quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A Antífona do Traidor

"Antes que o primeiro galo cante, um dentre vós me trairá." A sentença caiu sobre a mesa como um malho sobre uma bigorna. As centelhas se espalharam nos olhos faiscando bravios de um lado a outro. Como o choque de metal contra metal, o alarido ressoou nas vozes nervosas. A movimentação inquieta foi como o rufar de asas de mil pombos. E se imprecações fossem ali permitidas, teria havido uma chuva delas. Um misto de revolta, surpresa e negação tomou a mesa. Indignados, os presentes trocaram rápidos olhares inflamados e perscrutadores. Todos, exceto um.

Cujos olhos baixos não revelavam brilho algum, mas cujo peito ardia como se tentasse abrasar uma fogueira de chamas ágeis enquanto se esforçava para suportar o calor. Absorto em ideias inflamadas, não deu pela mão que se ergueu espalmada da cabeceira. Só voltou a si quando o silêncio retornou à mesa, como um convidado que chega atrasado. Todos tinham os olhos cravados na cabeceirada mesa. Da cadeira de espaldar alto, o mestre reforçou: "Esta é a última ceia em que estaremos todos reunidos. Em verdade vos digo: antes que cante o primeiro galo, um dentre vós me trairá". Não olhava diretamente para ele, apenas corria os olhos por todos, de maneira igual. "Um dentre vós me trairá e assim há de ser, antes que brilhe a luz sobre a Terra".

"Mas, mestre, tem de haver um engano. Quem dentre nós seria capaz?"

"Acaso antes enganei-me? Um dentre vós me trairá e assim será, para que o mundo seja mundo".

Podia sentir no peito o ardor crescer, como se um tição revolvesse-lhe as brasas fazendo subir-lhe chamas.

"Não temais. A aurora trará um novo tempo, de separação, mas glórias maiores. Para agora e todo o sempre, enquanto o mundo for mundo".

O pescoço já lhe ardia com o erguer das chamas, o ar ficava abafado à sua volta, o sangue lhe fervia. A cabeça lhe doía e o peito ameaçava explodir.

"Um dentre vós me trairá e com a traição virá a aurora. É chegada a hora".

Ergueu os olhos injetados e deu com os do mestre lhe olhando da ponta da mesa. Ardendo, levantou-se assombrando a todos. Sentia-se como se a pele fosse o barro do ventre de uma fornalha. Foi até a ponta da mesa — coxeava já um pouco da perna esquerda — inclinou-se sobre o homem na cadeira de espaldar alto e lhe beijou a face, fria ao contado de seus lábios quentes. Com os olhos chamejantes, imaginou um sorriso invisível e nos olhos dele, pensou ter visto compreensão.

Deu as costas à mesa e foi-se, coxeando rápido. O peito já se incendiando. As labaredas começavam a subir-lhe a pele em línguas de fogo a lamber-lhe os braços, as costas, as asas. Alguns dos outros que estavam à mesa se apiedaram. Levantaram-se e o seguiram. Alguns ainda capazes de lançar um olhar frustrado e rancoroso à mesa que ficava para trás. Miguel fez menção de levantar-se, a mão já à bainha, mas a mão que veio da cabeceira da mesa lhe tocou o ombro, conciliadora.

Coxeou com o corpo a queimar, seguido de longe pelos outros. As penas chamuscadas caindo ao chão, a testa latejando. Da beira da existência olhou para baixo e viu a Terra pequena, distante, perdida no escuro. Mal suportando o último passo, atirou-se no espaço enegrecido. Um lume na escuridão. Rebentou-se em chamas, ardeu e luziu como o fogo que se ergue do ferro quente golpeado. E na escuridão se fez luz. A Terra então, pela primeira vez, iluminou-se. Os outros, atrás dele, já se precipitavam também tomados pelo fogo dos caídos, mas próximos dele, que ardia em fulgor, eram ofuscados e pareciam apagados; brilhando apenas quando ele se distanciava, do outro lado do orbe. Assim, passou ele a ser. Uma luz na escuridão, a escuridão para a luz. E com a luz da primeira aurora, cantou o primeiro galo, a antífona do traidor.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A Última Geração

Quis a fortuna que optasse eu por passar meus últimos dias à beiramar. Não deve demorar agora, mas não há do que se arrepender e contento-me com a ideia de ter podido acompanhar estes últimos eventos. Se fosse de outra forma, creio, não faria muita diferença. Muito menos para mim. E aquilo foi a coisa mais assombrosa que vi. Você certamente não verá. Porque você provavelmente nunca vai existir para ler esta carta, seja lá que for você. Eu sou a última geração.

Acordei cedo naquele dia, como de costume. Tomei o desjejum e saí para caminhar na areia. Naquele dia vi o primeiro sinal. A areia ainda tinha a marca molhada da maré, que agora estava lá embaixo. Bem lá embaixo. Contei cinco barcos pesqueiros pequenos na areia, deitados de lado, quilhas à mostra. Mais alguns encalhados na maré baixa, mastros inclinados balançando quando as marolas estouravam sob os cascos quase completamente aparentes. Os pescadores reunidos em grupos tentando retornar os barcos à água ou imaginar o que havia acontecido. Aproximei-me aos barcos, as âncoras expostas atiradas na areia, e fiquei vendo o mar com os pescadores. A maré nunca esteve tão baixa. Caminhei até a espuma branca e deixei que lambesse fraca meus pés. Virando-me pude ver a sacada do meu apartamento de frente para o mar. A faixa de areia que nos separava estava com o dobro do comprimento habitual.

Lembrei da única história que já ouvira em que a maré havia recuado tanto do dia para a noite. Nesse caso, da noite para o dia. Olhei fixo no mar, além da rebentação, em busca de algum sinal, mas as vagas pareciam querer se retirar escondendo um segredo. Lembrei das polinésias, do Pacífico, daquelas cenas que abalaram o mundo em telejornais aproveitadores. Devo ter deixado escapar a palavra por entre os lábios numa expiração: “tsunami”. Olhei em volta. Dois pescadores me olharam com dúvida. Já havia juntado bastante gente para ver o mar. Aposentados, patricinhas, atletas, velhos de pulmões condenados que tossiam sangue antes de ir caminhar na areia. Por um momento, juro, pensei em não avisar. Deixar que viesse, aguardar a chegada no meio de toda aquela gente. Mas logo vi um casal de uns trinta e tantos, quarenta anos, discutindo a possibilidade. Eles perceberam que eu os olhava. A vantagem de ter poucos mas alvos cabelos à cabeça e muitas e profundas rugas à cara é que, se você consegue evitar uma aparência senil-babona, as pessoas acreditam que o você tem a dizer tem realmente alguma valia. Fiz cara de sábio pra justificar as expectativas deles e confirmei as suspeitas que levantavam. Acrescentei: “Para a maré já ter recuado tanto, já deve estar a caminho”. Depois de alguns segundos de choque, os gritos de tsunami correram a praia. Um pequeno grupo se organizou para evacuar o local e avisar os moradores próximos enquanto o restante correu em pânico para longe do mar. Mas se você tossisse sangue pela manhã e sua melhor perspectiva fosse uma cama de hospital, você também não teria tanta pressa.

Logo estava praticamente só na praia, a marola me tocando os dedos dos pés prenunciando o que estava por vir. Além de mim, apenas dois teimosos e ignorantes pescadores ainda mexendo nos barcos e um outro terceiro, tão teimoso quanto eles, tão velho quanto eu. Olhou-me com o que pensei ser cumplicidade — mas já não tenho tanta certeza — e ficamos, distantes um do outro, olhando o mar. Passou muito tempo. As ondinhas débeis já perdiam força a alguns centímetros de meus pés, nem os tocando. Depois de um tempo o velho acendeu um cigarro e saiu caminhando ao longo da faixa de areia, sem pressa. Quando deu dez horas mais ou menos os homens já tinham conseguido fazer os barcos ao mar. As vagas pareciam as mesmas de sempre, apenas mais distantes. Retornei ao apartamento perdido em pensamentos.

Preparei um almoço rápido e fui à sacada olhar as ondas ao longe, de cima. Apenas uma infinita planície verde espumante. Um ou outro barco percorrendo-lhe as trilhas atrás dos cardumes. Ao chegar da noite, os barcos que tinham os cascos levemente banhos por águas rasas já estavam completamente deitados na areia praticamente seca. As âncoras paradas no mesmo lugar. A dúvida dormiu comigo aquela noite.

Acordei mais cedo do que de costume. Mal percebi-me desperto, corri à sacada. Do meu apartamento se estendia uma enorme faixa de areia. Quatro ou cinco vezes maior do que havia na véspera. Quase duas dezenas de barcos estavam pousados na areia, distantes da água, qual uma carçassa ressequida. Na extensa praia, uma pequena multidão de pescadores e curiosos tentava decifrar o fenômeno. Desci à praia e fui ao mar afastado. Devo ter levado uns dez minutos até sentir a água fria nos pés. Com as mãos em concha capturei um pouco do líquido. Passei provei o gosto, lavei o rosto. Olhei para o apartamento, já pequeno. Olhei de volta para o mar, infinito como sempre. Agora mais do que nunca, um mar de dúvidas. A praia, cheia de indagações, com nenhuma solução ou conclusão. Na areia algumas poucas estrelas do mar, ouriços em pequeno número, aqui e ali. Uma rede de pesca estendida no seco com uns poucos peixes apanhados. Não demorou uma hora para que começassem a aparecer as câmeras, os microfones, as autoridades. Especulações.

Tomei o meu café na sacada, olhando o mar lá longe e a praia cheia. A tevê ligada na sala trazia especialistas e charlatões tentando analisar ou aparecer. Todos com o mesmo sucesso nulo em descobrir uma explicação. Fui buscar mais uma xícara quando vi na TV a imagem de uma enorme vala sobre a qual passava uma ponte cheia de gente. No fundo da vala um lodo lamacento e um fio de apenas dois palmos de largura, de água. Era a ponte que cruzava o rio que dividia a cidade do município vizinho. As estações de tratamento já não estavam sendo abastecidas. Poucos córregos e rios ainda tinha água suficiente para encher os tanques. O mar havia se recolhido em toda a costa. A água estava desaparecendo. E não como uma força de expressão ou papo de ambientalista. Ela estava, de fato e simplesmente, desaparecendo.

Fui ao mercado para descobrir que não fui o único que teve a ideia. Consegui levar apenas algumas garrafas entre uma turba em busca de água para estocagem. Na fila e na confusão ouvi que os outros afluentes do rio também estavam secando. Nas cidades vizinhas o mesmo acontecia em rios diferentes. Voltando para casa vi um grupo de cinco homens enchendo garrafões na fonte em frente à prefeitura. Voltei para casa, abri as torneiras e enchi baldes e panelas. Na TV, praias do mundo inteiro recuando. Rios desaparecendo. Lagos virando crateras. Não demorou muito e o mundo todo estava secando como seu um ralo tivessesido destapado.

Agora já faz bastante tempo. Mais de duas semanas. Do lado de fora do meu apartamento um grande deserto de areia se estende até o horizonte. Dezenas de barcos no meio da areia seca. Fora de vista, centenas, milhares. Alguns dos pescadores resolveram seguir o mar onde o mar fosse. Fizeram os barcos à água e ficaram sempre em águas rasas, próximas da costa. A medida que o mar recuava, eles avançavam. Hoje não sei onde estão. Na TV vi o Everest coberto de pedra. O gelo havia sumido. Os alpes andinos com estações de esqui sobre montanhas castanhas. As plantas, claro, começaram a morrer. Toda a cadeia alimentar logo começou a desmoronar. Fernando de Noronha tornou-se uma montanha. Gibraltar já podia ser cruzado a pé, como vários outros pontos. Imigrantes ilegais começaram a simplesmente andar a outros países. Em busca de água ou de um sonho inútil. O Mar Vermelho foi novamente atravessado. As religiões, não é preciso dizer, foram todas à loucura. O Mar Morto virou uma enorme cratera de sal. Os pólos praticamente sumiram e toda a confusão que os cientistas previram quando isso acontecesse, na maior parte aconteceu. Frio, calor, era glacial. Tudo está começando. Hoje, parece, poucos são os lugares que ainda tem alguma água, mesmo que salgada e não potável. Equipamentos para tornar o líquido potável trabalham sem parar. Pela manhã uma reportagem acompanhava um homem de jipe a caminho da África. Foi barrado por uma cadeira de montanhas, mas ao que tudo indica, se não fosse por isso até poderia ter conseguido. O maior reservatório de água que resta são as Fossas Marianas, guardadas pelo governo americano sob supervisão da ONU. Mostraram uma foto de satélite. A Terra vista do espaço está marrom. Entre os continentes, enormes desfiladeiros. Os rios quase todos se foram. O Brasil ainda guarda o que resta do amazonas, agora só um fiorde inexpressivo. O Nilo parece que foi assumido pela União Européia. O Yang-Tzé está cercado, da forma possível, por tropas chinesas, mas oferece ainda menos esperanças, mesmo para a China. Agora não há nada mais o que fazer. A água que me resta cabe em uma garrafa. Deixo essa carta apenas para mim. Ninguém mais vai lê-la. Não haverá mais ninguém. Eu vou, pela última vez, em busca do mar. Parto a pé, pelas areias que se estendem do lado de fora do meu apartamento. Uma última marcha de um planeta que se vai. A última geração.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A Obscura Morte do Sr. Poe

"Prezado Dr. Snodgrass,

Há um cavalheiro aqui no Ryan's 4th, em muito lastimável estado, que responde pelo nome de Edgar Allan Poe e que diz conhecer o senhor. Asseguro-lhe de que ele necessita de cuidados imediatos. Aguardo-o com urgência,

Joseph W. Walker.
03 de outubro de 1849"

Dentro do coche, Henry Herring relia a carta percorrendo a caligrafia apressada do Sr. Walker, imaginando o que agora estaria se passando com o sobrinho. Ao seu lado, o Dr. Snodgrass olhava-o com pesar, imaginando — ou tentando imaginar — o que se passava sob o cenho franzido do amigo. Os dois embalados pelos solavancos noturnos das ruas de Baltimore, iluminadas pelos candeeiros recém acesos. Do lado de fora, os prédios rentes às calçadas debruçavam toldos à sua passagem e um ar frio soprava da baía trazendo burburinhos arrulhados pelo vento. O Sr. Herring dobrou o bilhete com cuidado e, depois de um tempo, retornou-o ao seu destinatário.

— Fez bem em me chamar.

O Dr. Snodgrass tomou o papel e colocou-o no bolso da casaca, apenas acenando com a cabeça, em resposta. Seguiram o resto do caminho em silêncio. O coche começou a passar pelas bandeirolas vermelhas, brancas e azuis penduradas nos postes, das janelas e por sobre a rua. O barulho da baderna e bravatas já chegava e, longe, pode-se ouvir um estouro. Se de algum foguete de comemoração ou algo menos festivo, era difícil dizer. Logo as paredes dos comércios pelos quais passavam os viajantes começavam a revelar alguns cartazes de "vote" e palavras de ordem. Quanto mais se aproximavam do Ryan's 4th, mais o clima de eleição se acentuava do lado de fora das janelas abertas.

A taverna estava movimentada. Um entra e sai de todos os tipos, na maioria em grandes grupos. Membros de partido comemorando ou vociferando contra os adversários. O coche parou do outro lado da rua. Os dois passageiros desceram pelo lado da calçada. Sapatos lustrados de pontas arredondadas, chapéus escuros de aba curta e casacas até pouco acima dos joelhos. O Dr. Snodgrass ajeitou os óculos de aro redondo sobre o nariz enquanto o Sr. Herring conferiu o bigode bem aparado. Do outro lado da rua ouviu-se alguma imprecação contra os Whigs que rendeu alguma confusão com prováveis membros do partido citado. Os dois companheiros se olharam de lado mas, antes que pudessem tomar uma decisão, foram interpelados por um homem jovem, rosto imberbe, colete e boina de couro castanho, já com algum uso:

— Dr. Snodgrass?

Conferindo o bilhete que tinha no bolso, o Dr. Snodgrass respondeu com certa dúvida:

— Sr... Walker...?

— O Sr. Walker pediu para que eu viesse ao seu encontro. Ele está com seu amigo e parece preocupado. Sigam-me, por favor. É a casa aqui ao lado. As ruas estão muito confusas esta noite para aguardar do lado de fora com alguém... que não esteja tão bem de saúde — completou com cuidado ao ver os olhos interrogativos do Sr. Herring.

Os homens não comentaram nada mas seguiram seu guia. A casa realmente era próxima e logo estavam aguardando em um hall de madeira de cor canela, já com os casacos pendurados num cabideiro. Henry Herring tomou nas mãos uma bengala de corpo negro e esbelto, com ponteira de couro e uma cabeça de prata bem polida, que estava recostada junto ao cabideiro. A lateral do objeto estava coberta por uma leve crosta de lama já começando a secar, mas ainda pegajosa.

— É de Edgar?

— Já a usa há algum tempo, pelo que sei.

— Dr. Snodgrass. — Foram interrompidos por um homem de bochechas rosadas, bigodes fartos e olhos claros. A cintura larga amparada por suspensórios marrons que corriam sobre uma camisa social com as mangas compridas arregaçadas. Estendendo a mão cumprimentou o Dr. Snodgrass:

— Sou Joseph Walker. Fui eu quem encontrei o Sr. Poe. Por aqui, por favor.

— Obrigado, Sr. Walker — respondeu seguindo o homem — este é Henry Herring, meu amigo e tio de Edgar. Viemos assim que recebemos sua mensagem.

— Obrigado pelos seus cuidados com Edgar, Sr. Walker. E por sua presteza em nos chamar. Como ele está?

— Sr. Herring, receio que seu sobrinho não esteja bem. Veja bem, não sou médico, o que quero dizer é que não está nas melhores das condições. Por isso pedi que viessem com urgência.

Os homens percorriam os aposentos seguindo Walker.

— Agora o Sr. Poe está descansando. Acho que dormiu, finalmente. Encontrei-o ao lado do Gunner's Hall, digo, do Ryan's 4th, como devem conhecê-lo. Estava caído nas sombras na rua lateral, se levantando, quando o vi. Fui ajudá-lo ao que ele tentou me agredir com a bengala. Me confundiu, ao que parece, com um tal de Reynolds. Estava tão desorientado que o golpe não passou nem perto de me atingir. O teria deixado caído ali mesmo se não o tivesse reconhecido. Acompanhei alguns números do Broadway Journal — é uma pena, por sinal, que aquele projeto não tenha dado certo — mas, enfim, graças a isso reconheci o Sr. Poe e o trouxe para cá. Como ele estava sem carteira ou documentos, não havia outra forma de saber a quem chamar.

Pararam em frente a uma porta fechada:

— Apenas adianto aos senhores que o estado do Sr. Poe, como disse, não é dos melhores. Mas considerando as circunstâncias e o dia de hoje, não está muito pior que alguns dos estimados cidadãos de nossa cidade lá fora.

O chiste não despertou comentários e o Sr. Walker abriu a porta para um quarto pequeno com uma cama de solteiro e uma janela com uma fresta aberta. O Sr. Poe estava deitado sobre os lençóis. Numa cadeira ao lado da cama, um chapéu roto e mal acabado estava pendurado no encosto e, dobrado sobre o acento, um paletó já velho, desbotado e bastante desgastado. A calça, bastante larga, estava em igual estado, somada uma mancha de lama seca no joelho esquerdo. Os pés tinham sapatos de um couro opaco e sem vida, de um número claramente maior do que o necessário. Era como se o corpo dentro daquelas vestimentas tivesse de repente encolhido, murchado, como que minguando e desaparecendo para dentro de si mesmo. Lá fora uma noite agreste batia levemente nos umbrais.

— Pode ser uma bebedeira, só isto, e nada mais.

Os recém chegados não pareceram se sentir aliviados pelas esperanças gentis do Sr. Walker, vendo aquelas olheiras profundas no rosto pálido, ressaltando ainda mais a testa larga de cabelos pretos emplastrados em suor.

Quando o coche partiu, levou também em seu interior o Sr. Poe e seus pertences. Sr. Walker não aceitou qualquer recompensa por parte do Sr. Herring ou do Dr. Snodgrass. Solicitou, apenas, que, se não fosse muito incômodo, que o Sr. Poe lhe pudesse fazer uma visita após sua recuperação para que pudessem, os quatro cavalheiros, desfrutar de um chá ou café qualquer dia desses. Dr. Snodgrass sorriu afirmativamente enquanto o Sr. Poe era amparado pelo tio. O coche partia em direção ao Washington College Hospital, deixando para trás o Ryan's 4th e sua algazarra de dia de eleição.

A inconsciência do Sr. Poe continuava, mas parecia respirar sem dificuldades, apesar do suor excessivo. A febre não era muito, mas mantinha-se. Apesar do ar frio do lado de fora, as janelas seguiram completamente abertas. Em parte para refrescar o Sr. Poe, em parte para minimizar o odor desagradável que exalava de suas roupas e pessoa.

Foram recebidos no hospital pelo Dr. Moran. Antes de qualquer exame mais aprofundado, antecipou, solicitaria uma permanência mínima de vinte e quatro horas para o paciente. Depois de vários minutos e poucos papéis preenchidos pelo Sr. Herring, o paciente Edgar Allan Poe já repousava em um leito próximo a uma janela basculante por onde se insinuava um luar azulado sobre as pálpebras fechadas que escondiam órbitas fundas e inquietas, de olhos acelerados, remexendo-se em sonhos inquietos de um sono profundo de águas escuras.

***

Longe podia ver as luzes de Baltimore se aproximarem devagar. Apoiado no parapeito recebia o ar no rosto pálido. Os cabelos despenteados alvoroçavam-se sobre a larga testa. Confiava aos bigodes negros pensamentos ainda mais sombrios. As águas escuras da Curtis Bay recebiam o Pocahontas que avançava a fumegantes baforadas na noite. Richmond agora ficara para trás. Na empunhadura prateada da bengala lustrosa observava o seu reflexo deformado. Lembrou do julho anterior em que havia estado em companhia do Dr. Carter em Nova Iorque e que, por descuido, trocara de bengalas com ele. O grasnar fantasmagórico de um corvo fez com sobressaltasse-se, sentindo um frio gélido e mortal subir-lhe a espinha. Umas gaivotas, negras contra o céu noturno, sobrevoavam o navio de modo agourento, girando em círculos como que evocando um enorme redemoinho que engoliria nas águas escuras o barco com todos os seus tripulantes. Achou por bem deixar o convés e procurar um lugar mais seguro no interior da embarcação. Entrou em sua cabine, trancou a porta e atravessou a penteadeira logo atrás. No local onde estava a penteadeira havia ficado apenas, na parede um espelho de moldura oval, lembrando um retrato. A imagem evocou-lhe um quadro agourento de Virgínia morta. Afastou os pensamentos, pegou tremendo, de um frasco sobre o criado-mudo, dois comprimidos e engoliu-os a seco, mastigando o gosto amargo entre os molares, ouvindo o ranger dos dentes, o triturar das peças, imaginando a cor marfim de trinta e dois dentes roubados caindo chacoalhando ao assoalho. Cuspiu em horror os comprimidos esfarelados e sentou-se abraçando os joelhos, com as costas nas paredes e olhos fechados com força.

O descer a rampa do Pocahontas apresentou uma figura distinta, de trajes bem cortados, chapéu negro elegante e sapatos brilhantes. Uma gravata um pouco torta e bela bengala. Só destoavam da elegância os olhos insones vermelhos de olheiras profundas, um brilho de suor sobre a pele do rosto e os cabelos um tanto bagunçados para aquela hora do dia. Seguiu a rua portuária se afastando do píer. Vagou pela cidade, por muito tempo, aproveitando as horas belas do dia, deixando que a mente passeasse de novo por aquelas ruas largas, vendo as árvores, os comércios, o vai-e-vem da urbe. Deixou que o sol lhe aquecesse o corpo e o que carregava dentro dele, que lhe expurgasse as sombras das noites mal dormidas, dos dias, semanas — meses, talvez? — em que vinha vivendo naquele estado de nervos. Vagou por toda a manhã e decidiu que visitaria o bom Dr. Brooks à hora do almoço. Quem sabe lhe fizesse bem um pouco de companhia durante a refeição. Bateu à porta por repetidas vezes, sem resposta. Decepcionou-se e comeu sozinho uma refeição frugal e rápida em qualquer lugar.

Os cartazes das eleições decoravam os cafés, lojas e tavernas. Carros passavam pedindo votos a candidatos e as bandeirolas coloridas se espalhavam pela cidade. O barulho o desorientava e ficara feliz por saber que partiria em breve para a Filadélfia. Quem sabe depois continuasse mesmo até Nova Iorque. Poderia devolver finalmente a bengala do Dr. Carter. Vagou pela cidade, encontrou um par de conhecidos, uma aqui outro acolá, agradeceu educadamente as boas impressões recebidas de alguns de seus livros e logo procurou os arredores da cidade, evitando o incômodo contato com alguém que pudesse lhe reconhecer. Achou que tivesse sido novamente reconhecido por dois homens corpulentos que lhe olharam do outro lado da rua. Mas ao contato com os olhos fundos do escritor, disfarçaram e fingiram conversar entre si. Um receio começou a tomar conta do Sr. Poe. A mão esquerda já tateando dentro do bolso o frasco de comprimidos, a garganta lhe secando. Apressou o passo e tentou afastar-se dos homens enquanto lhes sentia os olhos quentes na nuca. Dobrou uma esquina, recostou-se contra a parede de tijolos e abriu nervosamente o frasco. Atirou dois comprimidos para dentro da garganta sem se preocupar em mastigar. Ouviu um miado longo e agudo e saltou para longe da parede, olhando-a com olhos arregalados e dentes expostos num esgar de pânico. Uma senhora próxima assustou-se com a cena e apertou o gato de estimação no colo, fazendo o bichano saltar para o chão. O sol baixo do fim do dia projetou sua sombra negra e felina na parede de tijolos. Quando um grito ia escalando pela garganta, o Sr. Poe foi alertado por um brado mais grave e mais alto, logo ao seu lado:

— Cuidado!

Por pouco não foi atropelado por um par de cavalos que puxava velozmente uma charrete de duas rodas. O chapéu lhe voou da cabeça revelando os cabelos em pé. "Maluco!" foi o que gritou alguém de dentro do veículo. Aos olhos acusadores dos que estavam em volta, saiu a passos largos cortando as ruas de Baltimore. O corpo quente em contraste com o vento que vinha frio da Curtis Bay. Sentia arder os poros e pode imaginar pequenas chagas rubras, como uma peste a lhe cobrir os poros em sangue a verte-lhe o pouco da mal fadada vida que lhe restava, como que uma peste transmitida por um vulto sem rosto. Viu-se golpeando novamente a porta do Dr. Brook a ponto de chamar a atenção de um vizinho.

— O Dr. Brook não está na cidade.

O vizinho arrependeu-se de revelar o fato ao ver a aparência deplorável do visitante, parecendo intoxicado, diria mais tarde, num eufemismo para bêbado, louco ou drogado, como for do agrado do ouvinte.

— Mas a casa está muito bem guardada pelos vizinhos, não se preocupe. — Disse em complemento.

A noite caía e o Sr. Poe resolveu tomar o caminho mais curto para a primeira pousada que prestasse para passar uma noite de descanso, ao menos. Próximo ao local em que estava só encontrou uma velha pensão guardada por uma senhora quase tão velha quanto. Alugou um quarto mofado e com manchas de umidade nas paredes, por falta de um que não as tivesse. Lá fora o vento frio soprava enquanto o Sr. Poe imaginava se ele não entraria pela janela para lhe gelar e matar como num reino ao pé do mar. Assim, em sonos breves e entrecortados passou a noite, vendo nas paredes figuras bizarras que renderiam ainda algumas histórias, se imaginasse que ainda escreveria alguma. Mas da janela, um rufar de asas lúgubres parecia contestar: "nunca mais".

Passou a maior parte do dia seguinte no quarto, a suportar os calafrios que lhe percorriam o corpo, assoando o bigode melecado com um lenço sempre que preciso. Quando saiu já era a tarde do outro dia. Caminhou pelas ruas e decidiu que compraria a passagem para a Filadélfia e deixaria Baltimore em breve. Passou por uma taverna. Como a maioria delas, era também o local de votação. Pensou na sensação do líquido quente lhe descendo pela garganta, mas numa réstia de força de vontade seguiu em frente. Comeu um sanduíche para aplacar o estômago que reclamava da acidez dos comprimidos da noite anterior, ainda vazio. Quando chegou na estação pediu uma passagem para Filadélfia para o dia seguinte. Separou, de um grande maço, as notas referentes ao valor e entregou ao vendedor. Trazia sua mala de mão e a bengala do Dr. Carter. Quando virou-se para sair esbarrou em dois homens que estavam atrás de si na fila. Desculpou-se e viu os olhos dos homens se deterem por alguns segundos no maço de notas que guardava no interior do casaco. Saiu desconfiado afastando-se dos trens.

Passando por uma ruela viu um dos cartazes das eleições falando do candidato dos Whigs e lembrou de seu primo Neilson. Estaria provavelmente envolvido com os preparativos das eleições e morava no outro lado da cidade, mas era a quem talvez pudesse recorrer, caso necessitasse. O cartaz foi, por uns momentos, coberto por uma sombra que surgiu e logo desapareceu furtiva na escuridão que caía e se adensava. Os candeeiros que se acendiam deitavam uma luz fantasmagórica ao lugar, como fogos-fátuos por entre tumbas. O Sr. Poe pensou ter ouvido passadas cuidadosas e achou por bem acelerar o passo. As passadas atrás de si pareceram também acelerar. Praticamente correndo dobrou uma esquina no que foi agarrado no pulo por um braço forte que saiu das sombras entre dois prédios. Logo, outro homem dobrou a esquina rapidamente e desapareceu também na sombra entre as construções.

A cabeça latejava e girava. O ar cheirava a álcool e láudano e a um passado que parecia querer retornar. O estômago reclamava ácido. Quando os olhos se acostumaram à escuridão percebeu-se deitado numa cama improvisada no chão. Sentou-se. Ao seu redor os dois homens estavam sentados sobre barris de madeira simples, iluminados pela luz de uma lanterna a óleo. Um deles estava com um broche dos Whigs.

— Não me importa se você já votou hoje — um deles começou — Você já está com outras roupas e ninguém vai perceber se você votar novamente. Você vai lá, vai votar pelos Whigs, retorna aqui, troca de roupa e vai votar uma outra vez ainda. Depois você pode pegar a sua maleta, com suas roupas e dar o fora daqui, entendeu? É só ir lá e votar pelos Whigs. E não pense em nos enganar, o mesário estará conferindo os votos.

Colocaram-lhe na lapela um broche igual ao do homem que falava. Repetiram as ordens mais duas vezes, ofereceram mais um trago de uma garrafa que tinham na mão, que o Sr. Poe recusou com a impressão de já sentir, mesmo assim, o gosto do conhaque à boca.

— Estas eleições são muito importantes. E nós não lhe queremos mal algum. Basta fazer como o combinado e o senhor poderá sair sem problemas, ok senhor...?

— O homem lhe perguntou seu nome senhor, seria sensato se respondesse. — completou o outro com uma cara de rufião.

— Poe, o nome é Poe — respondeu o assustado Sr. Poe.

Os dois homens se olharam com certa surpresa e dúvida no olhar.

— Espere aqui que já voltaremos, Sr. Poe — e saíram da sala de paredes úmidas de pedra e limo.

Ficaram alguns bons minutos longe, quase meia hora, provavelmente. As paredes pareciam escorrer uma salinidade maligna e úmida por entre as pedras. Os grandes blocos pareciam se curvar opressivamente sobre o abalado Sr. Poe. A cabeça girou com cabelos desgrenhados projetando sombras monstruosas nas paredes insalubres. Os barris de madeira à sua frente pareciam sentinelas. Imaginava que vinho lhe habitava as entranhas. Sons ecoavam das paredes lembrando murmúrios ébrios emparedados, guardados pelos barris. Pareceu ter ouvido o som de grilhões. Conferiu assustado os punhos: livres. O som parecia vir das paredes ou de algum lugar distante além delas — ou dentro delas. O horror foi tomando conta do espírito já abatido do Sr. Poe que, cambaleante, foi até a porta de madeira e deu-lhe duas batidas como que chamando alguém. A luz da lanterna pareceu ter sido bloqueada por um instante por uma forma humanóide de fronte larga e peluda, vista apenas nas sombras projetadas. Em horror, com o espírito em frangalhos, o Sr. Por se virou para uma sala opressora e escura, de paredes úmidas e sombras que poderiam esconder monstros inimagináveis. Virava a cabeça de um lado a outro, alerta. Conseguiu ver, por outro momento, a sombra de pelos eriçados movimentar-se numa das paredes do fundo. Começou a imaginar longos braços cobertos por pelos acastanhados, uma fronte larga com olhos bestiais, mãos poderosas lhe erguendo pelos cabelos. Virou-se num grito agudo e desesperado, golpeando a porta com mãos, pés e ombros, num desespero crescente. Ouviu os ferrolhos da porta se abrindo e se afastou por um momento. Assim que a porta se abriu o suficiente saiu com a velocidade que ainda conseguia imprimir às pernas bambas, mas foi parado sem muita dificuldade pelo homem com cara de rufião que havia estado com ele há pouco. Foi atirado de volta ao chão do catre e mais dois outros homens entraram. Um deles é o que havia falado com ele antes, que portava um broche. O terceiro homem ele desconhecia.

— Reynolds, seu imbecil! — Disse o terceiro homem.

Reynolds, aparentemente o rufião, se encolheu com desagrado e olhos irados para ele e para o Sr. Poe. O homem do broche se aproximou do Sr. Poe, tirou-lhe o broche da lapela e começou a ajudá-lo a se levantar, enquanto o terceiro homem continuava:

— Esse é o primo de Neilson Poe, seu imbecil! Não há a menor chance de ele votar mais de uma vez sem ser reconhecido. O homem é escritor, volta e meia está nos jornais, por Deus!

Dirigindo-se ao Sr. Poe, já de pé, os olhos afundados nos fundos das órbitas e os cabelos alvoroçados, braços e pernas tremendo, as mãos tateando em vão os bolsos em busca de algum alívio químico:

— Perdoe-nos, Sr. Poe. Houve uma grande confusão, o senhor já pode ir embora. Pensamos que fosse... outra pessoa.

O homem do broche já lhe entregava sua maleta e a bengala de empunhadura prata, agora já suja de lama. Mantinha agora os olhos baixos.

— Reynolds, acompanhe o Sr. Poe à saída — e completou em voz baixa, apenas para o homem — e leve-o direto à estação. Com sorte ele vai embora e evitamos problemas com Neilson.

Deixando o cárcere, o Sr. Poe olhou por sobre os ombros. Viu o terceiro homem e o homem do broche conversando à luz da lanterna. Não pôde rever o vulto peludo de braços longos mas ainda ouvia os murmúrios das paredes suando a salitre e imaginava que pobres almas estariam ali encarceradas. O corpo cambaleante recebeu o ar frio da noite de Baltimore como uma estocada violenta. Quando as pernas fraquejaram, foi amparado por Reynolds. Desvencilhou-se assustado, empurrando o homem com o cabo da bengala contra o peito, quase colocando-o contra a parede de tijolos à sombra da iluminação do noturna. Reynolds, com uma expressão de desaprovação e raiva, agarrou o cabo da bengala e o puxou para si dizendo:

— Eu deveria surrar-lhe com isso!

O Sr. Poe tentou ainda, como pode, manter a bengala em mãos e, com um puxão de cada lado, ouviu-se um clique metálico de uma trava oculta. O corpo lustroso de madeira escura da bengala do Dr. Carter deslizou suave e escorregou revelando, como uma bainha que desfralda a espada, uma brilhante e prateada lâmina delgada de corte único e ponta aguda. O metal intocado refletiu os olhares surpreendidos de Reynolds e do Sr. Poe. Os homens olharam a lâmina fria e olharam-se. Reynolds, num impulso, usou o cabo da bengala que tinha em mãos para afastar a lâmina e tentou agarrar o Sr. Poe. Mas, à visão da arma em punho, o braço recobrou a destreza e, com um movimento circular, desvencilhou-se do corpo da bengala empunhado por Reynolds e foi cravar a ponta aguda no torso do rufião que aterrissou de costas contra a parede. O braço ainda recuou e avançou mais duas vezes, tingindo a roupa de Reynolds de um escarlate que se espalhava pelo tecido. A ponta da lâmina permanecia dentro do peito de Reynolds enquanto na outra ponta a empunhadura prateada pousava na mão relutante do Sr. Poe. O silêncio naquelas sombras era completo. Os olhos arregalados do rufião abatido encontravam as órbitas já quase vazias do escritor. A lâmina parecia vibrar a cada batida vacilante e fraca do coração que suspirava seus últimos ais. O som das batidas, lentas, ritmadas, era tudo o que se ouvia e preenchia os ouvidos e o espírito do destroçado Sr. Poe. tum-tum. tum-tum. Um coração na noite, apenas. Aqueles batimentos que preenchiam a noite e pareciam gritar em acusação.

Olhou em volta para se certificar de que ninguém estava vendo, ou para pedir ajuda, ou com medo de longos braços acastanhados. Um rufar de asas negras e um distante miado apenas responderam ao coração delator. Mas maior horror conheceu o Sr. Poe quando tornou a olhar o corpo fisgado na ponta da espada e no lugar de Reynolds viu sua própria figura, quase como um espelho de si mesmo, de olhos fundos e perdidos, cabelos arrepiados, esgar de horror congelado no rosto. E uma lâmina espetada no peito.

Finalmente, como despertado de um pesadelo, o pobre Sr. Poe recobrou o que pode dos sentidos e tirou a lâmina da figura à sua frente. Tomou o corpo da bengala e reembainhou a lâmina. Partiu apressado e aos tropeços sem olhar para trás, sabendo que de agora em diante também estava morto... morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança. Abandonado de qualquer réstia de luz, sabia que havia assassinado absolutamente a si mesmo.

Dobrou uma esquina com as pernas trêmulas fraquejando, com muito esforço se apoiando à bengala. Deixou cair a maleta que espalhou nas ruas conturbadas roupas e alguns papéis. Contornou um prédio coberto por cartazes de eleição, seguiu pela rua já um pouco mais larga e o joelho acabou vacilando. Um senhor de ampla cintura e olhos claros se aproximou e tocou o ombro para ajudar-lhe a se levantar, mas foi repelido por uma bengalada cega e instintiva que passou ao largo, derrubando o já desequilibrado Sr. Poe. Os olhos vazios e o espírito alquebrado não suportaram mais as emoções e o corpo cedeu amparado pelo Sr. Walker ao lado do Ryan's 4th.

***

No hospital o Sr. Poe intercalava estados de inconsciência com de consciência delirante. A febre não apenas não cedia como havia aumentado por algumas vezes. Debilitado ao extremo, quando consciente o paciente ainda se mostrava muito excitável e qualquer emoção lhe iniciava uma espécie de breve a intenso frenesi que acabava por culminar num desmaio de muitas horas. O próprio Sr. Neilson Poe veio visitar o primo mas foi impedido pelo Dr. Moran de ver o paciente que estava em estado muito frágil.

Era noite de sábado. A noite agreste novamente aguardava silenciosa do lado de fora da janela basculante. Um grasnar longínquo reverberou nos umbrais do hospital. No quarto vazio, ouviu-se baixo um tum-tum. O som se repetiu. O Sr. Poe abriu os olhos sonolentos devagar. tum-tum. Olhou para o teto branco e alto. tum-tum. Parou por um momento, prendendo a respiração e, em silêncio escutou a noite. tum-tum. Num pulo pôs-se sentado na cama com as costas contra a cabeceira de metal branco. Assustado olhou para o quarto vazio. tum-tum. Ouviu em espanto o som daqueles batimentos novamente. tum-tum.tum-tum. O som de um coração pulsante, vingativo, delator. tum-tum.tum-tum.tum-tum. Parecia vir do assoalho logo ao lado da cama. tum-tum.tum-tum.tum-tum.tum-tum.

O Dr. Moran ouviu um grito bestial de seu escritório. Quando chegou ao quarto do Sr. Poe viu o paciente sendo contido por um enfermeiro. O corpo magro e consumido pela convalescença evidenciando ainda mais o crânio pronunciado por baixo do rosto drenado de vida, os olhos arregalados em pavor insano e dos lábios um grito animalesco fazia vibrar o bigode desalinhado repetindo "Reynolds!" enquanto apontava para o chão como se visse um espectro a se levantar da tumba com garras verdugas. Reynolds! tum-tum. Reynolds! tum-tum-tum.

tum-tum.
tum-tum.
O relógio começou a primeira de cinco badaladas seguidas na madrugada do dia sete de outubro de mil oitocentos e quarenta e nove. tum-tum.tum-tum. O Sr. Edgar Allan Poe suspirou pela última vez, muito baixo, a ponto de ninguém ouvir, "Reynolds" e, num esforço final, suplicou finalmente:

— Que o Senhor salve minha pobre alma.

Pode ainda, por um breve e último instante, com os olhos vítreos mirados ao teto, imaginar toda a construção do hospital desabando, as largas paredes ruindo sobre ele, como um último sepulcro de um fim em ruínas.

tum-tum.
tum.

tum.

Não escreveu nem citou mais sentença alguma.

Nunca mais.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

...

poema é uma palavra
correndo
pelada na chuva