enquanto a Igreja declara o livro como objeto sagrado ou profano, surgem esforços que dariam ao povo o poder flertar com o livro como um igual. Leitor e texto recomeçam a falar a mesma língua. E com a proibição da Igreja sobre muitas obras, o flerte começa a adquirir o sabor de romance proibido. Nesse ínterim, o suporte também ganha uma nova plataforma. O pergaminho passa a ser substituído pelo papel que, combinado com os monges copistas, amplia a produção literária (no que diz respeito à quantidade de volumes) em níveis até então não alcançados. Os leitores, entre adoração e desejo, passam a ter mais pretendentes. E entre adoração e desejo, entre a deidade e o amante, o livro começa a tomar ares de fetiche.

No ocaso da Idade Média, do outro lado do globo, surge a máquina chinesa que suplantaria o volume de produção dos monges copistas europeus. A prensa de tipos móveis oriental, feita em madeira, possibilitou um volume de produção em muito superior aos dos monges ocidentais. Com a nova tecnologia e o suporte adequado, os livros começaram a se espalhar devagar pelo globo.

Surgida no século XV, a prensa de Gutenberg está para a prensa chinesa como o pergaminho está para o papiro. A prensa de Gutenberg, com tipos móveis de metal, ao contrário dos de madeira chineses, propiciava a reutilização e maior precisão de impressão. Aliado a uma nova distribuição de poder na Europa, a invenção propiciou uma enxurrada de livros no continente, aumentando a produção de volumes e de criação literária. O livro, já envolto em vestes de fetiche, vai tomando formatos e acabamentos mais agradáveis. Leves, resistentes e práticos; de fácil leitura, armazenamento e transporte, o livro chegou às mãos dos leitores. O namoro distante passou a ser mais próximo e passional. O leitor podia envolver o livro e deixar-se envolver por ele. O relacionamento passou a ser mais íntimo. As grandes leituras públicas foram trocadas pelas leituras solitárias. Leitor e literatura, finalmente, conseguiram ficar a sós. O leitor conseguiu, em fim, levar o livro pra cama. Literalmente. E a adoração passou a tesão. De divindade, o livro passou a amante.

Hoje, com a demanda crescente e a ampliação do mercado editorial, as edições comemorativas, as reedições de clássicos ou bestsellers, as edições de luxo e as grandes tiragens apimentam ainda mais a relação entre leitor e literatura. O aspecto de fetiche do livro ganha ainda mais destaque e estimula ainda mais o desejo do leitor pelos volumes.

Mais recentemente, já a partir do fim do século passado, começam a surgir os e-books e os livros passam às telas dos computadores. Já tive a oportunidade de ler alguns livros de diferentes gêneros nessa nova plataforma. Livros relativamente curtos, livros bem mais longos, narrativas ficcionais ou ensaios científicos/filosóficos/não-ficção. Independentemente do caso, notei uma leitura mais lenta e mais cansativa na tela do que no papel. A mobilidade dos desktops também não é muito superior à das tabuletas de argila, e os laptops e notebooks suprem apenas em parte essa desvantagem. O peso é igualmente mais incômodo que o dos livros. A posição de leitura é bem menos versátil e, por conseqüência, menos cômoda que a dos livros de papel. O armazenamento, no entanto, é inúmeras vezes superior, visto que é mais fácil encher um HD de e-books do que uma estante de livros (tanto física quanto financeiramente). Mas, em contrapartida, se ficou mais fácil a aquisição e a guarda das obras, o leitor já não pode mais tocá-las, envolvê-las, sentir o cheiro das páginas, a textura das fibras, já não pode mais envolver o amante como antes o fazia. Em tempos de bibliogamia virtual, o fetiche perde força. Não seria então, em oposição à maior disseminação e acesso às obras, o e-book um retrocesso no relacionamento do leitor com livro? Esse novo suporte, ao mesmo tempo em que aproxima, distancia o leitor da obra. Teria este fenômeno a peculiaridade de promover um maior número de relacionamentos leitor-livros, mas de forma mais superficial, como muitos relacionamentos virtuais? Visto que este é um texto originalmente virtual, o que diz isto a seu respeito? Qual a sua relação, leitor, com esta Palavra? Acaso seria ela mais sedutora sobre o papel?

Com o avançar tecnológico, não duvido, questões como estas serão revisitadas. Os novos suportes, como modelos de PDAs, palmtops, celulares e e-book readers, as pesquisas na área de e-papers, rumam para retomar o relacionamento, estreitando novamente os laços com o leitor, buscando novamente dividir os lençóis com ele. Não creio, de forma alguma, que esse namoro corra qualquer risco. Mas a impressão que tenho é que essa é uma daquelas pequenas crises no relacionamento. E esse texto, ao que parece, pretende discutir a relação. Eu, leitor promíscuo que sou, levo pra cama livros tradicionais enquanto flerto com outros pelo computador. No fundo, talvez, muito além destas reflexões e independentemente do suporte, o importante seja não deixar faltar tesão.


Notas:
(1) É preciso também incluir, junto aos Suportes Tangíveis, o ar. Através do diálogo, a literatura oral nos chega através deste suporte, por ondas mecânicas, físicas, tangíveis (que difere do Suporte Intangível do idioma ou das palavras, por exemplo). Apenas optei por não incluir esses pensamentos nos exemplos acima para evitar alguma confusão por parte do leitor e pelo fato de que este ensaio pretende se deter mais sobre a literatura escrita.

(2) Não vou me deter sobre a tríade Índice, Ícone e Símbolo aqui, ou sobre Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, mas a importância da transposição do uso de ícones para o uso de símbolos pode ser melhor apreciada sob a luz das teorias semióticas de Charles Sanders Peirce.

domingo, 5 de outubro de 2008

Quase

Queria, impreterivelmente, começar seu menor conto pela maior palavra. Quase conseguiu.

Esse foi pro Duelo. A idéia era desenvolver um conto usando menos de 100 caracteres. Curtinho, só pra não deixar o blog parado por muito tempo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O Príncipe dos Suicidas

O protagonista morre no final. Agora que já sabe o final, não perca tempo, o leitor, em demorar-se na leitura destas páginas.

Quanta bobagem! Se tempo é o que mais tem o leitor! Pois, decerto, se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Enquanto espera, pois, deixe que esta história lhe faça companhia. E já me corrigindo, o protagonista desta história não morre no final. O protagonista desta história morre no começo. O protagonista desta história já morreu.

Quando cheguei, o sol brilhava fresco. Como o sol que surge depois de umas horas de chuva num fim de tarde de meia estação. O capim baixo emanava também um cheiro fresco, e brilhava como se borrifado por gotas de água pequenas demais para serem vistas. Uma brisa leve passava assobiando baixinho por entre as folhas altas das árvores, não muito atrás de mim. E um rio brilhante e calmo atravessava o prado que se estendia a minha frente. Encaminhei-me em direção ao rio até vislumbrar as figuras aguardando à sua margem. Um trapiche de juncos pequeno se projetava da margem às águas, que corriam com um gorgulhar confortante.

Na margem, umas poucas pessoas aguardavam de pé junto ao trapiche. Como não divisava nada além da mata atrás de mim e das pessoas na beira do rio, achei por bem aproximar-me. Um homem baixo, de cerca de um metro e meio, já meio curvado, conferia com uma prancheta um punhado de papéis. Tinha vestes simples mas muito bem cuidadas. Uma calça de jeans cáqui, uma camisa de flanela da mesma cor e um colete de cor crua, de couro ou lona. Uma boina cobria os cabelos meio desgrenhados. Atrás dele, um grupo de pessoas aguardava junto ao trapiche. E ao lado delas, de costas pra mim e admirando a outra margem, uma jovem de corpo magro, com os ombros bronzeados um tanto pontiagudos à mostra, vestia um vestido xadrez simples mas bonito, com uma barra branca bordada. Os cabelos castanhos, meio ondulados, amarrados por uma fita vermelha. A profissão campesina era denunciada por uma grande foice de campo na qual se apoiava e pelo cesto de vime à tira colo.

O homenzinho me olhou de baixo para cima quando me aproximei e umedecendo os lábios murchos com a língua, começou a folhear os papéis na prancheta, retornando o olhar para mim vez por outra.

— Bom dia... — comecei. Mas ele logo me interrompeu com um balançar negativo de cabeça.
— Não, não, não. Você não está aqui.
— Como?
— Não está, não está! — Repetia o homenzinho, como que contrariado.

E me deu as costas indo falar com a camponesa da foice. Só quando ela se abaixou para falar com o homem que percebi a sua altura. Era alta, talvez até um pouco mais alta que eu. Ela ouviu o que ele tinha a dizer, levantou-se, me pareceu que ficou uns segundos a pensar, olhando para o nada que seguia o curso do rio. Quando ela virou-se para mim, os olhos levemente puxados e pequenos, muito claros, de íris quase branca, contrastaram com o tom bronzeado do rosto. Os lábios finos não disseram nada. Mas o olhar me petrificou. Pude sentir os músculos do corpo retesando, a boca seca, o coração pulsante. Ela virou o rosto para novamente olhar o pequenino e, sem responder, balançou a cabeça em negação. O pequeno homem soltou um suspiro profundo, contrariado entregou a prancheta à camponesa, e veio até mim. Ela me lançou um último e olhar e depois se deixou perder na visão das árvores da mata, que corria atrás de mim e seguia o rio ainda nesta margem.

— Não, não, não. Você não está na lista. Desculpe-me. Não está na lista. — disse o homenzinho falando rápido.

Caminhando devagar, me tomou pelo braço e me guiou o caminho.

— Vamos, vamos. Você não pode passar. Ainda não está na lista. Vamos, vou mostrar-lhe o caminho.

— Onde estamos? — Perguntei curioso.

— Estamos no rio. — Me respondeu o meu novo guia.

— E o que tem além dele? — Insisti.

— O outro lado.

Antes de perder de vista as figuras que aguardavam, pude ver uma pequena balsa se aproximando do trapiche. Um homem sem camisa manobrava a embarcação com uma longa vara, até encostar contra a construção de juncos. As pessoas que aguardavam subiram na balsa que se afastou da margem, deixando lá apenas a camponesa com a foice. Àquela distância eu não podia divisar qualquer expressão no seu rosto, mas podia ver que ela mantinha os olhos na balsa.

O homem me guiou por um caminho de terra adentrando nas árvores. As copas altas balançavam com o vento e o cheiro agradável de mato fresco continuava. Mas o sol já não conseguia atingir o solo. Caminhamos por um bom tempo, até não ser mais possível ouvir o rio. E continuamos andando em silêncio. O homenzinho, claramente contrariado, volta e meia balançava a cabeça de um lado para o outro. O sol já não se via mais entre as árvores e um nevoeiro bem leve já se fazia presente. Caminhamos até chegar a uma casa de toras no meio da mata. O homenzinho foi até a porta e bateu duas vezes. Sem palavra, deu as costas e foi retornando pelo caminho, passando por mim. Virei-me para chamá-lo quando ouvi atrás de mim a porta se abrindo.

Um velho entroncado, metido numa jardineira parda e com uma camisa vermelha de mangas arregaçadas, me olhava apoiado no vão da porta. Tornei a olhar para o homenzinho só para vê-lo desaparecendo devagar na neblina fraca. Tornei a encarar o velho e percebi que ele mascava algo que, pelo cheiro, parecia fumo. Ele ficou me olhando por um tempo, com aquele maxilar de barba mal feita dançando pendurado, como que ruminando mais do que o fumo. Ruminando algo na cabeça. Limpou as mãos na jardineira, deu uma pigarreada e voltou-se para dentro da casa, lançando a voz rouca por sobre o ombro: “Feche a porta ao entrar”. Hesitei por uns segundos mas, dadas as circunstâncias, decidi obedecer. A casa tinha as paredes de toras e o teto alto, de madeira. Tinha várias cadeiras, almofadas e sofás espalhados, cobertos de forma rústica. Havia um fogão de pedra no centro e um duto acima dele, que se perdia no teto. Ao lado da porta pela qual entrei, uma grande enxada de cabo longo estava encostada à parede. Ao lado dela, uma pedra de amolar. Não vou me deter por demais na descrição do lugar, visto que o leitor obviamente não carece de tais detalhes. Detenhamos por tanto na conversa que tive com o meu interlocutor, da qual o leitor, talvez, não saiba.

O velho me serviu uma caneca de metal com uma infusão qualquer. Estava quente como os diabos e tive que apoiá-la na mesa enquanto me sentava. O velho sentou-se numa poltrona um pouco distante de mim.

— Não está do seu agrado? — Perguntou ao me ver depositar a caneca na mesa.
— Não é isso — respondi — está quente demais para segurar.
— Espere esfriar — ele retrucou, sorvendo o líquido fumegante da própria caneca.
— Pelo visto vai demorar um pouco. — Tentei dar um tom de brincadeira na voz, para aliviar o clima. Ao que ele respondeu só levantando os olhos para mim.
— Não tem problema. Há tempo de sobra.

Depois de uns minutos de silêncio, enquanto eu tentava tomar o chá e identificar o sentido daquele olhar, ele quebrou o silêncio novamente.

— Então ela não te deixou passar, não foi?
— Como?
— Para o outro lado. Ela não deixou que você cruzasse o rio.
— A camponesa?

Ele deu uma risada contida, mas aparentemente sincera, e rebateu.

— Sim, sim. A camponesa. A mulher da foice. Ela.
— Ela?
— Sim, ela. Você sabe. Diga. Vai fazer bem pra você.

Eu não havia reparado na corda pendurada de uma das vigas do teto. Aparentemente, nem meu anfitrião, que seguiu meu olhar com interesse.

— Ah, sim... Limpo. Você deve ser organizado. Já é um clássico, nunca sai de moda.
— ???
— Vamos, você pode se lembrar, você já sabe. O choque não é grande. Nunca é. Porque a escolha já foi tomada. Só falta a constatação.

Uma sensação estranha me inquietava naquela voz rouca. Um certo aperto no peito, como se o coração estivesse na garganta. Senti os meus pés balançarem na cadeira, dançando no ar. Uma cadeira. Sim, uma cadeira. E a corda. E uma viga e... sim.

Sim...

Quando retornei meu olhar para o velho, ele já estava quase sobre mim, bem próximo à mesa. Olhando-me de cima com olhos baços. Estranhamente não me senti chocado. Era como se eu já soubesse. Eu já sabia. Ele já sabia.

Olhou para a minha xícara que atirava redemoinhos de vapor ao ar e me disse de novo: “Há tempo de sobra”. Tornou a me olhar e falou.

— Ela não lhe deixou cruzar o rio.
— A mulher da foice. — Respondi. Ao que ele apenas repetiu, devagar, para que eu sentisse as palavras: “A mulher da foice”.

— Porque ela não me deixou cruzar?
— Há tempo de plantar e há tempo de colher. Ainda não é chegado o tempo de colher. Não para você. E a Dama da Colheita nunca ceifa antes do tempo. É preciso que o grão esteja maduro.
— Se não chegou o tempo da colheita, porque eu estou aqui?
— Às vezes o grão despenca antes do tempo e não pode ser colhido pela foice. Aí vem a mim.

Caminhando em direção à porta, ele continuou:

— Quando ele cai à terra, a foice da Dama não pode mais alcançá-lo. Mas eu posso.

Ele disse, acariciando o metal afiado da enxada com certo orgulho.

— Quem é você? — Perguntei receoso.

— Eu sou aquele que cata os grãos que se precipitaram antes do prazo. Eu sou aquele que os guarda até a hora da colheita. Eu sou aquele que acolhe os grãos do Acaso, aqueles que burlam o Desígnio, aqueles que tomam a decisão que não lhes cabe. Eu sou agora o seu tutor, o seu Senhor, seu guardião. Eu sou o Príncipe dos Suicidas.

Mesmo, no fundo, sabendo o que acontecera, o que eu havia feito, a calma que até então me tomava ameaçou me abandonar frente a emoção e orgulho daquele velho, com o braço peludo agarrado à enxada, que mesmo metido naquelas roupas comuns exalava um ar respeitoso. Logo a fraqueza se transformou em vergonha frente àquela palavra. “Suicida”. Não pude evitar baixar os olhos. O passado e o que eu havia deixado para trás já estava por demais nebuloso para que eu tivesse qualquer lembrança clara, mas aquela palavra me soava, de algum modo, obscena.

— Agora você baixa os olhos? — Ele perguntou para logo continuar:

—A vergonha não está no que fez, mas, talvez, no porque o fez. E aqui, nem isso importa mais. Ficou para trás. Além do que, por essa mesma casa já passaram muitos. Alguns grandes, outros ordinários. E muitos ainda virão.

— E agora o que eu faço?

— Agora você espera. A sua hora não chegou. E você só pode completar a travessia quando ela chegar. Mas agora, ao invés de aguardar onde você estava, você vai aguardar nesta casa.

— Mas eu vou completar a travessia?

— Sim, quando chegar a hora, a foice sempre faz a colheita.

— Então tem esperança? Então eu ainda posso ir pro céu?

— Céu!? Ah ah ah! Tudo o que sei é que ela vai permitir que você atravesse o rio. E além dele, está o outro lado.

— Então Deus aceita os suicidas?

— Todos os grãos acabam sendo colhidos. De um jeito ou de outro. Além do que, Deus, se é assim que você quer chamar, já aceitou tantos outros.

— E os padres sempre falavam na Bíblia, no atentado contra a própria vida, na palavra do Cristo...

—Sim, sim, eu me lembro dele. Passou algum tempo aqui.

— Aqui?

— Porque a surpresa? Para quem ouvia tanto os padres, você parece não ter prestado muito atenção na história.

— Mas Cristo não se suicidou, ele foi assassinado!

— Aquele que aguarda o trem sobre os trilhos não é então suicida? Devemos culpar o maquinista de homicídio se o atropelado sabia da chegada da locomotiva e aguardou que ela lhe beijasse o rosto? Foi a minha enxada que colheu a vida que a foice não pôde ceifar. Foi aqui que o grão prematuro amadureceu até a travessia.

— Ele atravessou o rio?

— Como você o fará, quando for chegada a hora.

— E eu devo esperar muito?

— Não se preocupe com o tempo. Tempo agora é tudo que lhe resta. E há tempo de sobra.

Sim, leitor! Há tempo de sobra. E se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Porque esta história termina aqui. E o protagonista não morre no final. O protagonista desta história suicidou-se. O protagonista desta história já morreu.

Mas o protagonista desta história, leitor, não sou eu.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Retratado

Sebastian deslizava entre as sombras dos oito graus de temperatura da noite parisiense. O vento gelado trazia o burburinho de uma Paris borbulhante como espumantes em taças de cristal, que logo mais brindariam o novo ano. O capote marrom grosseiro, protegia o corpo do frio enquanto as luvas sem ponta, de lã surrada, tentavam cobrir os dedos. Uma boina velha e acinzentada como a cidade cobria a cabeça e um cachecol xadrez escondia a barba de subúrbio francês. No escuro, por trás de arbustos ásperos como o olhar dos transeuntes com quem cruzava diariamente, agarrou-se à grade de ferro ornamentada com folhas e ramos de metal retorcido. Escalou sem dificuldade e lançou-se ao jardim bem cuidado. Encoberto pelas plantas, alcançou a janela aberta. Num salto, deixou para trás o frio e moribundo dezembro.

Lá dentro, um chama esquálida equilibrava-se no alto de um candelabro de prata ao lado da janela, iluminando o quarto feminino que abrigava a vanguarda da decoração do século XIX. O casaco de peles sobre uma cadeira, a tapeçaria rebuscada, os babados das cortinas, a grande penteadeira com o espelho emoldurado. Sebastian, destoando daquele quadro, não se preocupava em ser discreto. Àquelas horas, o quarto permaneceria vazio enquanto os salões de baile estariam lotados de damas e cavalheiros, música e risada, todos aguardando o último suspiro do ano moribundo, o último descendente do século XIX. Sobre a cama de cabeceira entalhada, a colcha delicada acolhia algumas almofadas. Sob uma delas, uma ponta de couro marrom espiava o intruso. Sebastian removeu a almofada revelando um pequeno volume de couro com as iniciais V.W. grafadas na capa. Uma rosa seca marcava uma das páginas. Com uma delicadeza que contrastava com os dedos rudes, o invasor removeu a rosa pousando-a com cuidado sobre uma das almofadas e abriu o pequeno caderno. No alto da página, a data revelava o dia anterior com um “30 de dezembro de 1900” na grafia delicada de mulher. Abaixo, a primeira frase destoava da delicadeza da grafia: “Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris”. A frase capturou o suburbano mais do que a prataria do quarto. Aproximou-se com o diário da vela e quedou-se curioso à leitura.

“Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris. Não foi de mazela no corpo que padeceu meu pai. Foi de uma ferida na alma, mal cicatrizada e cutucada. Ele que deu tanto a vocês. Que trouxe para cá aqueles olhos envolventes, a língua astuta. Ele que lhes mostrou a beleza, que lhes desvendou um novo mundo. E é assim que Paris retribui. Mas quem sou eu, não é? Agora não passo de uma mulher sem importância para vocês. Ah! Mas vocês já aplaudiram Uma mulher sem importância, não é? Cyril estava certo. Paris não o merecia. Nenhum de vocês. Chegará o dia em que vocês irão atrás dele. Mas quando o encontrarem, em alguma praça, vão receber de volta o mesmo olhar pétreo que dedicaram a ele nestes últimos anos. Mas dessa vez é ele quem os olhará de cima. Ah, Paris! Aproveite amanhã que amanhã é o último dia. O último suspiro de um século que já terminou há um mês. Pois foi há trinta dias que morreu o século XIX. E vocês, que amanhã estarão uivando em vestidos de baile pelo século que se vai, vão todos com ele. Todos vocês se vão. E você também se vai, Paris. E não há retrato que lhe impeça o envelhecer. E quando o século se for, meu pai vai lembrar de vocês e vai cantar feito rouxinol. Ele cantará enquanto todos vocês se forem. Vocês e o maldito Queensbery. Todos vocês que lhe roubaram a dignidade, a saúde, o próprio nome! Vocês que o enfurnaram num casebre. Numa cela! Ah, Paris. As suas vaidades de vapor e fumaça escondem as suas manipulações. O retrato não é de um homem. O retrato é seu, Paris. E estás presa a ele como a um cárcere. Um cárcere muito mais duradouro que Reading, um cárcere sem balada, sem canção. Ah, Paris. Meu pai disse que não existe livro moral ou amoral. Agora que ele se foi, eu percebo. É pena que o mesmo não valha para uma cidade. Já morreu o século XIX. E o seu retrato, Paris, foi rasgado.”

Sebastian recolocou a rosa com cuidado na página marcada. Escondeu novamente o caderno sob a almofada e dirigiu-se novamente à janela. Sentiu no rosto o vento frio soprar as últimas horas do século XIX, fazendo a chama quase despencar do candelabro de prata. Olhou a cidade além das grades. Os casacos de pele, os coches, a fumaça das piteiras. Ao longe o vapor de uma nova invenção que ele mal entendia soava barulhento. Olhou de longe a almofada que escondia o caderno, tornou a olhar para a cidade. Baixou os olhos e suspirou o ar frio com esforço. Soprou a chama que se agarrava ao pavio, tomou o candelabro partiu de volta à cidade.

sábado, 6 de setembro de 2008

3o Forum Brasileiro de Literatura de Blumenau

Em agosto agora, a Fundação Cultural de Blumenau sediou o I Encontro de Literatura e Artes e do III Fórum Brasileiro de Literatura de Blumenau. Sendo, este blog, um espaço para literatura, eu devia provavelmente traçar algum comentário a respeito. Mas o decorrer das últimas semanas não contribuiu para que eu parasse para dedicar a isto - claro, mais uma desculpa, visto que o tempo eu tive e resolvi dedicá-lo a outras causas. E como notícia passada perde a graça, não vou me deter sobre o evento aqui. Mas o leitor decepcionado talvez possa encontrar consolo lá no Falações, neste post. Enquanto este é um espaço mais voltado para a criação literária, se dedicando vez por outra à discussão da literatura. Já o Labes parece fazer essa discussão com mais propriedade. E não é jabá não, é mais preguiça de escrever mesmo :P

Bom, acho q já escrevi o suficiente para um post sem mta utilidade. Eis q me vou para curtir meu sábado chuvoso.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Agradecimento


Este post é para agradecer as meninas da Incubadora Literária por terem me agraciado com o presente aí ao lado. A arte de escrever será o primeiro livro de Schopenhauer q eu vou ler (xerox e pedaço de livro não contam). Vejamos então o q o alemão reserva no livro. Depois conto pra vcs.

Em tempo, qdo o Duelo de Escritores foi criado, ele tinha alguns objetivos. Dentre eles, mostrar q se até a gente podia escrever, qq um podia (claro q nós duelistas nao colocaríamos nessas palavras, mas é por aí). Na verdade um dos objetivos era abrir espaço, estimular a nossa produção e a de outros. Além dos nossos textos, a Incubadora Literária veio coroar um destes nossos objetivos. É um blog similar ao Duelo, com objetivos bastante parecidos. Segundo a própria Incubadora, é: "Um espaço voltado para o desenvolvimento da criação literária e para o incremento da criatividade. Adaptação da idéia original constante no blog Duelo de Escritores."
Reitero, pois, se até nós podemos, vc tb pode. Se não sabe por onde começar, talvez a figura deste post pode ser um bom caminho. Ou se vc preferir, uma página em branco tb pode ser um bom começo.

sábado, 30 de agosto de 2008

Emanuella e Leonardo

Era a segunda vez que ela entrava por aquela porta. No grande candelabro que pendia do teto, as luzes despertaram iluminando a sala. Emanuella pôde rever o lugar onde tudo começara. Os quadros na parede, o piso claro contrastando com os sofás negros estampados onde ela estivera sentada da última vez. Leonardo fechou a porta fazendo-lhe sinal para entrar. Ela sentou deixando de lado a bolsa, observando com o canto do olho ele se aproximar e parar na sua frente, de pé. Ela levantou a cabeça aparentemente meio tímida, mas com um sorriso maroto nos lábios, ajeitando o cabelo atrás da orelha. O rapaz a olhava sorridente e, tomando-a pela mão, fez com que levantasse.

— Não quer ficar na sala? Ela perguntou sorrindo nos olhos dele.

— A sala você já conhece, você não queria ver a minha biblioteca?

— Aquela que você disse que ficava na estante ao lado da cama? Falou piscando com malícia.

Ele apenas sorriu e, de mãos dadas com ela, saiu pela porta rumo ao corredor que levava ao interior da casa. Pelo corredor, cruzaram a cozinha e logo depois uma porta fechada. Vendo que o olhar de Emanuella se deteve ali, Leonardo antecipou-se:

— É o porão. Não tem nada demais. Nada que você vá gostar de ver, de qualquer forma. Só coisas sem valor e pouca luz. Ele disse, enquanto passavam por uma escada que levava ao sótão.

— Uh! Um sótão! Sou apaixonada por sótãos. Acho tão legal.

— Mesmo? — ele perguntou — Eu também! Mas agora ele tá um pouco bagunçado. Muita coisa velha. Tenho que tirar um tempo pra fazer uma boa faxina e abrir espaço pra móveis novos.

— Sei... E um dia você me mostra? Ela perguntou com os olhos brilhando.

— Só se você se comportar, Ema. Ele brincou em resposta.

Ela aproximou o rosto dele, desafiante, e perguntou: — E se eu não me comportar, Leon...

Antes que ela terminasse a frase, ele a tomou pela cintura e cingiu-lhe os lábios com um beijo ofegante, intenso. Quando os lábios se afastaram ela aproximou a boca do ouvido do rapaz e sussurrou: — Você não ia me mostrar a sua biblioteca?

Ao atravessar a porta no final do corredor, ela conheceu o quarto. Um armário simples em uma parede; no centro uma grande cama de casal, guarnecida por apenas um criado mudo e, na outra parede, ao lado da cama, uma estante de madeira branca bem acabada, destacando o colorido das capas de livros. Ela aproximou-se devagar da estante, sentindo as mãos de Leonardo tocarem-lhe o vestido sobre os quadris, e seu respirar logo atrás de si, arrepiando-lhe a nuca delicada.

Ela percorreu com o dedo, de cima a baixo, a lombada do Madame Bovary, lembrando das piadas daquele primeiro encontro e sentindo o zíper escorregar-lhe pelas costas, da nuca até a cintura, mimentizando o movimento que fazia no livro. Sentiu na orelha o hálito quente, ouvindo baixinho a respiração de Leonardo, enquanto o vestido escorria-lhe pelo corpo, pousando no chão. A pele arrepiou-se sentindo o homem às suas costas e todos aqueles tantos, na estante, a sua frente. Desvendando-lhe a nudez da lingerie que despencava do corpo indo unir-se ao vestido aos pés da estante. Ela com as mãos passando pelos livros, descobrindo-lhes as capas, enquanto ele, também com as mãos, percorria-lhe o corpo, descobrindo-lhe os segredos. Ela, que estava diante de tantas histórias, sentia-se cada vez mais envolvida pela sua. Sentiu o jeans roçar-lhe a coxa enquanto descia, e sentiu-o passar pelas panturrilhas a caminho dos tornozelos de Leonardo. Pousou as mãos da estante, em suspense, tocando com os dedos o Marquês deslumbrado por seus Crimes de Amor. Passaria ele cento e vinte dias assistindo aquele corpo arrepiado, de seios eriçados nus oferecendo-se a ele. Emanuella sentiu o rijo contato com um arrepio, inclinando os seios de menina quase a tocar o rosto de Nabokov, provocando o russo, entregando-se ao brasileiro. Leonardo lhe cingiu as ancas com as mãos enquanto ela lhe cingiu o falo com o sexo quente. Entregaram-se um ao outro, ritmados, envoltos por tantas histórias; ela sendo possuída por todas. Uma das mãos lançadas atrás, agarrada à coxa do consorte, enquanto a outra já apertava Sade com força crescente, que se deleitava sob as unhas da espanhola. No pescoço, sentia os dentes de Leonardo em contraste com os lábios macios, e o roçar de uma barba de três dias. Do alto, invejoso, Stoker empoleirava-se gótico, qual gárgula sedento. Olhando por sobre o ombro, Emanuella matou a própria sede dos lábios de Leonardo. Lábios nos lábios, línguas nas línguas, sexos nos sexos. Ela pressionada entre o brasileiro e todos aqueles na estante, num ritmo cada vez mais intenso. Os dois ofegantes, provocando todas aquelas histórias com a sua, muito vívida, mais quente, mais úmida. Com mão lançada para trás tocou o abdome do rapaz afastando-o. Apenas espaço e tempo suficientes para virar-se de frente para ele e puxá-lo de volta de encontro aos seus seios. Os corações batendo-se um contra o outro, precisos, velozes. Os sexos, separados, se reencontraram num beijo úmido, as línguas se abraçaram nas bocas quentes. E pernas espanholas envolvendo a cintura que retornava para ela. As mãos dele agarrando lhe as coxas enquanto suspendia o corpo pressionado à estante. Às nádegas ofertadas a um velho safado que se divertia com as crônicas daquele amor louco, enquanto, ao seu lado, três meninas perdidas saiam dos quadros de Moore para acrescentar mais aquela história as suas.

A estante tremia com os amantes, todos num mesmo ritmo. Cada vez mais intenso, cada vez mais acelerado, com um balançar frenético que expeliu os livros. Emanuella com braços e pernas envolvendo Leonardo sentia escorrer os livros ao chão, a estante aliviada, as capas abertas, ouvindo apenas o arfar satisfeito da realização dos amantes. Ela no colo dele, ele envolvido por ela. Ambos cercados por uma história que não caberia em nenhuma estante. Não caberia em nenhum livro. Não caberia naquela noite. Nem em mil e uma outras.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Cansei de ser pedante.

Cansei de ser pedante.
Vou ser tosco e desregrado.
Beber Bukowski e cheirar dos Anjos.
Rasgar o verbo na sarjeta literária.

Vou acordar no beco com o beijo dos cães.
Ter versos cantados pra putas de tetas caídas.
Vou vender o Kafka que me restou,
pra comprar um cigarro avulso e literatura de quinta.

O clássico ficou velho. Caduco.
Não me emociono mais com um mictório qualquer,
nem com um neólogodepalavrasgrudadas.

Com o verbo tosco que me resta,
serei pequeno e medíocre.
Vou mandar o mundo,
a arte,
à merda.

E andar fedido pelos becos até que um mendigo me deite veneno ao ouvido.