quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Reflexos de Adriana



Reflexos de Adriana

Um aporte sobre a protagonista de Aguardo, de Gregory Haertel
por Rodrigo Oliveira

Quando as águas sobem,
até as montanhas viram ilhas.


Enquanto lia Aguardo as águas do Itajaí-Açú subiam e desciam como se provocadas, pressentindo a evocação de memórias amarelecidas feito um fotograma antigo ou velhas marcas barrentas sobre paredes brancas. Na janela explodiam gordas gotas marcando o tamborilar de cada sílaba. Os vidros embaçados refletindo a turbidez deste primeiro romance de Gregory Haertel.

Para contextualizar o leitor menos familiar com a literatura catarinense, em especial a blumenauense (e, sejamos francos, são a maioria) Aguardo é dividido em 10 capítulos, cada um com nome de um personagem sobre o qual aquele momento da história se debruça. O romance não segue uma linha cronológica fixa. Alguns capítulos levam o leitor a alguns anos no passado, mas todos os personagens e acontecimentos são mais ou menos contemporâneos entre si. Esse entrelaçar de momentos e personagens, a característica de complementação que cada capítulo tem com os demais e a própria temática geral ressaltam uma grande semelhança com o conto Ensaio para Orquestra e Coro de Chuva, presente em Quarteto de cordas para enforcamento, do mesmo autor. A influência de uma obra sobre a outra é marcante.

Aguardo é um novelo tirado da lama, convidando o leitor a lhe desembaraçar os fios. Cada fio puxado revela um personagem e, impregnado nele, um pouco da história dessa provinciana cidade encravada no meio de um vale, cortada por um rio e nomeada segundo o sobrenome de seu fundador. É inevitável, ao ler o romance, ver na obra uma caricatura de Blumenau, cidade catarinense em que vive o autor.

O primeiro fio que desponta desse novelo é Adriana. É neste primeiro capítulo que encontramos a breve apresentação da cidade de Aguardo. A esse primeiro contato, alagada sob as águas de uma enchente que toma as ruas, encontramos nossa protagonista. Encolhida em um canto do apartamento, feito ilha em meio às águas e à chuva que cai sem pausa. Está sozinha. A mãe morrera vítima de tifo; o filho, caído pela janela do apartamento (em uma cena que lembra o prólogo do Anticristo, do cineasta dinamarquês Lars von Trier, ainda que sem a mesma beleza estética ou a mesma poética); pelo pai da criança, abandonada; o próprio pai, nunca teve. Uma ilha em meio a águas barrentas. Talvez essa seja de fato a imagem mais icônica do romance. Às vezes cercados pela água, sempre isolados. Pela água, pela lama — figurada ou não — pela frieza, pela sujeira. Quando as águas sobem, até as montanhas viram ilhas. Também as pessoas.

Essa primeira aparição de Adriana difere, em estrutura e função, da história dos demais personagens (são sete os de maior importância). É essa diferença, e a maneira como foi tratada no decorrer da história, que chamou-me a atenção e despertou-me a escrever esse aporte. Adriana — e todo o capítulo que leva seu nome — servem como cicerones do leitor. Sua história tem o objetivo inicial de nos apresentar a cidade de que trata o livro e alguns breves vislumbres de outros personagens, além de ditar o tom narrativo da obra. Nesse trecho, o texto parece ter um plano mais aberto (para usar uma linguagem cinematográfica) da história. Como se tivéssemos uma câmera de enquandramento amplo, que percorre, panorâmica, várias direções, nos revelando o cenário e o contexto. Os capítulos seguintes, mais centrados nos outros personagens, já lançam mão de planos mais fechados, a narrativa centrada em seus próprios “protagonistas”, ainda que exporádicas inserções de outros personagens ou passagens ainda aconteçam. Mas o texto, após o primeiro capítulo, cerca muito mais seus personagens, expõe-lhes as imperfeições, quase sufocando-os com a proximidade da presença do leitor. Em Adriana é diferente.

Esse estratagema literário teve sua importância para situar o leitor mais rapidamente na obra, para colocar as engrenagens da história em movimento e para evitar interrupções futuras no desenrolar da trama dos personagens que ainda viriam a aparecer. No entanto, reforço: o artifício cobrou seu preço da personagem anfitriã. Adriana, quando comparada com os demais personagens, é vista a uma distância muito maior pelo leitor. Não nos é possível, a altura do primeiro capítulo, uma maior aproximação. Essa própria situação se reflete metaforicamente no próprio texto. A cidade alagada, as pessoas ilhadas em suas casas. A recomendação das autoridades é o uso de cores vibrantes para facilitar a localização pelas equipes de resgate: “pendurar vestimentas de cores fortes no lado de fora da janela para que o resgate nos encontrasse.” (p.18). Adriana, deliberadamente, troca de roupas: “Troco a minha camisa vermelha por uma bege. Dispo o jeans. Coloco uma malha preta do tempo em que eu fazia ginástica. Fecho as cortinas” (p.18). A equipe de resgate se aproxima, ela se esconde. Evita o contato. Com a equipe, com o leitor. No canto da sala do apartamento usa suas memórias para desviar os olhos desse mesmo leitor para Aguardo. Por hora, ela permanece ilhada. Inacessível mesmo para quem lê sua história.

Essa falta de proximidade é, no entanto, “corrigida”, por assim dizer, mais adiante. Adriana participa em pontas aqui e ali nos capítulos dos demais personagens, permitindo que, bem aos poucos, o leitor vá se aproximando. Adiante começa a ganhar mais profundidade. O próprio sexto capítulo, nomeado Ricardo, parece muito mais uma desculpa para nos aproximarmos de Adriana. Ricardo — o pai do filho morto de Adriana — mesmo em seu capítulo, age mais como um “escada” para a atuação da anfitriã da história, do que como o protagonista de seu capítulo. A metáfora do isolamento-aproximação se repete. Aqui o leitor se aproxima mais enfaticamente de Adriana, o que se reflete nos elementos usados na construção do texto. No lugar da camisa bege e da malha preta que a ocultavam, encontramos a personagem trajando apenas um roupão semiaberto, deixando perceber parte de sua nudez. Não há sensualidade na cena, no entanto. Esse vislumbre de nudez reflete muito mais uma falta de proteção. Adriana permanece “Estática, perpendicular ao local onde a massa de Matias estivera [o filho], (...)” (p.112). É a falta que revela a personagem. Que faz com que ela não tenha mais como se ocultar do leitor.

O mesmo recurso de aproximação e aprofundamento na personagem se repete no último capítulo, com ainda mais ênfase. Tornando o contato do leitor com a personagem anfitriã finalmente mais intenso do que com os demais personagens. O leitor se aproxima definitivamente de Adriana. Sufoca-lhe com sua presença. Sente-lhe os odores. Pressionada, ela se revela e se despe como nenhum personagem o fez. Expõe-se e se entrega. Ao leitor e a si mesma.

Todo o último capítulo, nomeado “Matias” é mais um artifício para recolocar o foco sobre Adriana. Agora literal e figuradamente nua, coberta apenas pela lama, pelo mau cheiro, pela falta. Coberta apenas e, afinal, pela presença do leitor. Não há camisa bege, malha negra ou roupão semiaberto. Há apenas a exposição, a falta (de tudo) e o “cheiro dos porcos [que] inundava o quarto do mesmo jeito que as águas do rio haviam emporcalhado Aguardo”. (p. 173).

O livro orbita e se desenvolve ao redor da transformação de Adriana. Ao abrirmos Aguardo é ela a primeira personagem com quem nos deparamos. Ao fecharmos o romance é ela a última de quem nos despedimos. Quando a encontramos pela primeira vez, estava no apartamento reclusa, protegida, oculta. Quando deixamos Aguardo é com a imagem de uma Adriana na estrada, exposta e totalmente desprotegida. Sem nada. A transformação se dá não apenas aos olhos do leitor, mas aos da própria personagem. No início do romance, nas primeiras linhas, temos Adriana com os olhos refletidos na água turva. Temos aqui a turbidez da água como reflexo da personagem. Tão marcante quanto o fato de Adriana olhar para baixo. É olhando para baixo que ela vê (e vê-se) apenas turbidez. No último capítulo, Gregory Haertel encerra seu romance com um paralelo da cena de abertura. Temos novamente Adriana vendo a si mesma refletida. Agora no espelho do teto sobre a cama onde se encontra. Está nua. Agora, no lugar da tubidez, seus olhos no espelho refletem uma imagem muito mais nítida. Se agradável ou não, ao menos transparente. Para ver-se, já não olha para baixo. É olhando para si que se enxerga. Ergue os olhos e não vê mais turbinez. Vê-se em sua nudez e desproteção. Vê-se em sua falta. Mas vê-se lavada, vê-se nítida. Vê finalmente a si mesma.

Assim, Aguardo é-nos apresentada por essa protagonista. Que se apresenta distante e da qual o leitor só consegue se aproximar à medida em que ela se despoja de tudo, inclusive da lama que lhe cerca e lhe cobre. Quando não tem mais nada, apenas, se revela. Nesse momento derradeiro, encontramos finalmente nossa protagonista. Deitada numa cama, nua, refletida no espelho do teto de uma espelunca. Expôs-se tanto, que virou duas. Quem sabe agora, enxergando-se de frente e exposta, poderá encontrar-se.