terça-feira, 7 de abril de 2020

A quarentena e A Peste






A quarentena e A Peste
Lendo o clássico de Camus durante a pandemia de Covid-19

“Sempre houve no mundo pestes e guerras;
entretanto pestes e guerras nos acham desprevenidos”.


Era o início da segunda quinzena de abril de 2020, eu havia recém escolhido Dom Casmurro na estante e lido os primeiros capítulos. Na TV as notícias do alastramento da Covid-19 na Europa começavam a preocupar de verdade os brasileiros. No dia seguinte, confirmado o início da quarentena brasileira, Machado acabou voltando pra estante. A Peste iria começar no dia posterior.

No primeiro dia das minhas férias forçadas, antes de começar o teletrabalho que viria pela frente, comecei o livro, com as notícias da TV e as pessoas já levando mais a sério a pandemia, palavra que tinha entrado, quase que do dia para a noite, no vocabulário da população. A obra do prêmio Nobel já foi muito debatida sob o viés de uma analogia à ocupação nazista na França, mas lendo durante esta quarentena foi impossível não enxergar um paralelo mais próximo a nossa própria realidade empesteada.

O povo de Orã, cidade costeira da Argélia dos anos quarenta, em que se passa A Peste, não teve o mesmo aviso prévio que nós brasileiros. Os primeiros sinais vieram dos ratos, começando a morrer em profusão nas ruas, uma flor de sangue a lhes brotar dos focinhos. O problema, no primeiro momento, era de ordem prática de limpeza pública, uma pequena comoção contra a prefeitura por conta dos roedores mortos expostos nas ruas. Uma indecência virem assim morrer em público. O governo local, bastante solícito, iniciou seu plano de recolhimento dos animais mortos às dezenas, depois centenas, diariamente.

Coube ao protagonista, Dr. Rieux, e alguns poucos outros as maiores preocupações acerca daqueles sinais. Sinais claros e inequívocos que eram, enquanto possível, ignorados. Fazendo com que, quando a epidemia de fato se instalara, a cidade tenha sido pega desprevenida. Como diz o próprio narrador:

“As calamidades são com efeito ordinárias, mas dificilmente acreditamos nelas quando nos chegam. Sempre houve no mundo pestes e guerras; entretanto pestes e guerras nos acham desprevenidos”.

Reagir de prontidão à peste é torná-la pública. Imagine-se a comoção, o inconveniente. No caso d’A Peste de Camus, era bem mais que um inconveniente: a prefeitura de Orã estava frente a uma epidemia da Peste Negra, muitíssimo mais letal que o nosso Coronavírus. Mas não pense aqui o leitor que o comentário é um amenizante de um brasileiro privilegiado em uma cidade com ainda poucas dezenas de infectados entrando na terceira semana de quarentena. Todos aqueles que sucumbiram frente à doença ou que por conta dela sofreram merecem ser honrados dando-se o devido respeito e importância à situação. Qualquer baixa causada por um aperto de mão, espirro descuidado ou negligência é um número alto demais.

Negligência, aliás, é o primeiro impulso das autoridades de Orã. O medo da repercussão, o medo de espalhar o caos, que acaba por ajudar a espalhar a doença. Enquanto eu lia isso, um sem fim de conhecidos minimizavam as iniciativas preventivas nas redes sociais. A experiência, talvez por isso, tenha sido tão interessante. Ler A Peste era como um olhar a um futuro próximo. Cada página passada se repetia de certa forma poucos dias depois, na nossa quarentena. O isolamento, o desrespeito ao isolamento; a falta de médicos, os hospitais de campanha nos estádios de futebol; as preocupações individuais frente ao concernimento público.

Com a cidade completamente fechada em quarentena, os moradores de Orã reclamavam das medidas restritivas que, talvez pelo protocolo dos anos 40, me pareceram mais suaves que as atuais, especialmente levando em conta a maior gravidade da calamidade da obra, com exceção talvez pelo fechando total dos portões da cidade, do acesso ao porto e à praia, lacrando completamente a cidade do mundo exterior. De fato, após a mortandade dos ratos ter atingido seu ápice e os roedores deixado de aparecer mortos nas ruas, o povo insistia em prosseguir suas vidas normais, abarrotando templos e cafés da mesma forma que eu via, pela TV ou pela janela, concidadãos indo a praias, parques ou usar qualquer desculpa para sair de casa.

Esse provavelmente é o ponto mais interessante da obra de Camus. Mesmo que às vezes os relatos da peste ou as aventuras de seus personagens sejam bastante explícitos, é sobre a quarentena e o isolamento que o autor se debruça. Na saudade de Rambert, o repórter preso por acaso na cidade por conta do fechamento dos portões, pensando em sua amada e em uma maneira de voltar para ela, e como essa espera e convivência com a doença, a cidade e as pessoas o transforma. Na obstinação de Rieux, que enquanto tem a esposa afastada da cidade tratando uma tuberculose que piora, mantém-se lutando horas infindáveis contra um inimigo avassalador sem esperanças de sucesso, simplesmente por “decência”. O incansável Tarrou, vivendo o isolamento e a doença de perto, seguindo resoluto seu trabalho com Rieux em um misto de entrega e inércia. Os conflitos dos personagens entre agir pelo bem-estar coletivo ou segundo seus impulsos individuais.

“O primeiro efeito da brutal invasão da epidemia foi obrigar habitantes a proceder como se estivessem destituídos de sentimentos individuais”, cita o narrador a um momento.

O tempo passa, as liberdades individuais diminuem, o isolamento se agrava. Enquanto alguns como o padre Paneloux veem a peste como um castigo ou prova divina, Rieux — e com ele o leitor — é obrigado a acompanhar em vigília a luta e derrocada lenta, dolorosa, sofrida, de uma criança inocente sendo mortalmente castigada pela doença. Ao que Rieux conclui:

“Paneloux é um homem de estudo. Não viu muita gente morrer, por isso fala em nome de uma verdade. O mais insignificante padre do interior, amigo dos paroquianos e que tenha ouvido a respiração de um moribundo, pensa como eu e tentaria suprimir a miséria antes de provar as suas vantagens”.

A quarentena no entanto, se ressalta as nossas diferenças, ao mesmo tempo pode aproximar opostos, mesmo Rieux e Paneloux, que acabam atuando juntos contra a epidemia.

Surgem ainda os beneficiados pela crise, como Cottard que, com a paralisação da vida normal da cidade, teve a punição por seus delitos temporariamente suspensa e vive sempre tenso com a possibilidade do fim da peste e da volta à normalidade.

“Apesar do espetáculo anormal, os habitantes tinham dificuldades em perceber o que sucedia. Alguns sentimentos eram comuns, a separação ou o medo, por exemplo, mas as preocupações pessoais venciam tudo. Ninguém se convencia da realidade”.

Um contraste importante tanto na nossa epidemia como na de A Peste em relação a outras calamidades como guerras ou uma enchente, por exemplo, é a falta de um horizonte visível. Enquanto vemos um exército ou as águas avançar ou retroceder, não vemos o afastar de uma epidemia. Pode durar mais uma semana, mais um mês, um ano. O não saber torna a possibilidade da morte iminente uma constante, no caso da Peste Bubônica, e torna difícil programar as medidas de segurança com impactos econômicos e sociais. Como um Cottard às avessas, estar n’A Peste é estar no seio de um inimigo invisível sem saber-se, talvez, já derrotado. Muito se compara a obra e a doença de Orã à guerra, em especial à ocupação nazista, mas essa morte à espreita constante, esse fim iminente e definitivo, também é comum a um outro estado bastante conhecido: a vida. Vivemos sempre a possibilidade de um fim precoce, mas sem uma quarentena normalmente nem percebemos e ficamos, como o povo de Orã, mecanicamente vivendo — sobrevivendo — sem nos darmos conta. Foi preciso uma quarentena para Rieux e Tarrou subirem ao terraço de um velho asmático para apreciar o mar se encontrar com o céu no horizonte. Precisaram lançar mão de suas prerrogativas oficiais para tomar um banho de mar e esquecer, mesmo que por um momento, a doença. Tanto a Peste Negra como a Covid-19 nos revelam alguns dos privilégios e prazeres que tínhamos como garantidos. Se a baixa mortalidade do nosso atual algoz não nos faz respeitar as ordens públicas e não nos preocupa como a praga de Orã, que ao menos nos faça enxergar que o absurdo da vida não está apenas na sua fugaz fragilidade, mas em não reparar na beleza que isso pode representar.

O conflito da obra de Albert Camus, e dos nosso tempos, talvez tenha sido melhor definida por João Tarrou junto a Rieux no terraço sobre a cidade empesteada:

“Sabe que o pelotão de fuzilamento se coloca a um metro e cinquenta do condenado? (...) Sabe que, nessa curta distância, os fuziladores concentram o fogo no coração e fazem, com balas grossas, um buraco onde a gente poderia meter a mão fechada? (...) são pormenores que ninguém fala. O sono dos homens é mais precioso que a vida das criaturas empestadas. Não devemos perturbar o sono das pessoas honestas”.

São lições que brotam nos tempos de peste como ratos dos esgotos. Que tomam as ruas, os telejornais, as página da internet e as redes sociais. Mas quando os ratos deixam de surgir mortos nas portas das casas, quando os mortos não podem ser vistos ou o inimigo não pode ser sentido, esquecemos tão facilmente os tempos de reclusão. Como provavelmente faremos assim que a quarentena for levantada.

Mas o bacilo da peste, lembra Rieux, “não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lenços — e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz”.

Que vivamos, pois, nossa cidade feliz enquanto não chegam os ratos. E que não seja preciso uma calamidade para relembrarmos o encontro do céu e o do mar visto sobre um terraço de uma cidade empesteada.