quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Anjos de Barro


Anjos de Barro

As três figuras pálidas e esguias pareciam desconsoladas. Não que fosse possível ver-lhes as feições escondidas pelas máscaras de gás escuras. Sequer os olhos podiam ser vistos pelos vidros baços das escotilhas por onde supostamente deveriam enxergar. Sobre as bocas e narizes, as protuberâncias arredondadas das máscaras davam-lhes um aspecto entomológico — ao menos é o que havia dito a crítica na matéria do jornal local. Mas se as feições permaneciam ocultas, os corpos nus de pele levemente amarelada, como que desbotados, mostravam-se expressivamente lânguidos. Os membros longos pareciam carecer de força. Os traços delgados, tão frágeis quanto as figuras, numa mimese propositalmente débil das poses sacras do classicismo. Os sexos diminutos e impúberes como sem importância ou utilidade. Eram três as figuras. As duas masculinas à direita, de pé, de uma androgenia apenas quebrada pela exposição dos sexos. A da esquerda, quase ajoelhada, com a feminilidade apenas revelada pelo semidespertar das mamas ainda verdes, apontadas para fora do quadro. Eram altas, as figuras. Tinham nas extremidades do corpo um tom acinzentado de fuligem, sutil mas perceptível. Pregadas às costas curvadas, as asas finas suspendiam penas embaralhadas, sujas de um matiz amarelo-acinzentado, muitas caindo. A figura ajoelhada segurava algumas das penas na mão, como se as tivesse recolhido do chão, dando-lhes uma sepultura mais digna entre os dedos delicados. No solo alguns detritos e fuligem combinavam com o fundo cinzento de formas um tanto indefinidas. Fuligem, detritos e gases. A obra estava cercada por um passepartout branco e largo somado a uma moldura da mesma brancura minimalista, enquanto o vidro antireflexo lhe protegida das luzes altas da galeria. Abaixo dela, na parede branca, um papel cartão de dez centímetros de comprimento trazia em letras negras: “Anjos de Fukushima — Ariel Ângelo (2011)”

No recorte de jornal de mais de um ano atrás, nem todos esses detalhes podiam ser vistos com clareza. Mas estavam-lhe pintados na memória como se fossem uma têmpera milenar. Podia lembrar-se, inclusive, de várias das pinceladas. As mais significativas, as mais difíceis, as mais surpreendentes. Agora estava distante da galeria. Das matérias todas lhe restara apenas esse recorte fisgado no quadro de cortiça pendurado na parede.

Olhou distante o cavalete coberto pelo lençol claro e velho. Agora ele se encontrava mais ao centro da sala. No dia anterior havia sido retirado do canto onde estava para um lugar onde fosse visto por ele com mais frequência. Era mais uma tentativa. Quem sabe amanhã.

Acordou no dia seguinte mais disposto. O sol da manhã banhava a casinha de madeira no meio do mato, filtrado por árvores altas que desprendiam no vento folhas secas e um aroma fresco. O assoalho de madeira rangia baixinho, como se quisesse acordar alguém bem aos poucos, sem sustos. A chaleira despertou com um chiado e o café dentro do coador de pano foi banhado, retribuindo o cheiro das árvores com um perfume animador. O som dos pássaros entrou voando pela janela aberta, pintando rodamoinhos na fumaça branca do café.

Ângelo mirava por sobre a borda da caneca o lençol sob o qual o cavalete ainda dormia preguiçoso. Saiu da pequena cozinha deixando o forno à lenha crepitando umas poucas varetas. Caminhou pela sala, passou pelo cavalete como quem não quer nada e, com um gesto rápido, sacou-lhe o lençol descobrindo a tela vazia. Sem sequer olhá-la de relance, continuou seu caminho, caneca em punho, porta a fora.

O orvalho estava praticamente seco. A rodovia secundária que passava em frente à casa se perdia silenciosa na paisagem que revelava lagos ao longe, algumas plantações, uma floresta mais afastada e uma ou outra casinha aqui e ali. Junto à cerca, as flores se refestelavam ao sol macio da manhã. Estavam tão bem nutridas quanto ele. Bem podadas, regadas, adubadas. Era dia, inclusive, da aplicação do adubo. Ficou satisfeito com a lembrança. Seu Telúrio era um bom sujeito. Prepararia o mate que ele tanto gostava, trocariam uns causos e umas baforadas no fim da tarde. Seria um bom e calmo dia.

Uns quarenta minutos depois retornou à casa. Cruzou a porta e passou novamente pela tela. Desta vez parou. Por muito tempo não estivera ali. Virou-se devagar e encarou a tela branca. Procurou alguma coisa no fundo da xícara suja de resto de café. Devagar, como que para não afungentar um pássaro que canta num galho próximo mas que mal se enxerga, pegou o primeiro pincel ao alcance. Com o mesmo cuidado foi mergulhando-o na xícara, evitando tocar-lhe as beiradas. Deixou as cerdas descansarem no resto do líquido. Tirou o pincel com a atenção de um cirurgião e levou-o em direção à tela. Uma gota se agarrando às cerdas feito um ovo negro pronto a eclodir.

Triiiiiiiiiiimm!

O telefone tocou estridente. Um susto, o tremer da mão, a gota de café se espatifando no chão de madeira. A raiva. O pássaro voara. A frustração. Triiiiiiiiiiimm! Um suspiro longo antes de pousar o pincel inerte na base do cavalete. Triiiiiiiiiiimm! Correu até a pia e largou a xícara suja. Triiiiiiiiiiimm! Com passos pesados retornou à sala para calar o aparelho. Triiii — "Quem é?"

Era o agente. Queria saber como iam as coisas. Sim, sim, iam bem. Como estava o clima? Estava bom, agradável. Não-sei-quem estava com uma exposição em algum lugar, talvez quisesse dar uma olhada. Sim, sim, parecia interessante. Que bom.

Era evidente que ele estava circundando. Queria evitar uma pergunta direta, mas não sabia como. Não seria Ângelo que lhe daria a deixa. Logo o silêncio inevitável se instalou. Sem outra saída, o agente fez a pergunta, da forma mais vaga e menos agressiva que podia: "E você, conseguindo alguma coisa?"

— Alguma coisa. Bem no começo ainda, mas acho que já é alguma coisa.

Mentiu. Talvez o agente até soubesse mas isso não importava.

— Que bom. O refúgio aí no meio do mato está dando resultado, pelo visto.

A ideia havia sido dele. Coisa de agente.

— Pelo visto.

Não era uma má ideia, o lugar era até agradável. E foi bom estar sozinho, pelo menos.

— Bom, fico feliz. Vou deixar você trabalhar. Se tiver novidades ou precisar de alguma coisa, é só ligar.

Ficaram assim combinados. A tela branca no cavalete ouvira toda a conversa. Ele a olhou enquanto colocava o telefone no gancho. Aproximou-se, encarou-lhe a brancura. Mirou o pincel adormecido e saiu novamente deixando a porta da frente bater. No chão, a gota preta foi se infiltrando na madeira, se agarrando às ranhuras e se instalou entre os veios.

Horas mais tarde estava novamente frente à tela. Na mesa de apoio que puxou para perto do cavalete, a paleta permanecia inerte, mas já abrigava dois pequenos montes de tinta, ainda intocados. Os tubos recém abertos deitados ao lado. Com o pincel brincou com as cores na própria paleta. Apenas revolvendo a tinta como se averiguando a textura. Não tinha pressa. O som de um motor velho se fez ouvir à distância. De vez em quando uns estouros, e lá vinha ele, solavancando pela estrada como se acometido por um acesso de tosse. Ângelo sorriu para si. Tomou a paleta nas mãos mas continuou brincando com a tinta, olhando a tela e ouvindo o som se aproximar.

Dois estouros altos indicaram que a tobata velha dobrara a esquina da entrada do terreno e passara a porteira deixada aberta. O barulho estava bem perto, quase na porta da frente. Esperou até ouvir o último estouro e o motor silenciar. Pousou a paleta e o pincel novamente na mesa de apoio, foi ao fogão para atirar mais um pedaço de lenha ao fogo e saiu pela porta se sentindo mais leve.

"'Taaaaarde!" O cumprimento veio arrastado logo depois de uma cusparada no chão, e seguido de um sorriso de dentes amarelados e um acenar do chapéu de palha de abas largas. Ângelo se recostou no batente da porta e acenou de volta com um sorriso enquanto o velho apeava da tobata que trazia, à reboque, as sacas de adubo.

Era quase fim da tarde mas o sol permanecia forte. A pele tisnada e sulcada do velho brilhava com um suor que não escorria.

— Boa tarde, Seu Telúrio.

— Tá bão, Seu Ariel?

— Tudo bem. E com o senhor?

— Com a graça de deus. Trouxe as titica pras suas flor.

— E fica pra um mate?

— Se o senhor não deixar a água ferver dessa vez, eu fico.

Chaleira no fogo, Ângelo arrumava a erva com os dedos dentro da cuia enquanto o velho Telúrio enrolava outro tanto dentro de um cartucho de palha de milho, fitando meio curioso a tela ainda branca na sala. Com a chegada do anfitrião — cuia numa mão, garrafa térmica na outra — o velho disparou, depois de certificar a firmeza do cigarro recém-montado:

— Inda não conseguiu começar, né?

— Ainda não. É mais difícil do que parece.

— Deve de ser. O senhor tá há um tempão aqui e continua tudo numa brancura só.

A conversa continuou na varanda do lado de fora da casa. A água fazendo a cuia soltar baforadas brancas daqui, o fogo fazendo o palheiro soltar baforadas brancas de lá.

— O senhor tem razão, Seu Telúrio. Estou há um tempão aqui, né?

— Logo, logo volta o verão e isso aqui vai ficar quente de secar bosta outra vez. O senhor lembra como tava o clima quando chegou aqui?

— É verdade. Era inverno, um frio danado. O capim amanhecia todo branco.

— Agora tá verde — o velho soprou uma nuvem branca como para comparar as cores.

Ângelo suspirou um riso, tornou a encher a cuia e passou para o velho Telúrio.

— Ainda bem que a cabana já era climatizada. Tenho que lembrar de agradecer ao Hermes.

— Ele que mandou o senhor pra cá?

— É. Ele que deu a ideia. Disse que ia ser bom para espairecer. Só não disse que era tão frio no inverno. Não sei como o senhor aguenta.

— Ora, como todo mundo! — respondeu o vendedor de titica, passando o palheiro fumegante.

— Mas o senhor não sente frio, não?

— Sinto, sim, senhor. No inverno eu sinto frio. Quando tá quente eu sinto calor. Quando tem brisa, eu sinto o vento.

— Eu não... — e ficou um tempo olhando a fumaça que lhe saía dos lábios num cone nevoento — Frio ou quente, eu não sinto a menor diferença ali dentro. É como se estivesse sempre tudo igual.

— Quando a gente tá num lugar assim, só sente alguma coisa mesmo quando sai de casa.

— Pode ser, Seu Telúrio, pode ser.

— Inté porque, se o senhor tá procurando alguma coisa nova, de que adianta procurar no mesmo lugar de sempre?

— Mas eu não estou aqui desde o inverno? Não vim para um lugar diferente? Até agora não me pintou uma só ideia nova que preste, só merda!

— E o que tem de mais nisso? — Cuspiu no chão e devolveu a cuia.

Ângelo atirou o toco final do palheiro acabado no capim e tornou a encher o recipiente. O velho continuou:

— Se é só isso que o senhor tem até agora, tem que fazer brotar alguma coisa disso. Eu também já tava numa situação que só tinha me sobrado duas galinha poedeira e um quintal cheio de titica. Pois não tô eu aqui vendendo titica pro senhor e pra mais uma porção de gente? Os seus canteiro não tão mais bonito por causa dessa titica toda?

— O canteiro até está mais bonito com a titica, Seu Telúrio. Mas se a gente mexer com ela, vai feder.

— Mas se não mexer, vai secar. E daí não adianta nada. Só se mexer é que vai nascer alguma coisa. No final das conta, se não feder, não floresce nada.

Terminaram a conversa falando da aplicação do adubo nos canteiros, dos cuidados de poda e do controle de pragas. Seu Telúrio ficara de trazer algumas de suas galinhas temporariamente para que se alimentassem das pragas e de quebra já produzissem titica para que o canteiro florescesse. Assim, dividindo conversas de esterco, pétalas e beleza, assistiram a tela branca das nuvens ganhar as pinceladas rosadas do poente.

A garrafa térmica ficou leve, o sol ficou baixo e a tobata tornou a soar já no início da noite. O som do motor foi sumindo estrada abaixo, deixando no ar apenas o cheiro do adubo nos canteiros.

Meses depois, longe dali, não fazia nem frio nem calor. A brisa constante do ar condicionado mantinha o ambiente de paredes brancas a constantes vinte e dois graus. A tobata não mais se ouvia. No seu lugar um burburinho de gente falando. No lugar do mate dividido na bomba, taças de cristal e um espumante indicado por Hermes. No lugar dos canteiros floridos, eram admiradas telas nas paredes por pessoas com expressões compenetradas. No dia seguinte os jornais enalteceriam a nova exposição de Ariel Ângelo, destacando o contraste com seu último trabalho. Em "Anjos de Barro" o autor se distanciava do seu universo pós-apocalíptico e retornava a origens mais orgânicas. Os tons terrosos suplantando o cinza-amarelado de seus trabalhos anteriores. Os anjos buscavam um retorno à essência, diriam. No canto da sala, o pintor apreciava a paisagem. Rostos sorridentes, enfadados, admiradores, amigos, alguns empolgados outros mantendo uma presença protocolar. Notou com curiosidade a filha de um casal amigo, que olhava um dos anjos com perplexidade. Se afastava e se aproximava do quadro com um olhar curioso. Olhou a obra de frente, mirou de lado. Foi se aproximando da tela. O rosto levemente inclinado para cima, bem próximo das pinceladas. Ângelo riu quando a viu contorcer de repente o nariz e afastar-se rápido, com uma careta, olhando o anjo de tons terrosos perplexa. Imaginou se os jornais relatariam também, no dia seguinte, o aroma peculiar dos Anjos de Barro.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ilustra #1 - Passo a passo

Como prometido, aí vai o passo a passo da ilustra abaixo. Quem tiver umas dicas para melhor o processo, sou todo ouvidos. Como sempre, se clicar na imagem amplia. Daí, se clicar com o botão direito e em exibir imagem, dá pra ampliar ainda mais. No post de baixo tb.

Passo a passo


1. Um rough mais solto do traço, determinando as proporções e uma ideia geral da ilustra. Aqui eu dei uma roubada no jogo. Tenho ainda um problema com as proporções e, apesar de ter feito com uma foto referência pra posição, tiver que fazer umas correções colocando o traçado sobre a foto (é, eu sei). Mas em breve quero ver se rola sem precisar desse "redesenhar" sobre a imagem, mas fazer só no olho.
2. Blocando a "cor" (ainda que em PB), pra começar a dar volume.
3. Blocos de cor determinados, começo a dar as primeiras marcações de luz e sombra, desenvolvendo os volumes básicos (value, dizem os gringos). Já comecei as marcações das feições e a desenvolver um pouco mais o nariz.
4.  Boca.
5. Região dos olhos.
6. Acertando o rosto e o começando o pescoço. Aqui dá pra ver que eu tentei dar uma variada no traço, assumindo mais uma pincelada um pouco marcada. Mais adiante abandono a linguagem mantendo um mesmo estilo de acabamento em toda a ilustra. Até gosto do traçado, mas misturar ele com o acabamento mais suave ficou estranho demais.
7.  Definindo os valores do restante do corpo, trazendo o braço mais ao primeiro plano e detalhando os seios (u-lalá!)
8. Trabalhando os detalhes do cabelo. Aqui usei um pincel texturizado pra evitar ficar fazendo fio por fio. Com esse pincel criei os detalhes principais e o sentido em corriam as mechas. Depois, com um pincel mais simples me ative aos detalhes finos e fios mais soltos. Alternando os valores foram criadas as sombras mais profundas e as luzes.
9. A cor propriamente dita (com um fundo abstrato só pra dar um clima). Como os valores já estava definidos, a base da cor não foi muito complicada (variando o pincel em opacidade, e modos como color, overlay etc).
10. Refinamento da cor com uma camada extra de sombra (em multiply, se não me engano. ou algo parecido) e uma de brilho (em screen ou algo parecido).

Fui trabalho um pouco em partes usando quick masks pra isolar áreas pra agilizar o preenchimentoe proteção de áreas que eu não queria atingir. Mas pelo visto isso acabou atrapalhando um pouco o meu acabamento das "arestas" que não ficaram tão suaves como eu pretendia (dá pra ver no contorno do rosto, que ficou um meio impreciso, por exemplo).

E é isso. Agora é praticar pra melhorar. Se vc tiver alguma dica, mandaê!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Ilustra #1


Primeira tentativa de ilustração com a Wacom no Photoshop. Demorou muito mais do que o esperado, mas saiu.  Assim que der eu posto um passo-a-passo com os estágios, do rough ao final. Não só pra mostrar como foi feita, mas pra expor o processo na esperança que alguém aí possa dar umas dicas tanto qto ao processo como qto ao resultado.