O protagonista morre no final. Agora que já sabe o final, não perca tempo, o leitor, em demorar-se na leitura destas páginas.
Quanta bobagem! Se tempo é o que mais tem o leitor! Pois, decerto, se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Enquanto espera, pois, deixe que esta história lhe faça companhia. E já me corrigindo, o protagonista desta história não morre no final. O protagonista desta história morre no começo. O protagonista desta história já morreu.
Quando cheguei, o sol brilhava fresco. Como o sol que surge depois de umas horas de chuva num fim de tarde de meia estação. O capim baixo emanava também um cheiro fresco, e brilhava como se borrifado por gotas de água pequenas demais para serem vistas. Uma brisa leve passava assobiando baixinho por entre as folhas altas das árvores, não muito atrás de mim. E um rio brilhante e calmo atravessava o prado que se estendia a minha frente. Encaminhei-me em direção ao rio até vislumbrar as figuras aguardando à sua margem. Um trapiche de juncos pequeno se projetava da margem às águas, que corriam com um gorgulhar confortante.
Na margem, umas poucas pessoas aguardavam de pé junto ao trapiche. Como não divisava nada além da mata atrás de mim e das pessoas na beira do rio, achei por bem aproximar-me. Um homem baixo, de cerca de um metro e meio, já meio curvado, conferia com uma prancheta um punhado de papéis. Tinha vestes simples mas muito bem cuidadas. Uma calça de jeans cáqui, uma camisa de flanela da mesma cor e um colete de cor crua, de couro ou lona. Uma boina cobria os cabelos meio desgrenhados. Atrás dele, um grupo de pessoas aguardava junto ao trapiche. E ao lado delas, de costas pra mim e admirando a outra margem, uma jovem de corpo magro, com os ombros bronzeados um tanto pontiagudos à mostra, vestia um vestido xadrez simples mas bonito, com uma barra branca bordada. Os cabelos castanhos, meio ondulados, amarrados por uma fita vermelha. A profissão campesina era denunciada por uma grande foice de campo na qual se apoiava e pelo cesto de vime à tira colo.
O homenzinho me olhou de baixo para cima quando me aproximei e umedecendo os lábios murchos com a língua, começou a folhear os papéis na prancheta, retornando o olhar para mim vez por outra.
— Bom dia... — comecei. Mas ele logo me interrompeu com um balançar negativo de cabeça.
— Não, não, não. Você não está aqui.
— Como?
— Não está, não está! — Repetia o homenzinho, como que contrariado.
E me deu as costas indo falar com a camponesa da foice. Só quando ela se abaixou para falar com o homem que percebi a sua altura. Era alta, talvez até um pouco mais alta que eu. Ela ouviu o que ele tinha a dizer, levantou-se, me pareceu que ficou uns segundos a pensar, olhando para o nada que seguia o curso do rio. Quando ela virou-se para mim, os olhos levemente puxados e pequenos, muito claros, de íris quase branca, contrastaram com o tom bronzeado do rosto. Os lábios finos não disseram nada. Mas o olhar me petrificou. Pude sentir os músculos do corpo retesando, a boca seca, o coração pulsante. Ela virou o rosto para novamente olhar o pequenino e, sem responder, balançou a cabeça em negação. O pequeno homem soltou um suspiro profundo, contrariado entregou a prancheta à camponesa, e veio até mim. Ela me lançou um último e olhar e depois se deixou perder na visão das árvores da mata, que corria atrás de mim e seguia o rio ainda nesta margem.
— Não, não, não. Você não está na lista. Desculpe-me. Não está na lista. — disse o homenzinho falando rápido.
Caminhando devagar, me tomou pelo braço e me guiou o caminho.
— Vamos, vamos. Você não pode passar. Ainda não está na lista. Vamos, vou mostrar-lhe o caminho.
— Onde estamos? — Perguntei curioso.
— Estamos no rio. — Me respondeu o meu novo guia.
— E o que tem além dele? — Insisti.
— O outro lado.
Antes de perder de vista as figuras que aguardavam, pude ver uma pequena balsa se aproximando do trapiche. Um homem sem camisa manobrava a embarcação com uma longa vara, até encostar contra a construção de juncos. As pessoas que aguardavam subiram na balsa que se afastou da margem, deixando lá apenas a camponesa com a foice. Àquela distância eu não podia divisar qualquer expressão no seu rosto, mas podia ver que ela mantinha os olhos na balsa.
O homem me guiou por um caminho de terra adentrando nas árvores. As copas altas balançavam com o vento e o cheiro agradável de mato fresco continuava. Mas o sol já não conseguia atingir o solo. Caminhamos por um bom tempo, até não ser mais possível ouvir o rio. E continuamos andando em silêncio. O homenzinho, claramente contrariado, volta e meia balançava a cabeça de um lado para o outro. O sol já não se via mais entre as árvores e um nevoeiro bem leve já se fazia presente. Caminhamos até chegar a uma casa de toras no meio da mata. O homenzinho foi até a porta e bateu duas vezes. Sem palavra, deu as costas e foi retornando pelo caminho, passando por mim. Virei-me para chamá-lo quando ouvi atrás de mim a porta se abrindo.
Um velho entroncado, metido numa jardineira parda e com uma camisa vermelha de mangas arregaçadas, me olhava apoiado no vão da porta. Tornei a olhar para o homenzinho só para vê-lo desaparecendo devagar na neblina fraca. Tornei a encarar o velho e percebi que ele mascava algo que, pelo cheiro, parecia fumo. Ele ficou me olhando por um tempo, com aquele maxilar de barba mal feita dançando pendurado, como que ruminando mais do que o fumo. Ruminando algo na cabeça. Limpou as mãos na jardineira, deu uma pigarreada e voltou-se para dentro da casa, lançando a voz rouca por sobre o ombro: “Feche a porta ao entrar”. Hesitei por uns segundos mas, dadas as circunstâncias, decidi obedecer. A casa tinha as paredes de toras e o teto alto, de madeira. Tinha várias cadeiras, almofadas e sofás espalhados, cobertos de forma rústica. Havia um fogão de pedra no centro e um duto acima dele, que se perdia no teto. Ao lado da porta pela qual entrei, uma grande enxada de cabo longo estava encostada à parede. Ao lado dela, uma pedra de amolar. Não vou me deter por demais na descrição do lugar, visto que o leitor obviamente não carece de tais detalhes. Detenhamos por tanto na conversa que tive com o meu interlocutor, da qual o leitor, talvez, não saiba.
O velho me serviu uma caneca de metal com uma infusão qualquer. Estava quente como os diabos e tive que apoiá-la na mesa enquanto me sentava. O velho sentou-se numa poltrona um pouco distante de mim.
— Não está do seu agrado? — Perguntou ao me ver depositar a caneca na mesa.
— Não é isso — respondi — está quente demais para segurar.
— Espere esfriar — ele retrucou, sorvendo o líquido fumegante da própria caneca.
— Pelo visto vai demorar um pouco. — Tentei dar um tom de brincadeira na voz, para aliviar o clima. Ao que ele respondeu só levantando os olhos para mim.
— Não tem problema. Há tempo de sobra.
Depois de uns minutos de silêncio, enquanto eu tentava tomar o chá e identificar o sentido daquele olhar, ele quebrou o silêncio novamente.
— Então ela não te deixou passar, não foi?
— Como?
— Para o outro lado. Ela não deixou que você cruzasse o rio.
— A camponesa?
Ele deu uma risada contida, mas aparentemente sincera, e rebateu.
— Sim, sim. A camponesa. A mulher da foice. Ela.
— Ela?
— Sim, ela. Você sabe. Diga. Vai fazer bem pra você.
Eu não havia reparado na corda pendurada de uma das vigas do teto. Aparentemente, nem meu anfitrião, que seguiu meu olhar com interesse.
— Ah, sim... Limpo. Você deve ser organizado. Já é um clássico, nunca sai de moda.
— ???
— Vamos, você pode se lembrar, você já sabe. O choque não é grande. Nunca é. Porque a escolha já foi tomada. Só falta a constatação.
Uma sensação estranha me inquietava naquela voz rouca. Um certo aperto no peito, como se o coração estivesse na garganta. Senti os meus pés balançarem na cadeira, dançando no ar. Uma cadeira. Sim, uma cadeira. E a corda. E uma viga e... sim.
Sim...
Quando retornei meu olhar para o velho, ele já estava quase sobre mim, bem próximo à mesa. Olhando-me de cima com olhos baços. Estranhamente não me senti chocado. Era como se eu já soubesse. Eu já sabia. Ele já sabia.
Olhou para a minha xícara que atirava redemoinhos de vapor ao ar e me disse de novo: “Há tempo de sobra”. Tornou a me olhar e falou.
— Ela não lhe deixou cruzar o rio.
— A mulher da foice. — Respondi. Ao que ele apenas repetiu, devagar, para que eu sentisse as palavras: “A mulher da foice”.
— Porque ela não me deixou cruzar?
— Há tempo de plantar e há tempo de colher. Ainda não é chegado o tempo de colher. Não para você. E a Dama da Colheita nunca ceifa antes do tempo. É preciso que o grão esteja maduro.
— Se não chegou o tempo da colheita, porque eu estou aqui?
— Às vezes o grão despenca antes do tempo e não pode ser colhido pela foice. Aí vem a mim.
Caminhando em direção à porta, ele continuou:
— Quando ele cai à terra, a foice da Dama não pode mais alcançá-lo. Mas eu posso.
Ele disse, acariciando o metal afiado da enxada com certo orgulho.
— Quem é você? — Perguntei receoso.
— Eu sou aquele que cata os grãos que se precipitaram antes do prazo. Eu sou aquele que os guarda até a hora da colheita. Eu sou aquele que acolhe os grãos do Acaso, aqueles que burlam o Desígnio, aqueles que tomam a decisão que não lhes cabe. Eu sou agora o seu tutor, o seu Senhor, seu guardião. Eu sou o Príncipe dos Suicidas.
Mesmo, no fundo, sabendo o que acontecera, o que eu havia feito, a calma que até então me tomava ameaçou me abandonar frente a emoção e orgulho daquele velho, com o braço peludo agarrado à enxada, que mesmo metido naquelas roupas comuns exalava um ar respeitoso. Logo a fraqueza se transformou em vergonha frente àquela palavra. “Suicida”. Não pude evitar baixar os olhos. O passado e o que eu havia deixado para trás já estava por demais nebuloso para que eu tivesse qualquer lembrança clara, mas aquela palavra me soava, de algum modo, obscena.
— Agora você baixa os olhos? — Ele perguntou para logo continuar:
—A vergonha não está no que fez, mas, talvez, no porque o fez. E aqui, nem isso importa mais. Ficou para trás. Além do que, por essa mesma casa já passaram muitos. Alguns grandes, outros ordinários. E muitos ainda virão.
— E agora o que eu faço?
— Agora você espera. A sua hora não chegou. E você só pode completar a travessia quando ela chegar. Mas agora, ao invés de aguardar onde você estava, você vai aguardar nesta casa.
— Mas eu vou completar a travessia?
— Sim, quando chegar a hora, a foice sempre faz a colheita.
— Então tem esperança? Então eu ainda posso ir pro céu?
— Céu!? Ah ah ah! Tudo o que sei é que ela vai permitir que você atravesse o rio. E além dele, está o outro lado.
— Então Deus aceita os suicidas?
— Todos os grãos acabam sendo colhidos. De um jeito ou de outro. Além do que, Deus, se é assim que você quer chamar, já aceitou tantos outros.
— E os padres sempre falavam na Bíblia, no atentado contra a própria vida, na palavra do Cristo...
—Sim, sim, eu me lembro dele. Passou algum tempo aqui.
— Aqui?
— Porque a surpresa? Para quem ouvia tanto os padres, você parece não ter prestado muito atenção na história.
— Mas Cristo não se suicidou, ele foi assassinado!
— Aquele que aguarda o trem sobre os trilhos não é então suicida? Devemos culpar o maquinista de homicídio se o atropelado sabia da chegada da locomotiva e aguardou que ela lhe beijasse o rosto? Foi a minha enxada que colheu a vida que a foice não pôde ceifar. Foi aqui que o grão prematuro amadureceu até a travessia.
— Ele atravessou o rio?
— Como você o fará, quando for chegada a hora.
— E eu devo esperar muito?
— Não se preocupe com o tempo. Tempo agora é tudo que lhe resta. E há tempo de sobra.
Sim, leitor! Há tempo de sobra. E se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Porque esta história termina aqui. E o protagonista não morre no final. O protagonista desta história suicidou-se. O protagonista desta história já morreu.
Mas o protagonista desta história, leitor, não sou eu.
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
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