quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A terra vazia e vaga de Werner Neuert



"Não adianta nada ficar escrevendo
se não desvendar os fragmentos podres
ou a luz mais branca."

— Werner Neuert




Encontrei um exemplar de A Terra estava vazia e vaga, de Werner Neuert, em um sebo no centro da cidade. Já havia ouvido o nome do autor em um comentário aqui, outro ali, por um e outro amigo que também insistem em ler o que pelo Vale se escreve. Mas não conhecia nada a respeito do autor. Peguei o volume de capa negra sem ao menos saber que se tratava de um livro de contos. A orelha me dizia que Neuert era um autor do Vale — amigos haviam dito, de Indaial.

Na contracapa, branco sobre o preto, estava o que julguei ser um breve excerto de um conto do livro. Traçava a curiosa história de um protagonista sem nome, cidadão aparentemente exemplar, que um dia vai ao parque e encontra São Francisco de Assis. Conversa com o santo e, por isso mesmo, termina posto, pela família, em um hospital psiquiátrico. O santo também acaba lá.

O trecho me fez subir as orelhas — se uma pessoa pudesse fazê-lo, como os animais, eu teria certamente feito. Pouco mais tarde vim a descobrir: o breve trecho não era trecho. Era um conto completo. E não dos menores do livro. Em A Terra estava... Neuert é assim. Nunca tarda ao leitor encontrar o ponto final. Mas em muitos dos contos, não se engane o leitor, o texto continua muito além do último ponto. Há sempre algo que segue narrando, nesses textos de Neuert.

A obra traz retratos de tipos cotidianos. O cidadão anônimo cuja história muitas vezes se resume à sua miudeza. Ao seu viver e morrer e amar insignificantes. No conto de número 37 — que a maior parte dos contos são assim, anônimos, números apenas, talvez como quem os lê — lemos, na íntegra:

"Quando soube que teria pouco tempo de vida, foi correndo comprar flores para Luíza, há muito tempo desejava dar flores a ela".

Assim Neuert, com seus mini e microcontos volta e meia nos põe em xeque, nos volta a nós mesmos, refletidos em pálidos e breves momentos entre os tantos afazeres de nossas vidas irrelevantes. Como no 39º conto, em que conhecemos o trabalhador que ao abrir a marmita todos os dias ao meio-dia lembrava da amante e perguntava a si mesmo: "— Será que ela também faria comida pra eu trazer?" É o tipo simples, ou apenas indigno de nota, que parece mais atrair o autor. O esquisito da praça ou estação de qualquer cidade, como seu "Chapéu-de-Flores" (conto 87) que passa o dia a distribuir flores a desconhecidos, ou o homem que realiza o sonho ao comprar uma kombi que passa mais tempo na oficina do que circulando, o outro traído mas que ama incondicionalmente a esposa, o transeunte, o qualquer um, que vive, que goza, que se irrita. Que passa.

Neuert divide sua obra em várias partes temáticas, mas o livro pode ser dividido em dois grandes momentos. O primeiro comporta os 129 micro e minicontos sem título. Destes, destaca-se o humor mordaz de 91, em uma única frase: "— Opção sexual o cassete, se eu pudesse optar, seria hetero". A mesma estrutura de piada, simples como um conto de boteco, se repete em 31 e, mais rebuscada, no humor mais ácido de 25, onde um João, preso na ilha de Patmos, resolve, apenas para espantar o tédio, escrever "uns negócio aí", ao que é aconselhado: "—Não vá inventar polêmica". Esse diálogo da ironia ou do sarcasmo com o sacro é também recorrente, em A Terra estava... Retorna, por exemplo, em 76, com o espectador da missa de olhos fixos no Cristo crucificado, para mais tarde, ao retornar ao carro, comentar com a esposa "—Visse que o Jesus tá com o nariz torto?".

Mais humanos e viscerais, talvez sejam o conto de número 40, tangenciando a pedofilia dentro de casa, ou o conto 55 com a insegurança e falsa moral falocrática. Dentre esses breves contos, é preciso ainda destacar os de número 65 e 66, sobre livros, letras e diplomas; o encorpado 108 onde o filho orgulhoso apresenta a mãe sua tese de doutorado para receber em resposta "— Para que tantas palavras, meu filho?" e o mais explicitamente metaliterário 83, um dos mais poéticos e destaque deste trecho do livro, que reproduzo na íntegra:

"Abre essas palavras. Arranca o que tem lá dentro. Não adianta nada ficar escrevendo se não desvendar os fragmentos podres ou a luz mais branca. Aperta, esmaga com raiva até tirar toda a essência. Depois bebe com serenidade, como um santo. Bebe até cair ou despertar. Mas primeiro: abre essas palavras."

A Terra estava vazia e vaga conta ainda com um segundo momento, onde apresenta contos pouco mais longos, alguns ultrapassando a primeira página. Os contos deixam de ser anônimos, ganham título, ganham nome. Muitos, de pessoas. Aqui o autor parece lançar mão de um texto melhor estruturado, com grande força de imagens, muitas na fonte do surreal ou do fantástico. Neuert troca o impacto pelo envolvimento. O golpe direto e seco pelo enlevo da narrativa. Alguns dos temas se repetem, como em Kombi e Kombi II, Negão, Pedro, José, Luci ou Bach e Putas. Mas o destaque é força com que trabalha o surreal. Ótimos são Coceira com sua protagonista que na falta de um amor, ama-se a si própria até consumir-se; Bom dia borboletas, que traz o dia em que as pessoas começaram a expelir borboletas ao falar; o intrigante Azul onde um homem passa a ver tudo, de repente, em tons de azul. Tudo exceto a morte, que enxerga em cores normais, no cadáver na rua, no pôr-do-sol, na barata morta. O belíssimo e angustiante Seis bilhões, com toda sua falta de espaço, de tempo, de vida, repleto de excessos de tudo, exceto talvez, de paz e de si mesmo. Todos estes, de uma beleza imagética tocante, onde o autor lança mão de mais recursos poéticos e mostra que pode trafegar igualmente entre lagartas e borboletas. Como aquela que, colorida na capa negra criada por Denise Patrício para o volume, se esconde, ainda lagarta, dentro da crisálida. Ou como aquelas, na contracapa do livro, já lepidópteros alados metamorfoseados em cor sobre o fundo negro. A Terra de Neuert é vazia, vaga, mas cheia de borboletas.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Declamações



Declamações


nos teus ouvidos
....falo em romance
nos teus lábios
....falo em riste

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Retorno em vermelho e azul

Azul e vermelho. Azul e vermelho. Azul e vermelho. As cores se intercalavam na paisagem vista através do vidro fechado. O barulho, já nem ouvia mais. Lembrava a última vez que vira a paisagem naquelas cores, através daquele vidro. Já não sentia ódio — há algum tempo não sentia — estava como que adormecido. Havia algo no peito, no entanto, que pesava. Não identificou em princípio. Há muito não o sentia. Há anos. E lembrou da última vez. Também estava lá, apertando o peito, apesar de tudo. E lembrou-se. E sentiu, como não poderia deixar de ser, inevitável e fatídica, saudade.

O carro alugado em um quase desmanche do subúrbio não era o mais discreto. Não importava muito. Era um carro velho, barato e desconhecido. Provavelmente nem se importariam muito com alguma avaria. Até com a falta, vai saber. Olhou no retrovisor sem reflexo. Só um borrão manchado no espelho velho. Um espectro que dava apenas para imaginar onde ficariam os olhos bem mais enrugados do que há anos, uma barba não muito bem feita. Ao menos a roupa não estava tão mal. Era, na verdade, a melhor roupa que usava desde muito tempo. Desde vários anos. A sensação de usar uma roupa que não fosse igual a de todos os outros lhe causava um certo prazer desfrutado em silêncio, numa íntima satisfação de um agradável segredo. Olhou o relógio que já lhe incomodava o pulso — tanto tempo sem usá-lo! — conferiu as horas sem se importar muito, não tinha muito mais que o fazer. Ficari ali pelo tempo que fosse necessário, como havia feito nos últimos dias. A casinha azulada do lado de fora do carro era simples, mas bonitinha. Ou ela teria adquirido algum bom gosto, afinal, ou o marido que escolhera. A segunda opção, provavelmente. Ela deveria ter simplesmente ido morar com o coitado. Demorou algum tempo, mas eventualmente teriam de terminar. O rapaz havia entrado há já quase uma hora. Finalmente, a porta da frente se abriu e fechou-se em seguida, rapidamente, tempo apenas suficiente para deixar sair apressado um rapaz — surpreendentemente novo, por certo apenas alguns anos mais velho que ela — que logo se pôs em marcha apressada e distraída rua abaixo, ainda acertando a camisa por dentro do cós da calça. Saiu feliz, leve, como das outras vezes. Irritantemente leve.

O motor fez o capô trepidar, assustando apenas uns poucos pássaros na árvore ao lado que projetava uma sombra vasta na rua vazia de subúrbio. Colocou o carro em marcha e acelerou suavemente, medindo a distância. O carro foi ganhando velocidade devagar, sem despertar muito a atenção. Chegando aos setenta quilômetros por hora estabilizou o ponteiro tremulante do velocímetro. O pneu deu um solavanco quando acertou o meio fio, arremessando o carro alguns centímetros para o alto. O som assustou o rapaz, mas ele nem teve tempo de se virar. Antes que pudesse terminar o movimento, um farol arredondado lhe entrava pelas costelas enquanto um para-choque de metal lhe separava o joelho. Rolou por sobre o capô até atingir a coluna do para-brisas, no instante em que o carro fazia a curva para retornar à rua, deixando a calçada. Foi arremessado por sobre a cerca baixa de uma das casas próximas, indo aterrissar atrás das plantas do quintal. Só seria descoberto, provavelmente no outro dia, coberto de sereno e sujo de grama, um pé pra cá outro pra lá, numa posição de boneco de pano estropiado. O carro seguiu a rua e dobrou à direita na primeira quadra. Parou no outro lado em frente a uma entrada de garagem abandonada, sem um farol e com o para-brisas trincado. A chave, na ignição; a porta apenas encostada.

Azul e vermelho. Azul e vermelho. Azul e vermelho. A praça, trocando de cor, fez com que lembrasse do pobre do marido. Provavelmente pela estátua careca e de óculos entre as hortências. Careca tingida pela luz vermelha.

Nem lembrava muito bem como, mas ela estava de roupão — ou era um hobby não tão fino — azul. Os cabelos estavam molhados e cheirosos. Já não cheiravam ao rapaz, àquelas horas atirado num quintal vizinho. Nem ao marido, certamente. Nem a ele. A infeliz e irremediável certeza: há muito tempo não cheiravam a ele. Ela tinha a boca vermelha. Não era batom; não, não era. Era um corte no lábio inferior. Não no nariz, dessa vez, mas no carnudo, vermelho, lábio inferior, que ela deixava meio pendente da boca entreaberta de dentes pequenos. Ah, como ele lembrava daquele sorriso de dentes pequenos e boca vermelha! O sangue o fez lembrar da última vez em que beijou aqueles lábios. Ainda tinham sangue quando treparam no chão da cozinha da casa que já não era dele, naquela vida que já não era dele. Ela não sorria, agora, mas tinha nos olhos aquela mesma doçura quente, encolhida próxima à cabeceira da cama. O roupão deixava escapar uma perna bonita e bem depilada. Devia ter se preparado à espera do rapaz. Subiu os olhos pelas pernas imaginando o que mais aquele roupão escondia que ela havia preparado para o rapaz jogado num quintal próximo, casas abaixo. Semiaberta, a vestimenta revelava o arredondar dos seios já mais crescidos. O pescoço já não mantinha toda a vida da juventude, nem o rosto, ainda bonito, mas já aparentando uma mulher. Não era mais uma adolescente. Mas quando ela esboçou um pequeno sorriso, foi como se a mesma menina ressurgisse daquele ar jovial, fresco, pronto para ser colhido doce, úmido e suculento, sumo que escorria na boca e derretia por dentro, com todo o sabor de uma safra de apenas catorze anos. Ah, como ele se lembrava! Aproximava-se da cama devagar, a chave de rodas que trouxera do carro já pendia na mão ao lado do corpo, sem tensão, baixa, praticamente inerte. Perdia aos poucos a força. A determinação. Estava inebriado pelas lembranças e pelo reencontro com aquele corpo jovem e fresco que ele ainda via naquela, jovem, mas já, mulher. Despertou do transe apenas quando a porta se escancarou brusca. O homem careca de camisa polo e óculos abriu a porta. Chegou já raivoso. Com certa surpresa, viu a mulher seminua, coberta apenas pelo roupão, encolhida contra a cabeceira da cama enquanto o homem com a chave de rodas, de pé, ia em sua direção. Não sentia ódio pelo marido. Pena, no máximo. Era um pobre coitado, tinha certeza. Como ele havia sido. Mas não pôde fazer nada. O homem investiu contra ele. Atirou-o contra a parede, nem ligou para a chave de rodas que trouxera. Esta ensandecido. Qualquer um que passasse na rua veria pela janela a cena. Não teve muita opção. Se não fizesse nada o marido o atiraria janela a fora. Ergueu e depois baixou veloz a chave de rodas. Depois de dois golpes o homem estava caído aos seus pés, a careca vertendo sangue, tingindo de vermelho os poucos cabelos que lhe rodeavam. Não era tão velho, deveria ter sua idade, mais ou menos. A careca prematura sujando o chão de vermelho, dando tempo apenas de pronunciar, baixo, contra o chão um nome ou apelido de apenas duas sílabas idênticas. Não pôde suportar ouvir aquele nome saindo dos lábios de outro homem. Baixou mais uma vez a chave de rodas que ficou de pé, presa na careca vermelha. Olhou para a moça na cama sem saber o que dizer. Nos olhos dela, também não conseguia ler nada além de dúvida e curiosidade. E um corpo ofegante sob o roupão azul.

Era manhã, a rua movimentada apenas pelos carros saindo das garagens levando os donos aos trabalhos no centro. Ele já estava parado lá há algum tempo, como das outras vezes. O carro velho sob a árvore, não longe da casa. Não foi tão difícil assim achar a casa. Bastou uma busca na internet para descobrir, em um site de relacionamentos, Sara, a amiga que sempre visitava e ia tomar banho de piscina enquanto ele observava, ouvindo o gelo estalar ao uísque, as adolescentes se divertirem. Na lista de amigos da moça, lá estava ela. O sobrenome era outro, mas era ela, com certeza. Ao lado da foto, alguns dados. E o nome da loja onde trabalhava. Tinha até currículo. Ela não havia estudado muito, mas até que não se deu tão mal. Tinha casado, estava no perfil. Por isso o sobrenome estranho. No mínimo com alguém mais velho, podia apostar. Por volta da sua idade, provavelmente. Ou da idade que tinha quando se despediu dela pela última vez. De todo modo, não era nele que estava interessado. Precisava vê-la de novo. Aproximar-se dela de novo. Acertar as contas com aquele demônio curvilíneo que o mandou ao inferno. Foi à loja e ficou observando a fachada de longe. Viu quando ela saiu. Um pouco mais velha do que lembrava. Bom. Sabia que não poderia com ela se ainda tivesse todo o viço da juventude, esfregando-lhe na cara aquela doçura que o deixava desarmado e de pernas bambas. As roupas, no entanto, eram coloridas e conferiam-lhe algo daquele ar infantil-sensual maldito. Afastou os pensamentos. Pensou em correr até ela naquele mesmo instante e apertar-lhe o pescoço já não tão delicado. Ver-lhe os olhinhos arregalarem-se e aquele sorriso macabro que não lhe saía da memória desaparecer. Mas não poderia. Não suportaria retornar àquele lugar. Nem mesmo por causa dela. Estava agora se acostumando a usar roupas comuns. A ver-se vestido diferente das outras pessoas ao redor. Estava se acostumando a ver o lado externo dos muros, os sons da cidade. Não retornaria jamais. Nem por ela. Seguiu-a, então, a distância, até que ela entrou na casinha azul. Sorriu para si mesmo. Bastava entrar ali e enterrar-lhe a mão no nariz delicado e perfeito, ouvir o rebentar da boca deliciosa e o suspiro cortado pelo estalar de uma traqueia partida. Mas havia o sobrenome. Ele estaria ali, ou para chegar. Teria de esperar. Não hoje. E saiu com o número e a fachada da casa gravados na memória, sabendo que retornaria ali algumas vezes ainda, antes de tomar qualquer porvidência. Era um prato que se comia frio, diziam.

Vermelho e azul. Vermelho e azul. A paisagem ia mudando do lado de fora do carro. Os dois homens no banco da frente em silêncio. Haviam insultado-o o suficiente. Viajavam agora calados. Anoitecia enquanto o carro se destinava para a área mais afastada da cidade, onde se escondia àqueles dos quais se queriam esquecer. Azul e vermelha a estrada passava. Como ele e ela.

Ela, sobre a cama, de azul-roupão sobre o corpo mal coberto. Ele, salpicado de vermelho. Ao chão um homem com uma chave de rodas na cabeça. Nos olhos dela, curiosidade macabra e excitada. Nos dele, dúvida e uma mistura de tesão, ódio, saudade e — sim, por que não? — amor. O corpo dele sobrepujando-se devagar ao dela. Ela, se afastando inutilmente contra a cabeceira da cama, mas com os olhos sempre nos dele. Ele agarrou a gola do roupão e a puxou para si. Ela ficou ali, meio pendurada pelo colarinho. Assustada, ofegante, olhos brilhando, um seio arquejante se denunciando pela abertura do roupão. Maior, mais arredondado, mas ainda firme, tenaz, o mamilo eriçado em rosa. Subindo e descendo, subindo e descendo com a respiração acelerada de hálito doce. Agarrou-lhe com a outra mão o pescoço. Ainda lhe cabia fácil na mão. Pressionou até que ela vertesse aquele hálito que há anos não sentia. Sentiu-o próximo ao rosto. O cheiro atingiu o cérebro como um dardo. Chegou a cambalear e apertou a mão contra o pescoço da moça como para se segurar e não cair. Ela emitiu um leve gemido que o trouxe de volta. E trouxe de volta as lembranças dos gemidos de outrora. Lembrou-se das tardes de antanho quando não estavam a mãe nem a empregada. Puxou-a, pelo pescoço mesmo, para mais perto de si. Hipnotizado. Azul e vermelho. Ele vermelho. Ela azul. A parede azul e vermelha, azul e vermelha, azul e vermelha pela janela aberta ao fim da tarde. Despertou quando percebeu que ela também admirava as cores projetadas nas paredes. Largou-lhe o pescoço, espiou pela janela. As luzes no teto do carro lá embaixo brilhavam azuis e vermelhas. Dois homens saindo do carro, armas nas mãos. Falando com alguém fora da sua visão e se dirigindo à casa. Lembrou dos uniformes. E dos uniformes. E dos dias e meses e anos. Lembrou da última vez. Do gosto do beijo e do sangue. Do olhar quente, do sorriso macabro. E dessa vez nem havia trepado. Há quanto tempo não trepava? Não voltaria. Não assim. Não sem ao menos dar o troco. Arrancou o abajur da tomada e, com um puxão arrancou-lhe o fio. Enrolou uma ponta em cada mão, deixando-o estendido firme. Levantou os olhos e viu os delas, já mais assustados. Foi rápido em sua direção, deu uma volta com o fio no seu pescoço e puxou-lhe para cima, tirando-a praticamente toda da cama, só as pernas penduradas. O roupão já quase todo aberto, os seios roçando-lhe o peito, os lábios em frente aos seus. Seu corpo de homem envelhecido se dividindo entre ódio e prazer. Uma perna depilada levantou-se e tocou-lhe, leve e sem querer, a virilha. A vontade fraquejou-lhe. Afrouxou o fio. Deixou a moça retornar à cama. Voltou à janela, olhou para baixo. Os dois homens uniformizados já junto à porta, forçando a entrada. Olhou para ela, olhou para os homens, para o vermelho e azul brilhando nas paredes. Suspirou abatido. Não podia mais fazer aquilo. Mas não podia, também, voltar. Não suportaria. Amarrou o cordão no parapeito da janela, sentou na beirada e enrolou o fio ao redor do pescoço. Não voltaria por nada. Nem por ela. Ela o olhava com um sorriso macabro. Aquele sorriso macabro de olhos quentes e doces. Passou os dedos de leve no pescoço meio machucado, desceu o dedo seguindo o decote do roupão já aberto, com um ar provocante. Ela levantou o dedo, apontou para corda no pescoço e fez sinal que não. Apontou para o chão para que ele descesse. Ele o fez, tirou o cordão do redor do pescoço, segurando-o nas mãos sem saber o que fazer. Quando a porta se abriu sob o peso da botina, a moça encolheu-se contra a cabeceira da cama, deixando escapar um assustado "Jorge, não!" dos lábios maliciosos. Os dois homens apontaram as armas. Acabaria, afinal, retornando para lá.

Azul e vermelho, azul e vermelho, azul e vermelho. A paisagem já noturna se iluminava colorida enquanto ele, no banco traseiro, as mãos às costas, relembrava. Saindo pela porta do quarto, a moça fechando o roupão, sendo auxiliada pelo outro policial de cacetete rijo pendurado à cintura. Por baixo do roupão imaginava o corpo arrepiado, os bicos dos seios em pé, as lembranças de anos atrás antes que tudo aquilo tivesse acontecido pela primeira vez. Nos olhos, aquele mesmo olhar excitante. Através do vidro do carro em movimento, olhava a paisagem com um só sentimento. Saudade.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O outro

Deixe que eu fale, que esse peito que me deste é por demais pequeno é já lhe falta espaço. Deixe que fale. Ao menos assim, quem sabe, terei certeza da minha própria e duvidosa existência. Sim, eu sei. Eu existo. Ao menos é o que parece. Mas se existo, existo apenas no outro. Ou pelo outro, quem sabe? Existo como uma imagem construída por mim, das imagens que imagino que outros façam de mim. E da imagem que eu, por minha vez, faço destes mesmos outros que pusestes aqui, comparados a mim.

É por meio do outro que existo. Ou que me sei como eu. Se sou magro demais é porque o outro não o é. Se uso barba é porque o outro não a usa. Se me chamas pelo meu nome, é porque não chamas o outro. Se sou eu mesmo é, simplesmente, porque o outro não o é.

Não sou senão no outro.
Sem o outro, talvez eu nem mesmo exista.
Talvez apenas... esteja.

E me peguei a pensar de quando não havia outro. Mas se houve não é verdade. Eu nunca fui sem que outro antes não tivesse sido. Se a serpente se arrasta é porque eu não o faço. Se o leão ruge é, de novo, simplesmente, porque eu não o faço. Se a árvore se ergue majestosa é, sim, mais uma vez, porque eu não o faço. Sempre que fui, foi no outro.

Mas houve um tempo, não? Houve um tempo, antes, bem antes de mim, que não houve outro. Um tempo imemorial em que o outro simplesmente não existia. Tu lembras, não lembra? Só tu poderia lembrar deste tempo de que falo.

Havia apenas um. Recorda. Um e nada mais. Mas não somos senão no outro, não é? Tu naquele tempo, não havia outro. Tu sem o outro... foi por isso, não foi? Não é por isso que estou eu aqui agora, erguido pelo outro, por ti, para ser, justamente, o outro. O teu outro.

Tu que talvez, sem mim, sem o outro, não existia. Estavas, apenas. E nada mais. Um potencial eterno e nulo. Um tudo preso num nada. A potência inexistente sem uma impotência que existisse. Foi por isso, não?

Criastes a outra para que eu existisse de fato. Mas foi só quando criastes a mim que, tu, passou, por tua vez, a existir de fato. Criastes um outro para ti, para que tu pudeste de fato existir.

E se tu existe, não te zangues, é por este outro que o sou.

Sim, certamente. Não te zangues que pode castigar até os rasos limites meus. Mas não te desfaças de mim. Que te desfarias de ti. Sim, me vou. Tomarei a que me destes. Para que eu também exista, distante de ti. Vou-me com ela, se é assim que preferes. Tens, no fundo, razão. Novamente e como sempre tivestes. É preciso que me vá. Porque para que este lugar exista, é preciso, bem sabes, que haja outro. Que aqui é, só o é pelo outro. Como eu, como tu, como este fruto que só está inteiro porque este, vê — nhac — não está mais. Se és completo, é porque não o sou. Se és um, é porque sou dois. E assim há de ser. Vou-me. Há um lugar que tenho de visitar. Qual? Outro.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Verso no ventre nu

Verso no ventre nu

imprime
no meu ventre
o teu
verso
nu

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A Gárgula de Saint Romain

Arquitetura Gótica do Interior da França - Gárgulas e Quimeras
Posfácio (ou, originalmente, Anexo III)

O presente posfácio é um adendo que me permiti acrescentar a este livro. Seria o Anexo III de minha monografia. Porém, junto a meu orientador, achei por bem suprimir este conteúdo do trabalho original, uma fez que carecia de bases científicas ou históricas comprovadas e tratava mais de uma interessante curiosidade do que, de fato, do corpus tratado por meu trabalho de conclusão de curso. Mas como uma publicação como esta, que agora tem às mãos o leitor, permite mais ao autor do que uma monografia acadêmica, deixo como um relato dos fatos que me chegaram, ao acaso, enquanto pesquisava as gárgulas e quimeras da arquitetura do interior da França.

Desde que me detive, nos primeiros semestres do curso de arquitetura, sobre a estética gótica da arquitetura francesa, especialmente sobre um impressionante slide da Catedral de Notre-Dame, fui arrebatado por aquela riqueza de detalhes e pelo mistério daquelas construções pontiagudas envoltas por ainda mais misteriosas esculturas. Durante todo o curso, guardei uma especial atenção àquelas construções e, muito tempo antes do esperado, já havia definido que o tema de minha monografia seria este. Com auxílio de meu orientador, reduzi meu foco com especial atenção às esculturas presentes na arquitetura gótica. Com auxílio do mesmo orientador, defini meu campo de atuação — um pouco a contragosto — excluindo o objeto mais óbvio para análise: a tão admirada Notre-Dame. Ao contrário, defini, pelo bem do projeto e buscando um pouco de ineditismo, estudar as esculturas das contruções góticas no interior da França para, posteriormente, fazer uma comparação estilística com aquelas presentes na capital. Terminadas as aulas regulares, então, com a ajuda de meus tios que moram próximo de Paris e bancado por meus pais, mudei por cinco meses para a França, que já havia visitado uma vez em férias, na casa desses mesmos tios.

O primeiro mês, não pude evitar passar na capital francesa e nas suas ruas e deslumbrantes construções. Logo, porém, decidi rumar para o interior e iniciar minhas pesquisas in loco. Conversando com conhecidos e pesquisando na internet, acabei chegando a um interessante relato, uma pequena lenda francesa que tocava no assunto das gárgulas muito por acaso. A tal lenda relata a história de Saint Romain, bispo de Rouen durante o reinado do rei merovíngio Clotaire II. Num breve resumo, a lenda relata como o bispo derrotara uma gárgula de Paris (na verdade um dragão que vivia no rio Sena, chamado Gargouille). Nas minhas conversas, ouvi da Igreja de Saint Romain, nos arredores de Rouen, que teria um profusão de gárgulas e quimeras que poderiam ser de valor para o meu estudo. Estimulado por um provável corpus de análise para o meu trabalho e pela peculiar lenda da gárgula, resolvi dirigir-me a Rouen para conhecer a tal igreja.

Não foi difícil encontrar o templo. Ficava um pouco retirado da cidade, mas foi fácil me informar e chegar até à bela construção em homenagem ao bispo matador de monstros. De fato, das trabalhadas cornijas e dos beirais, se projetavam rebuscadas gárgulas com ricos adornos, variando de formas animalescas, humanóides e monstruosas, guardando os pontiagudos telhados apontados para o céu.

Circundei a trabalhada construção com curiosidade e sem pressa, observando os detalhes de uma rica e belíssima escola arquitetônica. Fiz algumas fotos despretensiosas, mais para lembrança do que para análise e me deixei primeiramente apreciar a construção sem nenhuma ótica acadêmica ou analítica. Apenas de deleite. Aqui, a variedade de motivos das gárgulas e das quimeras era mais abundante do que nas construções da capital francesa. Além das características figuras das gárgulas de aspectos demoníacos ou animalescos, haviam algumas imagens mais humanóides. Nem dei por mim, estava observando com certo fascínio uma gárgula em formato de padre ou monge, dependurada do beiral com a cabeça raspada, olhar rapino e boca aberta, por onde certamente corria a águas das calhas do telhado em caso de chuva. A gárgula era cercada por duas quimeras, essas sim, mais ao estilo clássico-monstruoso que eu tanto admirava.

Um movimento próximo me capturou a atenção. Não muito distante, um sacerdote com um ancinho se aproximava com ar jovial. Cumprimentou-me com cordialidade e, percebendo o meu sotaque, acredito, perguntou se eu era português. Disse que era um estudante brasileiro de arquitetura, ao que ele sorriu com entusiasmo. Disse-me que não sabia falar português mas que havia morado muitos anos em uma comunidade espanhola e sabia falar um espanhol razoável, segundo ele. Eu disse que não seria necessário e ele, gentilmente, passou a falar um francês mais pausado. Perguntou-me se havia me interessado pelas gárgulas. Confirmei e perguntei-lhe, para certificar minhas suspeitas, se a imagem do monge na gárgula seria Saint Romain. Ele negou, sorridente. Disse que dentro da igreja sim, eu poderia ver uma imagem do santo bispo. Aquela gárgula era uma homenagem a um dos primeiros sacerdotes da igreja e um entusiasta do estilo arquitetônico da época. Irmão Fontaine, que buscava, com as gárgulas, trazer um pouco da mítica da grande Notre-Dame para o interior. Há muitos anos, o clero local achou por justiça erguer uma gárgula com a imagem do padre, em homenagem.

Tendo o pároco como guia, percorri todo o exterior da igreja, tirando fotos, tomando notas breves, observando detalhes e ouvindo histórias da vida nos arredores da Igreja de Saint Romain. Sobre a lenda do duelo entre o bispo que dava nome à igreja e a gárgula do Sena, o pároco confirmou que de fato Saint Roman havia acabado com muitos monstros da comunidade parisiense da época, mas que a gárgula — serpente do Sena, ele me corrigiu — era uma rica metáfora, para sempre lembrada como lição de nossos monstros internos, representados nas paredes dos templos góticos. Prevendo o fim da tarde, despedi-me do simpático padre e retornei a Rouen para o meu albergue, com a promessa de que voltaria outro dia para continuar as conversas e pesquisas. No chão, o sol poente projetava longilíneas sombras de gárgulas monstruosas ladeando a figura do Irmão Fontaine.

Na biblioteca local, encontrei mais algumas informações sobre a história da igreja e de Saint Romain. Algumas informações sobre a construção do templo em Rouen, sobre fundos de arrecadação para ornamentar o prédio, algumas pesquisas superficiais sobre a arquitetura na qual a igreja se inspirava — que muito me interessaram — e uma curiosa notícia que destoava das demais. Um garoto local, que servia de pajem ou algo que o valha nos serviços do templo, teria sido, ao menos a suspeita tinha sido levantada, vítima de abusos por parte de um padre local. Lendo a reportagem com mais calma, surpreendi-me em ver que o padre era justamente o irmão Thierry Fontaine, homenageado na fachada da igreja. A acusação havia gerado comoção pública na comunidade próxima à igreja. Os principais membros do clero local tomaram parte para esclarecer o ocorrido e, ao que parece, o garoto teria sido vítima apenas de um bom safanão do padre, por ficar brincando entre as gárgulas no beiral. A honra do padre tinha se mantido imaculada, tanto que, após o ocorrido e das desculpas dos pais da criança, de pronto aceitas pela congregação, o irmão Fontaine teria sido indicado para ocupar um posto na própria Notre-Dame, cuidando do conjunto arquitetônico do local. E na igreja nos arredores de Rouen, em sua homenagem, fora projetada a sua gárgula, para proteger a comunidade e, brincaram as pessoas na época, para espantar garotos levados do meio das estátuas, de onde poderiam cair ou danificar os ornamentos.

Decidi retornar a igreja para continuar o estudo das gárgulas e observar as variantes arquitetônicas de sua concepção, já pensando em perguntar ao pároco que havia me recebido no dia anterior sobre a história que eu havia encontrado na biblioteca. A questão que mais me intrigou, no entanto, foi que pesquisando o acervo sobre a Notre-Dame, especialmente nas questões de arquitetura, em nenhum momento foi encontrado o nome do padre Thierry Fontaine.

No dia seguinte, segui para os arredores da cidade e encontrei o mesmo sacerdote, que me recebeu com um "buenos dias" rapidamente respondido com um "bon jour" de minha parte. Admirei os detalhes arquitetônicos mais de perto desta vez e consegui consentimento de averiguar as gárgulas e quimeras com mais cuidado. Acompanhado do meu guia subi ao alto da contrução, próximo aos telhados, pontiagudos como chifres, e entreti-me com as detalhadas esculturas. Algumas gastas pelo tempo, mas em geral todas muito bem conservadas, ainda que, faça-se justiça, por mais bem executadas que fossem não poderiam ser comparadas estilisticamente à arquitetura da grande catedral de Paris. Fotografei algumas das estátuas e fiz alguns esboços no papel enquanto o padre, que já se cansara de me acompanhar, fazia suas tarefas ali próximo, livrando o campanário de alguma sujeira ou ninho de ave.

Quando me inclinava, apoiado em uma das quimeras, para conseguir uma foto em close do rosto da gárgula do irmão Fontaine, que certamente seria destaque do trabalho, vista a rica história que trazia, meu pé vacilou sobre a cornija e me vi precipitado do alto da igreja. Teria sido um trágico fim, espatifar-me no chão sob a sombra daquelas gárgulas me olhando, não fossem as garras da quimera em que eu me apoiava. Consegui agarrar-me ao pé do monstro e, ainda que assustado e bastante esfolado contra a pedra, evitei o pior. A minha câmera estilhaçou-se contra o chão e os meus papéis voaram ao redor da igreja. O padre, que limpava o sino, ao ouvir meu grito saiu em disparada ao meu socorro, deixando que o campanário soasse algumas badaladas não previstas e retumbantes. O padre, já não tinha o ar jovial de antes. Quando olhou por cima da amurada estava branco feito gesso, esperando me ver estatelado aos pés do prédio. Ao ver-me dependurado, mas firme, aos pés da quimera, ao lado da gárgula de Fontaine, deu um suspiro aliviado. E disse, passando os pés por sobre a amurada para poder me içar de volta à segurança:

— Parece que o irmão Fontaine está mesmo olhando por você.

Foi justamente sobre a gárgula do padre que ele caminhou para me alcançar. Foi quando ele se abaixou, agarrado com uma mão ao rosto de pedra da gárgula e estendendo a outra para mim, que ouvi o estalo. Durou um segundo entre o som e o esfarelar da base da gárgula. Pouco mais que isso para ver o rosto do irmão Fontaine passar por mim com o olhar de pedra, seguido pelo rosto do padre que viera me salvar, com olhar de pânico. Os dois passaram rente a mim, descendo rápido e ainda hoje sinto não ter podido fazer nada. Mas pendurado às garras da quimera, bastava que eu estendesse a mão para ter o mesmo fim do meu guia. Lá embaixo, sob o olhar das quimeras e das gárgulas que restaram, estava uma gárgula partida e um padre morto. Deu com a cabeça contra a cabeça de pedra da gárgula. Pior para a sua, que era de osso e agora esvaziava-se de sangue manchando a grama. Já sem forças para içar-me, fiquei lá pendurado por mais vários minutos vendo a vida do alegre padre ir-se rubra pelo crânio quebrado.

Na hora julguei que fosse pelo esforço, pelo susto ou pela vertigem, mas eu jurava que via dois crânios abertos ao chão. Alguns ossos expostos e muito sangue. Lembro de ter pensado que a gárgula teria atingido alguém. Assustado como estava, só lembro de ter sido içado, um pouco mais tarde, por um par de franceses jovens. Eles eram irmãos e haviam vindo instigados pelas badaladas fora de hora, que dera sem querer o padre ao vir me salvar. Ao verem a cena, correram ao meu resgate enquanto uma garota que estava com eles, que imagino sua irmã, foi chamar mais alguém. As pessoas já deveriam estar próximas porque quando cheguei ao lado de fora da igreja, amparado pelos rapazes que me tiraram das garras da quimera, já eram vários os que estavam ali, mais atrás chegando até alguma autoridade local. Só me aproximando do local da queda percebi que havia mais motivo de comoção. Haviam de fato dois crânios e vários osso em meio ao sangue. Mas muitos ossos e um dos crânios estavam, aparentemente há muito, descarnados. Era possível ver, de dentro da gárgula, ainda incrustado no interior da pedra, uma ossada de pernas recolhidas, braços cruzado junto ao peito protejendo um livro de couro velho com tranca, como os antigos diários, e um crânio, agora com a mandíbula partida e caída ao chão. A parte intacta da caveira ainda recoberta pela cabeça de pedra que fora a gárgula do irmão Fontaine. O sangue, esse parecia todo do já não tão jovial padre que me recebera.

Não soube muito mais sobre o ocorrido, uma vez que fui levado ao hospital e não pude acompanhar o desenrolar da história. Soube por meio de um jornal local, que li já na casa dos meus tios, que a ossada dentro da gárgula, era, segundo o DNA, do próprio Thierry Fontaine e o livro carcomido de capa de couro era seu diário pessoal, que havia sido enviado para análise. Nunca soube o que continha o tal diário. Disseram os meus tios, que corriam boatos em Rouen que o clero local havia reclamado o mesmo, visto que pertenciam, de certa forma, à congregação. Como a ossada do padre Fontaine foi parar dentro de sua gárgula, ninguém sabia, mas o delegado do distrito responsável já tinha iniciado uma investigação, mesmo sofrendo ameças de excomunhão por parte do clero local.

Até o fim deste trabalho, não recebi notícias do resultado dos inquéritos. Presteis os devidos depoimentos, consegui, obviamente completar minha monografia, e agora editá-la no formato deste livro que tem às mãos o leitor. Este posfácio traz estas palavras que não caberiam em um discurso acadêmico, mas que me pareceram importantes vir à tona. Termino este livro então, com esta breve narrativa, este Anexo III que, acredito, serve para reforçar a aura de mistério e mítica que envolve estes ícones arquitetônicos de uma época, estes seres de pedra e mito. Termino aqui um estudo. Começa aqui, parece, uma história.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Maria Fumaça




Maria Fumaça


maria fumaça
olho de brasa
boca de tição

maria fumaça
da cor do carvão

maria fumaça
boca de fornalha
corpo de carvão

maria fumaça
maria trovão

troveja maria
troveja

maria fumaça
(maria)
olho de brasa
(maria)
canto de névoa
(maria)
maria fumaça
(mania)

maria fumaça
cheia de graça
louca emotiva

locomotiva
maria pirraça

apita maria
apita

aperta maria
aperta

cospe fumaça
maria fumaça
anel de fumaça
maria da graça
maria fumaça
ameaça, desgraça
coração destroça
fumaça e troça
maria fumaça

queima quem brinca
com fogo, maria

anel de madeira
(anel de fumaça)
em cada orelha
(acima da telha)

maria fumaça
maria

(fumaça!)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Amor Pornô

Não fazia nem uma hora aquelas portas velhas e largas estavam expelindo os tipos habituais que, pouco antes, lhe habitavam as entranhas. Saíam aos borbotões, se distanciando rápido, se espargindo pelos arredores, ejaculados porta a fora. Alguns mais elétricos, outros mais leves, todos distantes de si e do mundo. Pequenas gotas brancas de ilusão. Velhos solitários com nada além de suspensórios e lembranças como companhia, tipos esquisitões engordurados, gordos demais, magros demais, sozinhos demais. Grupos de garotos espinhentos no cio, uivando de excitação verde não colhida. Umas poucas putas, travestis ou oportunistas esperançosos. Todos com a solidão viscosa a escorrer-lhes pelos rostos, pelos peitos a dentro, enquanto a palavra “privê” piscava em curto no letreiro iluminado do Cine L’amour.

O carro bordô subia a ladeira, agora menos movimentada, passando pelas paredes pichadas com sua carenagem de pintura queimada de sol. O interior, que havia sido luxuoso há uns dez anos, abrigava o homem de blazer apertado, perfume de pós-barba e careca mal coberta pelos cabelos molhados. O veículo parou em frente ao cinema e o potente motor silenciou. O homem conferiu as costeletas bem aparadas no retrovisor, saiu do carro, destrancou a porta da frente do velho prédio, e entrou no Cine L’amour.

Lá dentro, o funcionário ainda uniformizado arranjava os produtos na bomboniére, separando as balas, as camisinhas, os chocolates e refrigerantes. Deixava o hall pronto para a próxima sessão, que só viria algumas horas mais tarde. A mocinha recém contratada já terminara de limpar a sala de cinema — mais rápido que a funcionária anterior, faça-se justiça — e já tinha ido embora. Só mais tarde retornaria. O painel interno trazia elencados cartazes de clássicos que haviam desfilado nas telas do L’amour. Debbie does Dallas, com Bambi no característico chapéu de cowboy e um decote levemente insinuante sobre uma estrela azul; a gulosa Linda Lovelace destacando-se boquiaberta sobre o fundo amarelo vibrante do cartaz; Miss Jones em todo o seu esplendor tipográfico preto e vermelho; e um elenco de estrelas de penteados ultrapassados e beleza e lascívia eternizadas em vinte e quatro quadros por segundo.

O homem recém chegado cumprimentou o rapazote que terminava seu trabalho, chamando-o pelo nome que trazia no crachá preso à lapela. Gil, estava lá escrito. E Gil respondeu ao patrão com a mesma simpatia, e talvez mais uma inflexão quase imperceptível, mas que sempre há na voz quando esta parte de um jovem funcionário ao patrão. Patrão conferiu, muito por cima, o trabalho e parabenizou o rapaz com um tapinha nas costas. O rapaz disse que estava quase terminando e que já ia sair para sua folga. Voltaria depois para a outra sessão. Graça, ele lembrou, já tinha saído. Mas já terminara todo o serviço. “Rápida essa mocinha, não? Acho que foi uma boa contratação”. Foi o que disse Patrão, tanto para si quanto para o funcionário, que sorriu afirmativamente em retorno. “Então tudo certo. Se todo mundo já foi, pode ir para a sua folga. Eu fico aqui até vocês voltarem. Vai aproveitar a vida que depois que você ficar velho não vai dar mais”, Patrão disse rindo. “Tudo bem”, o jovem respondeu, “mas de qualquer jeito, o Seu Genaro ainda está aí, mesmo” e foi saindo em direção à porta. “Ainda?”. “É, deve estar na sala de projeção”, disse o rapaz sem ligar para o tom de surpresa na voz patronal. Nem ouviu o homem no terno apertado deixar escapar por entre os dentes um “outra vez?” E já estava do lado de fora quando, balançando a cabeça, Patrão falou em voz baixa “velho safado”.

O suculento lábio inferior escondia o seu vermelho por trás do branco dos incisivos superiores. Os olhos sombreados, levemente fechados, deixavam escapar por entre os cílios longos o verde das íris. Uma gota de suor escorria pelo pescoço esguio e feminino, até chegar a um peito arfante, pingado de suor que descia pelos seios nus, fartos, balançando ritmados pelo movimento imposto pelo rapaz fora de cena. A câmera abre revelando o casal. Ela reclinada para frente com os braços apoiados na penteadeira, rosto refletido no espelho que refletia também o rapaz, de pé, atrás dela. Os cabelos colados no suor das costas, cintura curvada para trás, nádegas empinadas, as pernas bem lapidadas, abertas. A cena era toda dela. Dois corpos engalfinhados num espetáculo particular para o deleite de um velho sentado numa cadeira de madeira ao lado do maquinário ultrapassado. Os cabelos grisalhos e o olhar vago repetiam a figura do crachá pendurado no bolso do uniforme bordado “Cine L’amour”. De dentro da penumbra da sala de projeção só nascia o som companheiro da película passando pelos rolos do projetor antigo, naquele gemido baixo tão conhecido e confidente. O auditório visto além da janela de projeção permanecia vazio e limpo, no escuro. A única luz provinha do telão iluminado pelos corpos nus gigantescos e por um lampejo rememorado na mente, como uma reprise por demais repetida. O áudio do filme vinha lá de fora, junto com a pouca luz do auditório, trazendo gemidos gulosos, pedidos libidinosos e memórias insaciáveis para a sala de projeção escura. A porta se abriu de repente, mas sem violência. O homem de terno apertado entrou e acendeu as luzes balançando a cabeça de um lado para o outro, mais para si do que para o velho, que rapidamente desligou o projetor interrompendo um gemido e uma cara de dor mal interpretada na grande tela.

"Outra vez, seu Genaro?" Foi com um suspiro que o patrão falou. E o velho soube na hora que aquele suspiro significava mais que a própria frase. Baixou a cabeça envergonhado, triste e saudoso. De um tempo que foi e de um tempo que estava para ir, para sempre. Patrão puxou uma cadeira, colocou-a à frente do mais velho funcionário e sentou-se. Os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos unidas em meditação, a cabeça baixa revelando para o velho uma careca ainda mais evidente desta posição. Inspirou o ar como se fosse pesado e deixou que lhe saísse pelas narinas com o mesmo peso, como se abandonasse uma carga por demais carregada. Levantou o tronco e falou para o velho, que mantinha o olhar baixo, fitando as pontas desgastadas dos próprios sapatos de bicos arredondados.

"Seu Genaro, há quanto tempo o senhor trabalha aqui? Sempre foi um funcionário tão exemplar! Discreto, sempre no horário. E eu não retribuí direitinho tudo isso? Sempre paguei o senhor em dia, sempre tratei com respeito, volta e meia até lhe dava um bônus, não é? E eu nunca liguei de o senhor, ou qualquer outro, vez ou outra assistir a um filme por aqui, desde que deixasse tudo limpinho, não incomodasse ninguém, que fosse sempre discreto. Mas já não está dando mais, seu Genaro! Esses últimos anos está demais. É todo dia, homem de deus! Nem deve ser saudável pra um homem da sua idade. Eu até entendo que um homem vez por outra precise relaxar, se divertir, se dar o direito. Às vezes a gente tá meio sozinho, eu sei como é isso. Mas já está afetando o trabalho! Eu já avisei o senhor outras vezes, mas agora não posso mais ficar fazendo de conta que não estou vendo. Eu vou acertar todas as contas certinho com o senhor, vou até lhe adiantar o salário cheio do mês, mas vou ter que dispensar o senhor, seu Genaro. Não tem outro jeito."

O velho manteve os olhos no chão durante todo o discurso. Não sabia o que dizer. Apenas largou, por sua vez, um suspiro longo, levantou a cabeça e olhou para o patrão com os olhos baços. "Olhe, se quiser lhe faço uma carta de recomendação", Patrão disse antes que se pronunciasse. "Obrigado, patrão". Foi tudo o que disse o velho. Patrão levantou-se da cadeira, apoiou a mão no ombro do funcionário e saiu, fechando a porta atrás de si. O velho ficou um tempo olhando pela janela de projeção a tela branca, imaginando na sua mente as cenas que vira ali tantas vezes. Os corpos, os gozos, os sexos. A saudade. Tirou o crachá do uniforme e o colocou ao lado do projetor. Tocou o corpo metálico do equipamento percorrendo-o com o dedo de unha comprida, como se fosse corpo de amante. Abriu a porta e deixou a sala apagando a luz. A porta se fechou devagar enquanto o velho Genaro descia os degraus, passando pelas cadeiras forradas de vinil, pela grande tela branca, pela porta dupla, pela última vez.

O vento lá fora trazia um cheiro de chuva que ainda não chegou. O dia estava cinza mas ainda seco. Genaro seguiu as paredes pichadas, as portas metálicas das garagens, as bancas dos ambulantes. Deu à rua principal com a cabeça baixa, parando na esquina esperando o sinal abrir. Olhou por sobre o ombro e viu, uma quadra abaixo, o Cine L'amour lhe piscando um adeus privê. O homenzinho verde apareceu e os carros pararam. Genaro se perdia entre as faixas brancas pintadas no asfalto, o cheiro de escapamento e o ronco dos motores. Caminhava até o ponto de ônibus mesmo sabendo que o seu já tinha passado e o próximo demoraria ainda uns quarenta minutos. Sentou-se no banco velho que o recebeu, como os velhos, com um rangido, que suas articulações prontamente responderam em reconhecimento. Assistiu os carros passarem, as pessoas passarem, a vida passar, como se fosse um filme sem graça, sem gozo. Barulhos demais, sussurros de menos. Saudades demais. Depois de quinze minutos viu, no outro lado da rua, a menina recém contratada do L'amour chegar. Graça, era o nome dela, parece. Que nada tinha a ver com a moça, pensou o velho Genaro — Seu Genaro — ela dizia. Ele não dizia nada, que graça não via na moça. Ela dobrou a esquina e desceu a rua pichada. Genaro via as pernas finas, as ancas magras balançarem forçadamente de uma lado para o outro. Trabalhadora, dizia Patrão. Gil também confirmava, dizia que seu Genaro é que estava ficando amargo. Genaro estava, é verdade, mas mesmo assim não simpatizava com a moça que trabalhava ligeiro.

Genaro conhecia o L'amour. De quando chegou, anos antes. Os negócios iam bem, Patrão tinha comprado um novo carro, tinha mais cabelo e um terno menos apertado. As costeletas, já as tinha bem aparadas àquela época. Genaro cuidava de tudo. Limpeza e projeção. Mas Patrão decidiu pôr alguém pra ajudar Genaro. "Seu Genaro, o senhor fique apenas com a projeção. Que eu vou arrumar alguém para lhe ajudar nos trabalhos mais pesados". Patrão arrumou. Deixou o velho Genaro mais folgado, cuidando dos filmes e das sessões apenas. E já contratou logo mais gente. Tinha um rapaz bem novo, no lugar de Gil. Genaro não lembrava mais o nome dele, lembrava que ele um dia não apareceu mais, simplesmente. Foi daí que Patrão contratou Gil. E tinha a Dona Cida. Maria Aparecida, o nome dela. Ela também, velha em idade mas não tão velha quanto Genaro. Devia ter uns quinze, dez anos menos, provavelmente. Genaro nunca havia perguntado. Uma pena.

O ônibus chegou ruidoso, despertando o velho com um susto. Com esforço subiu os altos degraus e embarcou, enquanto a luz dos postes começava a acender prematuramente, prevendo a noite que se adensava. Sentou num acento vago no fundo do ônibus. O mesmo de sempre, velho conhecido, que fazia o caminho aos bairros distantes que abrigavam velhos sozinhos em quitinetes de azulejos dos anos sessenta. Barulhento, expelia baforadas negras como dum cachimbo sujo enquanto vencia os buracos da cidade resmungando como um velho chato e rabugento. Lá dentro, nos últimos bancos, outro velho, menos rabugento, se perdia entre os demais passageiros. Nenhum tão velho quanto ele. Talvez aquela senhora dormindo, de cabelos brancos e rugas nordestinas nas faces, com a cabeça quase tocando a janela e uma roupa florida combinando com a bolsa de crochê. Será que iria ela também para uma quitinete de azulejos velhos? Genaro não se importava. Já mal reparava na mulher. Os primeiros pingos começavam a tocar de leve as janelas do ônibus que, embaçadas, lembravam uma tela branca.

Uma tela branca que recebia cenas obscenas e belas, ejaculadas de um projetor que gemia gracioso para uma platéia desconhecida. A sala, nunca muito cheia, como convinha. Bastante espaço para que os clientes aproveitassem o filme preservando suas identidades e seus pudores sem um cotovelo desconhecido ao lado ou o cruzar com um rosto não tão desconhecido. Raros casais sentados nos cantos com mãos ligeiras. Velhos sozinhos rememorando ou fantasiando. Garotos em hordas que não deveriam estar ali. Solitários e oportunistas na esperança de encontrar um par sob a luz dos pares - ou trios, ou grupos - que copulavam na tela iluminada. Lá embaixo, na porta ao lado da primeira fileira, vazia como sempre, Dona Cida aguardava com a vassoura, os panos e as luvas o fim da sessão, olhando a tela, disfarçadamente a plateia, ou o rastro de luz que entrava pela janelinha de projeção, atrás de todos, até tocar o projetor lá dentro, bem lá no fundo, assim.

A chuva aumentou e Genaro despertou de suas lembranças. Só então percebeu que a velha tinha acordado e ido embora. Seu olhar de velho despedido permanecia cravado na janela onde, há pouco, uma cabeça esbranquiçada e sonolenta quase batia. Aguardou mais uns minutos e saltou no mesmo ponto onde saltava todos os dias ao cair da noite. A cobertura de zinco fazendo barulho sob a chuva. Abriu o guarda-chuva e caminhou uma quadra até a entrada de sua casa. Subiu a escadinha externa anexa ao prédio, abriu a porta de sua quitinete e entrou, deixando do lado de fora um dia choroso que chegava ao fim.

O apartamento escuro lembrando uma sala de projeção vazia, onde poderiam estar sentados dois velhos uniformizados olhando uma tela branca onde uma loira de maquiagem borrada era penetrada por trás por um rapaz tatuado enquanto aplicava uma sessão de sexo oral a outro a sua frente, num sofá de couro ao som de suspiros, gemidos e um ou outro tapa de leve nas nádegas arredondadas. Assistindo aos esforços da moça, estariam os dois velhos lado a lado, em silêncio, apenas olhando a tela. Nenhum deles prestaria muita atenção ao filme. Os olhares perdidos nas cenas provocantes apenas disfarçariam os demais sentidos, conectados naquela presença eletrizante ao lado. Como uma fonte de calor ou uma estática que se percebe sem mesmo se ver. Disfarçando o indisfarçável. E nessa falsidade dividida, cientemente falsa e dividida, deixariam-se estar na prazerosa companhia um do outro. Até que a tira de filme chegasse ao fim e a tela se cobrisse toda de um branco viscoso. Naquele o tempo o prazer se alcançava com apenas trinta e cinco milímetros.

Mas ao acender do abajur, nada passava de uma quitinete escura de azulejos antigos. Genaro foi ao banheiro, retirou as calças de barras molhadas, ligou o chuveiro quente e deixou que a água lhe lavasse o resto de dia que escondia-se entre as rugas de seu corpo. Caminhou sua flacidez nua até a cama no quarto-sala-cozinha, vestiu o pijama e os chinelos apeluciados, num raro momento de prazer verdadeiro. No fogão requentou a sopa de ontem e foi tomar sua refeição no sofá em frente ao aparelho de tevê de poucos canais. A pequena tela brilhante lhe parecia débil quando comparada à enorme tela do L'amour, que preenchia de vida alguns corpos carentes, dela ou de algo mais. Esticou o cotovelo para o lado num movimento quase automático, esperando que esbarrasse em outro cotovelo. Esbarrou, ao contrário, numa ausência há um bom tempo presente.

Uma ausência que o acompanhava desde a última vez que teve alguém ao seu lado na sala escura do Cine L'amour. Quando todos iam-se embora e ela, Aparecida do nada, surgia a limpar as poltronas de vinil e os corredores de sal, pipocas e sujidades mais. Ele lhe sorria com os lábios murchos dele. Ela lhe sorria com os dentes falsos dela. E eram os sorrisos mais firmes e sinceros que aquela tela haveria de presenciar. Ele colocava o filme a passar de novo, com a desculpa de entreter o trabalho — e outro tipo de filme não havia no L'amour — e ela consentia com indisfarçado contentamento. Ele ficava ao seu lado, lhe fazendo companhia. Pouco conversavam. Conversar mal era preciso para quem já tinha conversado uma vida toda. Quando ela terminava, sentavam lado a lado na sala pouco iluminada até que o filme e os gemidos acabassem e que a tela orgásmica cobrisse-se novamente de branco. Ele então guardava os rolos, desligava o projetor e iam embora até despedirem-se no ponto de ônibus. Aos poucos a estática entre eles ia diminuindo e, instintivamente, aproximavam-se mais um pouco até que aquela vibração invisível ou aquele calor de corpo velho voltasse a se estabelecer entre eles. Um dia os cotovelos enrugados encontraram-se. Os olhares então deixaram a tela onde uma ruiva muito nova masturbava um homem de bronzeado artificial que devia ser bem mais atraente quando mais jovem. Cida, encabulada, mais pelo toque dos cotovelos do que pelo filme. Genaro lhe estendeu a mão, que ela aceitou. Ficaram de mãos dadas assistindo a ruiva receber aos seios o membro viril do homem bronzeado.

No televisor não havia ruivas nuas ou bronzeados depilados. Apenas uma apresentadora de telejornal comportadamente vestida. Quanto a Genaro, ao seu lado havia apenas aquela ausência tão presente nos últimos anos. Levou o prato fundo à pia e decidiu não lavá-lo, mesmo que fosse pouco o trabalho. Meteu-se embaixo das cobertas e apagou as luzes. Sentado ainda na cama, viu o televisor desligado, a pia com a louça suja, a janela da sala mostrando o riscar da chuva lá fora. Deitou com a chuva de dentro represada. Na manhã seguinte acordaria só. O Cine L'amour desaparecera de sua vida. Também.

Dormiu um sono agitado. Sonhou-se sentado nas poltronas de vinil, mãos dadas com Dona Cida. Maria Aparecida. À sua frente, sexos gigantes se encontrando, se penetrando, se lambuzando numa grande tela luminosa, com gemidos escorrendo densos e um calor nas palmas das mãos velhas e suadas de dedos entrelaçados. Sonhou que seu colchão velho tinha recebido o dorso manchado de uma velha de dentes falsos e sorriso verdadeiro. Com seu membro inerte mostrando alguma vida e rememorando a juventude perdida, entre pernas magras idosas. Depois com o descansar de dois velhos entregues novamente à companhia um do outro. Todos os dias de mãos dadas, numa cópula de dedos entrelaçados, de palmas confidentes. Sonhou com o primeiro dia em que reprisou o filme e o assistiu sozinho. Dona Cida não aparecera. Gil o ajudara na limpeza aquele dia. No dia seguinte também. No outro, novamente. Na semana seguinte, com Dona Cida desaparecida, Patrão teve de contratar Graça. Quase mês depois, veio saber, Dona Cida havia falecido. Foi visitar uma prima doente e nunca mais voltara. Acabou que Graça ficara em definitivo no L'amour. Rápida, a moça, de fato. Terminava o serviço quase na metade do tempo. Ainda assim Genaro não gostava muito dela. Depois que ela saía, ficava na sala de projeção escura e ligava o projetor que gemia baixo ao seu lado, acompanhando as cenas do último filme que assistira com uma mão na sua. E revia, todos os dias, na grande tela, a morena voluptuosa de cabelos negros ser possuída por um mexicano enquanto acariciava uma loira de seios enormes.

Acordou lembrando aquele último dia. As luzes acesas da sala de projeção, Patrão à sua frente, a sala do cinema limpa e vazia, no escuro. A tela, naquele dia, não havia ficado branca ao fim do filme. Naquele dia, após a limpeza, ao ter o filme interrompido, a tela do Cine L'amour havia ficado negra.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

À Mainha Morta

eu rio
do rio

pruquê
o rio tá na vala, mainha

padinho diz
que quâno rio inchê
vai dá di vê meu riflexo

mas já dá, padinho
que o rio é marrom e rachado
qui nem minha cara di sertão

até meus óio verve mais água qu'esse rio

eu cuspo
pelo buraco onde tinha um dente
pra vê se o rio enche di novo

ai di mim, mainha

o poço secô
tu já morreu
painho sumiu

padin diz que foi pro rio

mas eu tô no rio
e
o rio secô
o rio rachô
e painho não tá
no rio, mainha

'que o rio tá seco
e velho
que nem eu
vazio

domingo, 4 de outubro de 2009

Desmetrica Mente

tanto tempo
tantintento
tem totanto
me livrar

da forma
(a que dá forma)
........[a queda à forma]
que disforma
que deforma
que conforma
........com forma

transtorno
transtorno
transpiro
expiro
esporro

preso à pressa
à prece à prensa
preso à porra da madrerrima
spiritum sanctum do verso nostrum

........[vade-mécum
........(vá de retro)

Relicário velho
Relicário relho
Reles cárie
........(extração)

me afeta
o afeto
infecto
incerto inseto
inserto goelabaixo

e
me apego
me apago
no pirófagafago
de línguas de fogo
do verso pagão

enterro interno
o verso beato
com uma pá de terra
duas pás de cal

e um punhado de pretérita certeza

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Flores na cabeça

Flores na cabeça

Começou quase imperceptível. Apenas uma sutil vibração, breve mas insistente, percorrendo a poeira da estrada de terra cercada de flores sob o céu azul primaveril. No cenário quase bucólico, as casas de tijolos à vista à beira da rua pareciam guardar segredos silentes por trás das fugas brancas das paredes e dos gramados cercados de pétalas, canteiros e aromas de bolos de banana com farofa. Foi só muito aos poucos, a lentos passos, que a melodia se fez, de fato, audível. Um assobio que saltitava alegre nas notas de diapasão, embalando as flores numa dança discreta na brisa suave que o vento soprava com cuidado exagerado.

O assobio nascia num vão entre um par de lábios volumosos de tom café, contornados por uma barba baixa que cobria um rosto de onde espiavam olhos curiosos. A mochila nas costas jingava com o andar cadenciado ditado pelos passos errantes das botas de solado grosso e couro resistente empoeirado. A camisa listrada retribuindo as cores das flores que margeavam o caminho.

Parou à sombra de uma árvore de copa recém podada, próxima a uma casinha de tijolos aparentes e floreiras nas janelas, admirando o telhado pontiagudo. Cessou o assobio ouvindo com prazer o silêncio da rua decorada e o som da brisa nas folhas. Sentou à beira da estrada, deitou ao chão a mochila e bebeu a água fresca de um cantil de alumínio, dividindo o espaço com as borboletas das flores junto à cerca, logo ao lado.

Se perdeu na delicadeza das asas e nem percebeu a chegada da criança loura que saltitava saindo do jardim bem aparado da casa. Foi o som do riso da menina que o despertou. Mas quando a criança o viu, hesitou desconfiada, parando junto ao portãozinho de madeira.

— Oi — Foi ele quem cumprimentou, jovial.

A criança não respondeu e ficou brincando à distância, lançando-lhe um olhar de soslaio vez por outra, um tanto ressabiada. Ele riu e retornou a atenção às borboletas, que vinham lhe brincar nos braços. Tocou com a ponta do dedo as asas coloridas e viu o inseto levantar voo até pousar-lhe na cabeça. Mais uma risada infantil lhe chamou a atenção.

— Parece um laço — Divertiu-se a menina loura de vestidinho, apontando para a borboleta na cabeça do forasteiro. Ele riu com o chiste e a menina se aproximou.

— Você é um vagabundo? — perguntou a criança.

Ele se espantou, em princípio, mas logo riu mais uma vez com vontade, fazendo voar a borboleta da cabeça. Mas não. Ele era apenas um viajante.

— E o que faz um viajante?

— Viaja — respondeu sorrindo.

Colheu uma flor amarela e colocou no cabelo louro da menina.

— Pronto. Agora você também tem um laço.

Ela sorriu. Mas em seguida dirigiu um olhar preocupado para a porta da casa de tijolos aparentes e disse:

— Meu pai não vai gostar disso. Ele diz que as flores têm que enfeitar o jardim.

— As flores ficam bonitas nos jardins, sim. Mas eu acho que elas deveriam enfeitar mais as cabeças das pessoas — respondeu o rapaz com calma.

— Ora, onde já se viu flor na cabeça? Lugar de flor é na rua. Ou na frente de casa. Minha mãe até chama um tio pra deixar elas bonitas ali perto da porta.

— Mas aí as borboletas não vão querer visitar a sua cabeça. No máximo vão passar pela sua rua, mas não vão querer pousar em você.

— Hum... Meu pai nunca falou nada sobre as borboletas.

— Deixa eu adivinhar: ele não tem flores na cabeça, tem?

— Não... Ele tem em volta de casa, tem na entrada da garagem, mas na cabeça nunca colocou, não... Mas você também não tem flor na cabeça e a borboleta pousou em você!

— É que quando você põe uma flor na cabeça uma vez, um pouquinho dela fica ali pra sempre. Como se fosse um perfume. Aí as borboletas percebem e acabam pousando em você.

— Eu queria ter mais flores na cabeça. Mas aí meu pai vai brigar. Elas tem que ficar aqui fora, pra deixar a fachada mais bonita e pra todo mundo ver que as borboletas passam por aqui.

— Talvez, se mais gente colocasse flores na cabeça, a gente não precisaria de tantas flores nas fachadas. As borboletas viriam da mesma forma e o perfume estaria sempre com a gente, em todos os lugares. Com as pessoas andando por aí, as flores iriam se espalhando pelas casas, pelas ruas, pelas outras pessoas. Haveriam flores e borboletas em todas as ruas.

— Ah! — a garota falou esperançosa, levantando o dedinho para o céu como quem lembrou de algo importante ou pede a vez para falar — Vou fazer como a minha mãe, então. Ela tem um arco de cabelo cheio de flores que nunca murcham. Vou usar sempre!

— Acho que esse não vai adiantar. As flores do arco são de plástico, não são de verdade. Por isso não murcham. Elas só parecem flores, mas se você olhar de perto vai perceber que elas não tem perfume, porque são de mentira. E as borboletas não vêm em flores de mentira. Quando uma flor é de verdade, ela pode até murchar algum dia, mas acaba deixando uma sementinha que vai fazer brotar outra flor. Assim elas se renovam e mantêm sempre o perfume.

— É melhor eu voltar pra dentro. Meu pai não gosta que eu fale com vagab... — com estranhos.

— Tudo bem. Foi legal conhecer você, viu?

A menina retirou a flor do cabelo com cuidado e a colocou no bolso do vestido. O rapaz sorriu tranquilo, sabendo que um pouco dela continuaria na cabeça da criança, que logo saiu correndo na direção da casa. O jovem levantou-se, colocou às costas a mochila e seguiu o caminho pela estrada de barro com algumas borboletas no seu encalço. Saiu assobiando a melodia alegre que ia desaparecendo da vizinhança das casas de tijolo à vista e cheiro de bolo de colono. A melodia foi baixando, baixando, sumindo, sumindo, até deixar no ar apenas aquela vibração quase imperceptível, que foi dando lugar ao som do vento nas folhas e o de alguma criança levando bronca por ter arrancado uma flor do jardim.

* Update: Conforme comentário meu do dia da postagem, esse texto acabou mesmo passando por uma pequena reedição. O título, do qual eu havia reclamado, ironicamente se manteve, mas nesta versão algumas construções mudaram e alguns trechos foram ajustados. Acabou ganhando um volume de texto um pouco maior também. A motivação para a atualização foi a publicação na próxima edição do jornal Expressão Universitária, do Sinsepes.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte Final (XII)

Não recebi nenhuma nova notícia sobre a contenção da inundação nos porões, mas parece que continuamos na mesma situação. O clima continua fechado e a chuva aumentou um pouco, mas ainda não há ventos para soprar para longe este nevoeiro que nos cerca. A temperatura continua baixa e, pela trajetória do Cirella à deriva, creio que devemos estar sob a ação de alguma corrente marítima. Nosso capitão passou por um período dando ordens quase que a esmo, até mesmo contraditórias, mas agora parece estar tentando ganhar novamente a confiança da tripulação e caminha entre os homens congratulando-os pelo trabalho, distribuindo pequenas bonificações e prometendo maior parte nos lucros. Eu mesmo tenho sido alvo freqüente destas iniciativas, mas as promessas continuam promessas, e o Cirella, ainda que sob os nossos esforços de reparação, continua à deriva. Rastani tem ficado mais tempo na cabine contabilizando nossos recursos restantes do que contribuindo para sanar os problemas e o Peregrino agora fica mais retirado do que nunca, e raramente dá as caras no convés ou junto aos marinheiros. Agora, para honrar as recentes baixas que tivemos e os companheiros que entregamos ao mar, devo retomar os meus relatos enquanto a efêmera estabilidade que nos acalenta se mantém presente.

Apesar dos ferimentos, dizia eu, continuávamos a postos encurralando os homens do Amret contra o restante de seus canhões, que miravam maliciosamente o Cirella. O impasse iluminado pelas tochas não dava sinais de ceder frente às negociações de nosso capitão com o comandante do Amret. Nós não abriríamos mão da conquista do porto e eles não aceitariam a derrota de mãos vazias. Naquela noite fora proclamado, sob as chamas inquisidoras das tochas, um acordo do qual jamais falaríamos novamente e do qual a ciência deveria ser sepultada ali, como um dos que padeceram em combate. O Amret e seus homens iriam poupar o Cirella do trágico fim e a nau inimiga não seria destruída por nossos adversários. Eles não mais ofereceriam resistência a nossa conquista do porto e nós poderíamos novamente nos pôr rumo ao nosso desejado destino. Em troca, o Capitão Tino cedera ao capitão do Amret parte da carga e das riquezas que transportávamos no Cirella e se comprometera em agraciar nossos antagonistas com a quinta parte de nossos lucros com as mercadorias do porto, mesmo os homens do Amret não tendo nenhuma participação nos trabalhos e viagens a nossa nova conquista. Um acordo que permaneceu obscuro naquele porão emprenhado pelo pó negro e por homens rubros e abatidos.

Lembro daquela aurora com um pesar ainda constante. Os raios do sol iluminaram o que restara de nossa embarcação e a fila de corpos cobertos pelos tecidos vulgares no nosso convés. Despedimo-nos de nossos companheiros silenciosamente e os deixamos aos cuidados do oceano para um sepultamento no leito daquele que fora o último campo de batalha em que eles adentraram. Passamos o restante do dia calados e tentando colocar o Cirella novamente em condições de navegar, ao menos até algum porto onde poderíamos fazer os reparos de forma mais segura. Naquele dia silencioso só se ouvia a voz de Sadiano se congratulando pela conquista e contabilizando as riquezas que iria tornar a acumular. Enquanto nós, silenciosos, contabilizávamos os danos sofridos pelo Cirella e pelos homens que por ele lutaram.

Acabo de retornar do convés. As novas que trago preencherão estas últimas linhas de mais infortúnios, como se ainda não tivesse relatado suficientes. Bogus reuniu os homens para dar a notícia. Nero sucumbiu há algumas horas. Nenhum de nós nutria muita esperança por sua recuperação, mas as histórias do velho marujo continuarão ecoando nos porões e entre os homens do Cirella.

Uma fina camada de cera separa agora a chama da mesa e o pavio negro pende torto, moribundo. Um silêncio percorre as câmaras restantes de nosso ataúde avariado, enquanto as ondas embalam o mudo Cirella. Um silêncio de luto. Não por aqueles que se foram, nem por aqueles que permanecem, mas pela chama que se extingue sepulta pela cera branca sobre o tampo amadeirado, deixando que a escuridão se apodere por completo da história do Cirella.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte XI

O céu nublado trouxe uma escuridão precoce quando o sol se pôs, e apenas dois pontos brilhantes chamejavam sobre as ondas baixas que embalavam os dois archotes a uma distância pequena demais para propiciar um descanso tranqüilo aos seus tripulantes. Sabíamos que aquela seria uma aurora violenta. O sol se ergueria vermelho do oceano e se confundiria com o nosso sangue que certamente tingiria as águas se entrássemos em um combate aberto contra o bem armado Amret. Jamais chegaríamos próximos o suficiente para abordar a embarcação inimiga à luz do dia. Se chegássemos ao alcance dos canhões adversários nosso casco não suportaria os danos e não nos seria possível engajar ao combate corpo-a-corpo. E o Cirella não possuía poderio suficiente para suplantar os canhões de bronze de nosso adversário no combate à distância. Era preciso que tomássemos a iniciativa da ofensiva na esperança de surpreender nossos inimigos, mesmo que isso significasse o risco de uma navegação às cegas na noite sombria daquelas águas desconhecidas. Preparamos nossas armas sob o convés procurando manter uma aparente rotina para o caso de estarmos sendo observados à distância pelos homens do Amret. Preparamos além das armas, vários metros de cordas e ganchos para uma abordagem ao convés inimigo. Apagamos as lanternas a bombordo deixando apenas iluminada a lateral do navio voltada ao Amret, a boreste. Encobertos pela escuridão, baixamos os botes ocultos dos olhos de nosso antagonista e os enchemos com nossos melhores combatentes e com as cordas devidamente preparadas. Os botes foram levados em silêncio e completa escuridão para próximo da nau inimiga e aguardaram o momento de agir. Os outros dentre nós que ficaram a bordo preparam o melhor possível o Cirella para uma investida noturna na esperança de que os vigias, em meio à escuridão, não percebessem nossa aproximação há tempo de preparar sua defesa ou ao menos que a precisão da artilharia inimiga fosse prejudicada. Assim que todos se colocaram a postos, apagamos todas as lanternas a bordo, envolvendo definitivamente o Cirella na escuridão da noite, e mudamos o curso para interceptar nosso adversário que reluzia solitário sobre as águas escuras e frias que aguardavam silenciosas o embate.

Entramos no alcance dos canhões inimigos e nenhum alarma aparentemente fora dado. Enquanto isso os botes, também envoltos pela noite se aproximavam sorrateiramente do casco do Amret, prontos para desovarem no convés um pequeno enxame de combatentes. Nosso subterfúgio, no entanto não fora suficiente para uma surpresa completa e logo os vigias inimigos deram pela falta de nossas lanternas ao longe e perscrutando a noite localizaram o Cirella se dirigindo a eles como um aríete obscuro. O alarma fora dado e a movimentação no convés inimigo se intensificava com a artilharia se preparando para a primeira salva, e a infantaria toda a bombordo pronta para repelir nossas amarras e tentativas de abordagem. Enquanto isso, a boreste do barco adversário, os botes começam a liberar homens que escalavam, com o auxílio das cordas, rumo ao convés inimigo. A primeira saraivada rasgou a noite com um uníssono trovejar que despejou o aço quente nas águas a nossa volta. A escuridão que nos protegia também não nos permitia ver os projéteis que nos procuravam nas trevas e a expectativa do impacto se tornava tão angustiante quanto o próprio arrematar das esferas metálicas. A segunda descarga cruzou perigosamente o inconseqüente e destemido Cirella e uns dos projéteis transpassou uma de nossas velas secundárias deixando em seu lugar um vão negro preenchido pelo céu escuro.
Antes que a próxima bateria se preparasse nossos homens haviam deixados os botes e arremeteram contra a artilharia inimiga, que surpreendida cedia sob a fumaça das pistolas, o cheiro da pólvora e as lâminas velozes. Com o caos perpetrado na nau inimiga, reacendemos as lanternas do Cirella iluminando nosso único e ultrapassado canhão de retrocarga. As recargas estavam preparadas e arma posicionada no bordo do Cirella, que já se posicionava para o tiro. Enquanto nossos homens enfrentavam o contra-ataque da infantaria do Amret no convés adversário, o Cirella cuspia esferas de ferro contra o mastro e as velas inimigas a fim de aleijar nosso antagonista. Mesmo com a artilharia severamente debilitada os canhões de bronze do Amret ainda eram uma ameaça, e à curta distância não demoraram a mostrar seu poderio. Logo o impacto do fogo inimigo avariou nossa embarcação causando estragos tanto ao Cirella como aos homens a bordo, que caíam sob os estilhaços do navio que voavam aos montes. Nossos homens debilitaram nosso inimigo o suficiente para que pudéssemos nos aproximar para a abordagem e logo as amarras voavam de um navio ao outro e as pranchas de madeira eram estendidas entre os conveses.

Investimos com o restante de nossos homens sobre o convés inimigo unindo nossas forças àquelas dos nossos companheiros que iniciaram o ataque. Àquela distância o Cirella era presa fácil para os canhões inimigos e o casco se rompia ante a ferocidade das armas. Ao Amret, com o mastro partido e deitado sobre o convés, não restava muito a não ser tentar suportar nossas forças no convés e continuar a punir nossa embarcação e os homens que nela haviam ficado tanto quanto fosse possível com o restante de sua artilharia. Ao mesmo tempo em que sobrepujávamos as forças inimigas, o Cirella se esfacelava sob uma nuvem de fumaça e poeira e ameaçava, vagarosamente, entregar suas forças e mergulhar ao leito do oceano. Nosso antigo canhão, de ferro fundido, explodiu durante um tiro, arrancando parte do bordo de nosso navio e a vida de pelo menos dois de nossos homens. No entanto, a bordo do também castigado Amret, já havíamos suplantado as forças opositoras que se entrincheiraram no convés inferior, junto à segunda linha de artilharia. Com o convés principal seguro, o Capitão Tino abordou a nau inimiga para exigir a rendição ou comandar o último ataque contra os sobreviventes. Apesar das várias baixas que tivemos e das várias que ainda teríamos devido aos ferimentos desta batalha, tínhamos na boca o gosto da vitória misturado ao do sangue. Mas os rumores sobre os ardis de nossos adversários não eram despropositados. Quando abordamos o convés inferior do Amret nos deparamos com todos os homens armados de tochas incandescentes e com toda a força da artilharia inimiga pronta e apontada contra o agonizante Cirella. Ao redor deles, barris de madeira abarrotavam o compartimento e preenchiam o ar com o cheiro da pólvora. O Cirella não suportaria outra salva a esta distância e estaria condenado caso nossos inimigos disparassem. E eles estavam prontos para sacrificar a conquista do porto, para sacrificar sua própria embarcação, para não serem derrotados. A tensão se tornava palpável e o bruxulear das tochas sobre os barris mostrava que aquela batalha não teria vencedores.

O pó negro exalava um cheiro forte no convés abarrotado. Muitos de nós estávamos feridos, mas continuávamos a postos no convés inferior junto com nossos companheiros. Nosso Imediato, Bogus Napolle, tinha a perna lacerada por uma lâmina inimiga e mancava terrivelmente. Eu mesmo, que havia acompanhado a segunda investida sobre o navio inimigo, naquele momento ainda portava o chumbo adversário no antebraço esquerdo. Admirando agora o ferimento recém cicatrizado à luz da vela que se encolhe enquanto escrevo, penso se Nero resistirá aos ferimentos que lhe foram impostos.

Nero Marquesia é um dos tripulantes mais velhos do Cirella. Quando me juntei à tripulação desta remendada embarcação não o conhecia, e o espírito reservado do marinheiro fez com que só após algum tempo no mar ele passasse e me contar as suas histórias com o sotaque marcante característico. E com o passar deste tempo eu percebia que este era um dos seus maiores passa-tempos sobre as ondas. E maior parte dos companheiros de convés também se aprazia com as histórias do velho marujo. Nas noites de calmaria, à luz de uma lanterna, os causos do velho Nero eram o divertimento da tripulação. E agora ele passa os seus dias em um leito tentando suportar aos ferimentos sofridos naquela noite belicosa. Quando nosso canhão explodiu em combate lançou ao ar estilhaços de madeira e metal que se espalharam por boa parte do convés. Nero fora atingido em diversas áreas do corpo por esses estilhaços e ao que parece por uma das câmaras de recarga lançadas pela explosão da arma. Os ferimentos o puseram inconsciente e, se não fosse pelos cuidados de Frei Renalier, possivelmente já teria sucumbido. Agora ele oscila entre períodos de consciência e inconsciência e é acometido quase que constantemente pela febre, possivelmente decorrente da inflação de um dos ferimentos. Nosso Frei se divide entre os cuidados de um cirurgião e as preces de um sacerdote, enquanto o resto de nós apenas torce para que ele resista. Infelizmente parece que nosso companheiro fará mais uso das preces do que dos ungüentos e dá sinais de que pode não agüentar nem mais uma semana nas precárias condições em que nos encontramos.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte X

Como o Peregrino ficava em sua saleta nos porões do Cirella, a tripulação não lhe dedicou muita atenção a princípio. À medida que parávamos nos portos, percebemos que Tino se dedicava cada vez mais à venda das ervas do Peregrino em detrimento das mercadorias do Cirella. E os lucros de tais vendas ficavam restritos ao Capitão, seu conselheiro e, obviamente, ao ruivo com voz de criança. A tripulação apenas ganhava seu percentual das especiarias normalmente negociadas pelo Cirella, que diminuíram aos poucos, uma vez que os espaços nos porões da embarcação foram sendo tomados pelas plantas. Aos poucos, o nosso novo tripulante começou a se infiltrar no dia-a-dia do Cirella. Em pouco tempo havia se tornado conselheiro de Tino Sadiano, acima mesmo de Bogus Napolle, o Imediato do navio. Apenas Rastani Cain estava acima dele na embarcação. Com astúcia e promessas de enormes recompensas foi envenenando a mente já frágil e perturbada de nosso capitão a ponto de convencê-lo de que sua sala na ponte de comando do Cirella não era necessária para ele. Seria melhor se ele passasse seus dias mais próximo dos marujos, entre eles, de forma a melhor vigiar e perceber qualquer movimentação que pudesse oferecer risco ao seu comando. E, já que o Capitão estaria junto aos homens e sua sala na ponte de comando ficaria vazia e ociosa, o Peregrino se disponibilizou a ocupar o lugar. Tudo, é claro, para melhor estudar suas ervas e controlar os negócios, visando maiores lucros para ele e para o Capitão. Com o consentimento do comandante máximo da embarcação, o Peregrino passa agora seus dias não mais nos porões do navio, mas sim na cabine de comando.

Acabo de voltar do convés. Ouvi gritos dos homens chamando por ajuda. A água que já havia tomado um dos compartimentos inferiores voltou a se alastrar em nossos porões. Felizmente conseguimos conter a inundação a tempo, mas com isso isolamos o compartimento anterior e não podemos mais bombear a água para fora do navio. Perdemos boa parte da carga nesse ínterim e algumas sacas das ervas que carregamos. Com a chuva que volta a cair esperamos conseguir água potável o suficiente para nos mantermos por mais tempo. Quanto aos mantimentos que nos restam, decidimos começar a racionar, pois não sabemos quanto tempo ficaremos nesta situação. O Capitão pareceu preocupado com o estado de seu navio e mandou levar o dinheiro guardado e seus itens mais valiosos para a parte mais segura do Cirella, que ainda não foi afetada pelos estragos. Penso que se talvez nos livrássemos de parte do ouro ou das ervas nos porões deixaríamos a nau mais leve e poderíamos tentar manobrá-la com mais facilidade ou ao menos o suficiente para conseguir fazer os reparos de emergência. Mas estou certo de que nosso capitão não aceitara tal proposta. Devo retomar agora minha história dos últimos eventos antes que a água volte a nos colocar em perigo e interrompa definitivamente essas breves e desditosas memórias.

Com os porões emprenhados pelas ervas e o Capitão se dedicando cada vez mais ao comércio destas mercadorias, deixando quase que de lado os negócios do Cirella, velejamos por vários mares e cruzamos dezenas de fronteiras. A cada porto parecia que Tino e o Peregrino ficavam mais abastados enquanto o Cirella cada vez mais carente de cuidados, tendo apenas a tripulação olhando por ele. Mas uma esperança surgiu, em um mercado de um porto continental. Rastani Cain negociava os lucros com um dos comerciantes, e este lhe contara uma notícia que poderia colocar novamente o Cirella nas grandes rotas comerciais.

Quase a totalidade das cargas que chegavam àquela localidade era proveniente de um único e distante porto. As embarcações que até então traziam de lá as mercadorias iriam se lançar ao outro lado do mundo, deixando a rota livre para novos barcos. Com a grande demanda de carga exigida, não seriam muitos os barcos que teriam condições de comercializar estes produtos. Eram necessárias grandes dimensões para armazenar carga o suficiente para as viagens e uma grande equipe para conduzir o barco pelas águas bravias que permeavam a rota. A oportunidade despertou o interesse de Sadiano, que via a possibilidade de grandes lucros, e da tripulação que vislumbrava grandes viagens e aventuras. A notícia arrebatou a costa como o vento das monções e logo várias embarcações estavam se preparando para zarpar rumo ao longínquo porto e suas promessas de riquezas. Entre elas, o Cirella.

Nas semanas que se seguiram, todas as embarcações se colocaram em uma corrida rumo ao novo porto. Sabíamos que a maioria daqueles que zarparam jamais chegariam até lá. Mas era preciso não só que lá chegássemos, mas que o fizéssemos antes de nossos concorrentes. Foram semanas de disputas ferrenhas e não raro a corrida se transformava em combate, tingindo o mar de sangue para o deleite dos peixes que seguiam as naus. Para aquelas rotas o Cirella não era um barco a se desprezar e seu porte nos salvou algumas vezes de embates mais diretos, especialmente com embarcações menores ou de tripulação menos numerosa, uma vez que mesmo não sendo militares, nossos homens se faziam às armas quando preciso quase com a mesma intensidade com que se faziam ao mar em busca de aventuras. Nas últimas semanas fomos tomando distância das embarcações menores que iam ficando para trás ou sendo abatidas pelas naus maiores. Felizmente o Cirella sofrera poucas avarias nesses embates, e assim nos víamos em condições favoráveis para a conquista do porto. Nas últimas semanas só havíamos avistado três naus além da nossa. Uma delas pouco conhecíamos, mas identificamos pela bandeira que era uma embarcação originária das terras às quais objetivávamos. Assim, mesmo sendo um pouco menor do que suas concorrentes, conhecia bem as rotas daquela região e nos seguia de perto. Chegaram inclusive a atingir a distância de combate, mas com uma manobra rápida, aproveitando a mudança do vento, alteramos a rota do Cirella e cortamos a frente de nossos adversários. Para um navio de porte maior isso não seria problema, mas para nosso diminuto concorrente, as ondas provocadas por nossa passagem foram o suficiente para desestabilizar o barco, enquanto nós, aproveitando a mudança repentina dos ventos tomávamos distância.

Restavam então apenas dois adversários. Atrás de nós vinha o Amret. Ao contrário da embarcação que já havíamos deixado para trás, este era um concorrente maior que o Cirella e melhor armado. Mantínhamos uma distância segura do navio mas nem por um momento deixamos de vê-lo em nosso encalço. Enquanto isso seguíamos em busca do Reef, que havia despontado a nossa frente sem deixar sinais. A grande embarcação era a maior de nossos mares. Com uma tripulação quase duas vezes maior que a nossa e um barco de porte muito mais avantajado, seria preciso muito esforço para que alcançássemos o Reef a tempo, e ainda assim teríamos de derrotá-lo em combate, um feito que não era impossível, mas tampouco simples. E sem dúvidas não sairíamos ilesos de um confronto tanto contra o Amret quanto contra o Reef. Quem dirá enfrentar a ambos. Sob a pressão constante do Amret às nossas costas e sem sinal do Reef à nossa frente, o clima no Cirella ficava cada vez mais tenso. O capitão esbravejava ordens e estipulava metas em milhas a serem percorridas a cada dia. E a cada dia a diferenças entre ele e a tripulação cresciam. Várias vezes farpas foram trocadas diretamente entre o capitão e alguns dos tripulantes. Sob pressão em nosso próprio navio e sob àquela imposta pela sombra de nossos adversários, os sussurros de motins recomeçavam. Alguns dos homens desejosos de abandonar o Cirella, outros cercados de dúvidas. Mas finalmente avistamos o Reef no horizonte. A imagem do adversário inflamou os marinheiros e a distância entre nós começou a diminuir rapidamente. Apesar disso, seguindo nosso rastro branco no oceano vinha a proa do Amret, como um perdigueiro farejando a presa. A distância entre nosso navio e o Reef diminuía rápido demais e não tardou para que estivéssemos perto o suficiente para identificar o motivo. O mar possui um senso de humor negro e irônico. E agora estava novamente pregando mais uma de suas ardilosas surpresas em nosso azarado adversário. O Reef havia encalhado, ironicamente, em um recife de corais, não oferecendo mais nenhum risco para nós. Um fim apropriado para aquele que trazia pintado no casco o nome do algoz. O Cirella e o Amret, de calado menor que o Reef, não tiveram problemas para passar sobre os corais e seguiram rumo ao porto. Não conseguimos manter por muitos dias a distância que nos separava de nosso perseguidor e logo o Amret se aproximava perigosamente. O embate era iminente, teríamos de rechaçar a embarcação adversária para chegar ao porto em segurança. Teríamos de abordar e derrotar o Amret. E teríamos de fazê-lo em breve.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte IX

Ali mesmo alguns dos homens, incluindo o abalado Fernão, se despediram de seus companheiros e desapareceram entre as ruelas do porto para nunca mais voltarem ao Cirella. Alguns foram contratados por outras embarcações, outros juntaram seus parcos investimentos para comprar pequenos barcos mascates para rotas menos lucrativas e menos arriscadas, e ainda alguns desistiram de vez da vida no mar, buscando novos empregos que não exigissem a incerteza do mar agitado, as constantes mudanças entre calmarias e tempestades e as inevitáveis batalhas que travam aqueles que vivem sobre um convés. Ficamos em terra por vários meses e poucos de nós se dirigiam ao capitão com a naturalidade que faziam antes de nossa última viagem. A avareza e a cobiça tomaram Sadiano e mesmo alguns dos marinheiros que tomaram parte na última viagem não receberam sua parte nos lucros. Mesmo assim Sadiano precisava de sua tripulação para retornar ao mar em busca de mais riquezas. Mas seu barco estava praticamente destruído e sua reputação completamente abalada. O Capitão Tino precisava de um artifício que convencesse seus comandados a embarcar novamente. Apesar das perdas recentes, o capitão não teve outra escolha a não ser arriscar. Foi em busca de grandes comerciantes e, empenhando sua palavra e futuras riquezas, conseguiu dinheiro para uma nova embarcação. O Cirella II.

Uma nau duas vezes maior que o barco anterior. O casco azul escuro ostentava as cores da bandeira do pavão que tremulava sobre um grande mastro ornamentado por esculturas de longas plumas em todo o seu comprimento. Na proa, uma águia se pronunciava de asas abertas, com as garras envoltas em plantas e ervas esculpidas no próprio casco. O castelo de popa se elevada muito acima das pequenas construções portuárias e o leme era dourado, lembrando a todos a rota que perseguia nosso capitão. Os grandes porões do novo Cirella acomodavam mais que o dobro de carga de nossa antiga embarcação e acima do convés, as enormes velas cinzentas aguardavam ordens para zarpar. As famosas carrancas do Cirella continuavam a adornar a nau, mas agora em número bem menor e de menores proporções. A bandeira da embarcação tremulava no topo do mastro e, agora, abaixo do escudo cinza com o pavão azul, um listel com a inscrição Aurum Omnia Vincit rezava o credo de Tino Sadiano.

O estratagema surtiu efeito. Os homens que estavam em dúvida quanto a sua permanência vislumbraram uma esperança na imponência do novo Cirella e mais uma vez se uniram sob o pavilhão azul e cinza de Tino Sadiano. Uniu-se ainda a nossa tripulação Oséas Sisar. Um velho ex-marujo, que vivera quase todos os seus anos no mar e agora passava a maior parte do tempo junto ao cais olhando as ondas e contando histórias para os novos marinheiros. A função do Velho Oséas seria então intermediar a delicada situação entre a equipe e o capitão, além de com sua experiência, indicar mudanças na maneira como o Capitão comandava o navio, estocagem de mercadorias, assessorando de modo geral Tino. Para suprir os homens que haviam abandonado o Cirella, foram contratados mais alguns marinheiros e depois de tudo acertado e vários meses em terra, nos fizemos mais uma vez ao mar. O Cirella, agora muito maior, partiu em um amanhecer nublado onde o sol espiava aqui e ali por entre as nuvens. A maioria dos homens estava feliz de voltar ao mar, sentir o vento salgado no rosto e o balanço das ondas, de se lançar em uma nova viagem. Mas ainda assim tinham a expressão nublada como o dia de nossa partida. Evidentemente, a confiança da tripulação ainda não havia sido reconquistada. Os dias foram passando e o Velho Oséas andava por todo o navio, conversava com a tripulação e contava suas histórias de aventuras as mais diversas. A tripulação, já desconfiada com todos os acontecimentos, demorou um pouco para acolhê-lo, mas depois todos já estavam torcendo para que o velho marinheiro realmente conseguisse desempenhar as suas funções da melhor maneira. Uma das primeiras melhorias sugeridas por Oséas Sisar foi quanto aos rumos e modo de navegação. Era de praxe sob o comando de nosso capitão que, uma vez definido nosso objetivo e traçadas as rotas ideais para chegar até ele, essas rotas fossem com freqüência mudadas, quase que a esmo ou aleatoriamente. Por isso era comum levarmos muito mais mantimentos do que o necessário para a viagem, devido ao tempo extra que perdíamos nestes desvios.
Igualmente, era deveras trabalhoso manter os registros de bordo precisos, uma vez que, aparentemente sem prerrogativa ou objetivo, Sadiano nos levava a mares e rotas desconhecidas que nada tinham com nossos objetivos inicias. Objetivos esses que também eram mudados com a mesma facilidade com que mudam os ventos. A sugestão de Oséas foi de que uma vez definidas as rotas, com base nos estudos cartográficos, dos ventos, astros e marés, essas rotas se mantivessem inalteradas tanto quanto possível. Com alguma resistência de sua parte e pressão por parte da tripulação, Tino acabou acatando as sugestões de Sisar e, por algum tempo, o Cirella navegou veloz pelo oceano, nos permitindo atingir novos portos. Infelizmente as mudanças não foram duradouras e em pouco tempo estávamos novamente errantes pelas ondas.

Assim os meses se passaram, de porto em porto, com Oséas fazendo as mudanças no Cirella e o Capitão Tino comprometendo estas mudanças. A credibilidade de nosso capitão voltava a cair e sua sede por riquezas a aumentar. E quanto mais ela aumentava, mais ele se distanciava de sua tripulação. Mesmo Bogus fora deixado de lado e tratado como mais um dos marujos. Logo a desconfiança se instalou a bordo do navio e o capitão, junto ao seu conselheiro Rastani, começava a demonstrar sinais de paranóias e neuroses. Era como se fossem assombrados por fantasmas que eles mesmos criaram. E com o tempo esses fantasmas se tornaram reais. Suas dúvidas o tornaram recluso e taciturno, seu ouro o tornara arrogante e avaro, seus medos o tornaram agressivo. Não demorou para começar a ver nos conselhos do Velho Oséas ameaças de sabotagem ao seu navio. E não demorou para que o pobre e velho marujo fosse dispensado numa ilha qualquer acusado de traição. A ponte se tornara o seu reduto, de onde, pelas frestas das escotilhas ficava espionando os marinheiros em seus afazeres e horas de folga. Incentivado por Rastani, espalhava rumores pelo navio, colocando os marinheiros uns contra os outros na esperança, creio eu, de enfraquecê-los e evitar um motim. Com freqüência os marinheiros recebiam apenas parte de seus pagamentos pelas viagens, sendo o restante pago muito depois. Os marinheiros, em mares tão longe de casa, não tinham outra opção a não ser aceitar e aguardar. O Capitão acusava baixos lucros, mas enquanto os marinheiros aguardavam seus dividendos, a cabine de Tino Sadiano era ornamentada cada vez mais e não lhe faltavam vinhos ou carnes em suas refeições. Nesse período Áspero com freqüência voava pelo convés e depois à cabide do Capitão. De vez em quando Rastani passava pelo convés acompanhando o trabalho com olhos atentos e os lábios mudos. À noite, podíamos jurar ouvir passos furtivos e olhares dissimulados nas sombras. O Cirella estava sob vigia.

Dessa forma chegamos ao início do inverno a uma península para reabastecer-nos de provisões. O povoado era grande e sua economia se concentrava no comércio de ervas para os mais variados propósitos. Passamos apenas um ou dois dias em terra, se bem me lembro, mas esse tempo foi suficiente para o Capitão levar mais um tripulante a bordo. Um comerciante de ervas que Sadiano conhecera naquela ilha. Um homem baixo de cabelos ruivos e olhos pequeninos que vestia quase sempre roupas verdes e tinha uma voz quase infantil. Usava adereços diversos em torno dos pulsos, pescoço e nos cabelos, e trazia sempre consigo um estojo com as ervas que comercializava. Os ornamentos chamaram a atenção do Capitão, que via no pequeno homem uma grande oportunidade para vender nossas especiarias. Tino abordou o pequenino que se apresentou com sua vozinha fina apenas como Peregrino, e disse que vivia caminhando e vendendo suas ervas por onde fosse. Tinha mesmo, segundo disse, vários mascates que vendiam seus produtos por ele e que ele ganhava assim muito dinheiro. Nosso capitão disse que entendia perfeitamente, uma vez que também tinha vários marinheiros que trabalhavam no grande Cirella para seu próprio benefício. O pequeno Peregrino retrucou, dizendo que de forma alguma se tratava da mesma coisa. Segundo ele, os mascates que vendiam suas ervas não eram seus contratados. Eles lucravam diretamente com suas negociações, sendo que apenas enviavam parte dos lucros ao Peregrino, que cultivava as ervas em locais ermos longe do alcance de todos. Dessa maneira, segundo o herborista mercador, ganhava volumosas recompensas, assim como seus mascates. Seduzido pelos ornamentos, pelos argumentos e pela promessa de grandes lucros do Peregrino, nosso capitão, em vez de vender nossas especiarias, abarrotou os porões do Cirella com as ervas compradas do herborista e lhe concedeu livre tráfego em sua embarcação para levar suas ervas aos mais distantes portos. Assim, quando deixamos a península, boa parte da capacidade do Cirella fora comprometida com o espaço nos porões reservados para os novos negócios de Tino Sadiano, e uma pequena saleta foi improvisada nos porões de nossa nau para acomodar o novo tripulante. Enquanto isso Rastani fazia as contas dos possíveis futuros lucros.