sábado, 31 de maio de 2008

A estética da arte como gênese da Criação.

— "Só a arte pode dar vida à verdade."

David Hume


No início, Eru, o Único, que no idioma élfico é chamado de Ilúvatar, gerou de seu pensamento os Ainur; e eles criaram uma Música magnífica diante dele. Nessa música, o mundo teve início (...) e o Fogo Secreto foi enviado para que ardesse no coração do Mundo; e ele se chamou Eä. (Tolkien, 2003, pág. 15)


Para o desenvolvimento de suas obras, Tolkien criou um complexo mundo imaginário e mitológico, com marcantes influências da mitologia nórdica e grega clássica. É em O Silmarillion que o autor cita a gênese deste mundo fictício, como uma canção entoada pelos primeiros deuses — os Ainur — com vozes “semelhantes a harpas e alaúdes, a flautas e trombetas, a violas e órgãos” (idem, pág. 4). A cosmogonia tolkieniana desenvolve-se como uma orquestra, com cada músico, com seu instrumento, seguindo o tema proposto e regido por um maestro. Como nos mitos que inspiraram o autor inglês, existe, na gênese do mundo criado por Tolkien, uma deidade antagonista. Melkor, que ocupa no panteão da obra de Tolkien um papel semelhante ao trapaceiro deus nórdico Loki, destoa da orquestra e da canção harmoniosa dos deuses, influenciando negativamente na criação.

A alegoria criada por Tolkien coloca a arte como instrumento da criação do mundo. E aqueles que o criaram, sob a égide do artista. Como o artista lança mão da arte para criar suas obras — e seus mundos — fica fácil compreender a metáfora que torna a arte como força criadora de um determinado universo. Em A Moça Tecelã, Marina Colasanti coloca no tear artesanal essa força artística criadora:

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. (Colasanti, 2000)

A gênese do próprio mundo é levada a cabo pela arte.

Para Alfredo Bosi, em Reflexões sobre a arte, “A arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura.” e continua: “A arte é uma produção; logo supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos” (Bosi, 1989, pág.13). E a gênese de um mundo, de um universo, uma cosmogonia, não é mais do que arrancar o cosmos do caos.

Platão estendia o conceito de arte ao artesanato, e a qualquer atividade laboral, igualando o artista ao artesão. Em O Silmarillion e em A Moça Tecelã, esse artista-artesão tem como criação maior o próprio mundo. As abordagens das duas obras, no entanto, destoariam entre si sob a luz da análise do Império Romano. Para este, havia uma distinção clara entre a arte e o artesanato. Enquanto o primeiro, que englobava a música, a poesia e as artes cênicas, destinavam-se a comover a alma, o segundo, como o artesanato e a tecelagem, aliavam o útil ao agradável, visavam também o uso. Para tanto tinham uma distinção inclusive de sentido sócio-econômico. “As artes liberales eram exercidas por homens livres; já os ofícios, artes serviles, relegavam-se a gente de condição humilde.” (Bosi, 1989, pág.14). Para a visão romana, o tecelão não era um artista como um músico. Relegando, portanto, apenas a Tolkien, entre os nossos dois exemplos, o uso da arte como gênese da Criação. Apenas a Música primordial que cria o universo de O Silmarillion, e não o tear da Moça Tecelã de Colasanti, mantém o aspecto lúdico da arte cunhado por Kant em Crítica do Juízo, onde a arte é um jogo, uma atividade desinteressada animada pelo prazer estético da criação.

No entanto, acerca do critério hierárquico da classificação romana de arte, Bosi adverte “O pensamento moderno recusa, não raro, o critério hierárquico dessa classificação. O exercício intenso da criação demonstra, ao contrário, que existe uma atração fecunda entre a capacidade de formar e a perícia artesanal.” (Bosi, 1989, pág.14). O artista moderno une técnica e alma.

Sob essa visão mais contemporânea, tanto a criação do mundo em O Silmarilion — pela música — como em A Moça Tecelã — por meio do tear — podem legar essa gênese à arte. Em Amor além da vida, a adaptação para o cinema do romance What Dreams may come, de Richard Matheson, a mesma gênese através da arte é retratada. O protagonista da obra, morto, encontra-se no Paraíso. Esse paraíso é literalmente pintado por ele. Paisagens, construções e vida silvestre são retratadas como uma pintura, feitos de tintas como uma tela. As artes plásticas criam aquele mundo segundo a visão do artista. Tanto na literatura como no cinema, nas artes ou no universo pop, o tema parece recorrente.

Ainda que uma conceituação definitiva sobre o que é ou o que constitui a arte seja frágil, as manifestações artísticas, seja a música, o artesanato, a escultura, a literatura ou a pintura, revelam-se ricas alegorias cosmogônicas. O uso literário da arte como gênese da Criação, talvez seja a forma do artista manifestar-se como um deus. Uma forma de mimetizar a divindade, elevando a arte, através do próprio fazer literário, ao status do sagrado, do divino.


Referências:

TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. São Paulo. Martins Fontes. 2003.

COLASANTI, Marina. A Moça Tecelã. In: Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. Rio de Janeiro. Global Editora. 2000.

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo. Ática. 1989.

www.imbd.com – Acessado em 02/04/2008.


quinta-feira, 22 de maio de 2008

O Último Café de Peter.

Olá, Peter.

Hã...desculpa, nós nos conhecemos?

Sim, claro. Eu conheço você.

Como assim?

Peter, nós precisamos conversar. Você não se importa se eu me sentar com você, não é? Bom.

Olha, amigo, desculpa mas... tem alguma coisa que eu posso fazer por você?

Não, Peter. Infelizmente já não há nada que você possa fazer por mim. Nada.

Então com licença que o meu café tá esfriando, beleza?

Calma, rapaz. Eu só quero falar com você.

Mas eu não tenho certeza se quero falar com você. Nem te conheço e você já vem sentando na minha mesa. Dá pra fazer o favor de escolher outra mesa? O lugar tá vazio. Escolhe qualquer mesa. Aquela lá perto da janela. Aproveita e aprecia a vista.

Não. Eu prefiro aqui no canto. É bem mais aconchegante. E mais... discreto.

Péra lá! Você não tá me cantando, tá?

Ah, ah, ah! Não. Pode ficar tranqüilo, Peter. Não é nada disso.

Você vem aqui, senta na minha mesa e começa a falar um monte de coisas sem sentido. Dá pra fazer o favor de explicar? Eu to tentando tomar o meu café em paz. Aliás, como você sabe o meu nome?

Ah, Peter. Eu sei muitas coisas sobre você. Na verdade, acho que eu sei tudo sobre você.

Olha, cara. Não sei qual é a sua, mas se você não vai trocar de mesa, me dá licença que eu vou...

Sente-se! Sente-se e tome seu café. Você não vai a lugar nenhum.

Eu, er... olha, quem é você? Se é dinheiro que você quer...

Eu não quero dinheiro. Na verdade não quero mais nada de você. É por isso que estou aqui.

Olha, senhor, eu não tô entendendo nada. Quem é você, como me conhece, como sabe o meu nome?

Como eu disse, Peter, eu sei tudo sobre você. Do seu nome ao seu endereço. Sei que você gosta de duas colheres de açúcar no seu café. E sei que a segunda é sempre menos cheia do que a primeira. Sei que você vem aqui quase todos os dias ao fim da tarde, pede um café e fica lendo revistas. Eu sei tudo sobre você. Eu sei coisas sobre você que nem você sabe. Assim como no fundo eu sabia que eu dia nós teríamos que ter essa conversa.

Quem, quem é você? Você tá me seguindo?

Eu não preciso seguir você para saber dessas coisas. Peter, eu sou seu Criador.

Meu o quê!?

Eu sei que você não acredita em mim e acha que sou louco. Mas eu sei disso justamente porque eu o criei um cético. Fui eu quem criou você e todo esse mundo a sua volta.

Você quer dizer... você é... Deus? Rá! Eu devo estar maluco!

Hum... É, talvez seja assim que você me veja. Eu não esperava esse ponto de vista... Mas, não. Eu não sou Deus. Sou simplesmente seu Criador.

Criador? Como assim?

Esse café que você está tomando, você próprio, até esse corpo que eu estou usando agora. Tudo isso é obra minha. Minha criação. Você é minha criação. Eu criei você!

Ih, acho que não, hein! Quem me criou foi minha mãe, lá no Paraná.

Tem certeza?

Claro que sim. Do que você tá falando?

Essas suas lembranças... da sua infância, do seu passado... você tem certeza que as viveu? Que elas realmente aconteceram?

Claro, ué? Você acha que eu inventei isso?

De forma alguma. Eu sei que você não inventou nada. Eu as inventei. Fui eu quem criou essas suas memórias, o seu passado. Fui eu quem lhe implantou essas lembranças. Lembranças que você tem, mas jamais viveu. Lembranças que eu criei e lhe dei.

Hã?

As suas lembranças de criança, por exemplo. Cada passo seu foi arquitetado por mim. Eu criei essas lembranças para que você tivesse um passado. Peter, você nunca foi criança. Você nunca teve que aprender a andar, você nunca quebrou seu braço quando caiu do trepa-trepa na segunda série. De fato, você nunca caiu daquele trepa-trepa. Que por sinal, também nunca existiu. São apenas lembranças. Um passado criado por mim para você. Para que você tivesse uma história.

Do que você tá falando?! Você fez alguma coisa comigo? Algum tipo de experiência? É isso? Eu sou só um rato de laboratório pra você?

Não, não. Não foi nenhuma experiência. Essas lembranças já foram criadas com você. Veja: você não poderia existir sem um passado, sem uma história. Ninguém simplesmente existe. Por isso quando criei você também criei a sua história.

Tá. Você não é Deus, nem um cientista e também não parece nenhum alienígena que me abduziu. Quem é você, afinal?

Seu Criador.

Meu Criador.

Seu Criador.

E você também criou todo o resto.

Tudo que você conhece.

E você quer que eu acredite nisso?

Você não precisa acreditar. Mas sim, eu gostaria que você entendesse.

Como é que eu vou entender? O que é o “Criador”, afinal? Você é um tipo de força superior que criou a existência e agora está aqui tomando um café comigo.... peraí, da onde veio o seu café? A moça não trouxe.

Não ela não trouxe.

Então...

Sim. Eu criei isso também.

Por quê?

Porque eu gosto de café.

Não, não. Porque você me criou. Porque você criou o mundo, a existência, sei lá. E o que você tá fazendo aqui?

Na verdade o princípio é o mesmo. Eu criei tudo isso porque eu gosto. Porque me dá prazer. Assim como esse café. Porque simplesmente gosto de criar.

Então eu só sou um joguete num teatro cósmico?

Meio melodramático, você, não?

Ué, não foi você que me criou assim?

Talvez eu tenha exagerado na dose de sarcasmo. Mas sim. Que bom que você está começando a compreender.

Tudo bem. Digamos que eu engula esse papo todo, que você me criou, criou a existência...

Essa existência. A sua existência.

Então existem outras?

Mas é claro! Uma infinidade.

E você criou todas elas?

Não, não. Apenas algumas.

E quem criou as outras?

Não sei. Algumas delas foram criadas por outros como eu. Mas outras, ou ao menos outra, não sei quem criou.

Outra? Você quer dizer a sua?

Isso.

Então existem outros como você e outros ainda acima de você nessa história de criação, de existência e tudo mais?

Creio que sim, mas não sei se há como ter certeza.

E eu? Então eu sou a base da pirâmide? O último elo da cadeia?

Não necessariamente. Você também poderia ser um Criador.

Como assim? Tipo ter um aquário de peixes?

Não, nada disso. Veja: com um aquário, você estaria dando condições dos peixes viverem em um ambiente. Mas você não criou os peixes. Você apenas os colocaria no aquário.

Então como?

Você gosta de ler, certo?

Certo.

Qual seu escritor favorito?

Você já não deveria saber isso?

Eu já sei: Pedro Mondebaján. Só estava tentando criar um clima de conversa normal.

Desculpa aí, seu Criador, mas de normal essa conversa não tem nada.

Tem razão, deve ser bem estranho para você. Voltemos ao seu escritor favorito então, que também é uma criação minha, se é isso que você está imaginando.

Ele é?

É, mas isso não vem ao caso.

Quando Mondebaján escreve suas narrativas, ele cria sua própria história. Seu próprio universo, seus personagens, as personalidades destes personagens, toda aquela existência.

Quer dizer que se eu escrever uma narrativa, eu também seria um Criador?

Exatamente. Dentro daquele pequeno universo, daquela pequena existência, você seria o Criador. E seus personagens provavelmente veriam você assim como hoje você me vê.

Então os personagens de Pedro Mondebaján são criações dele? E ele é o criador daquele universo?

Em teoria. Mas veja, Pedro Mondebaján também é minha criação. Assim como a personalidade e a história dele. Logo as histórias criadas por ele, são na verdade, minha criação. Entendeu?

Putz, pior é que entendi. Então, se eu criar alguma coisa, um romance por exemplo, eu seria o Criador daquele universo, certo?

Isso.

Mas se, como você disse, você me criou, a minha imaginação, os meus anseios e personalidade, também seriam fruto da sua criação.

Você está pegando o jeito, Peter.

Logo as minhas criações são na verdade, suas criações!

Hum, de certa forma...

Logo eu não posso ser um Criador, porque minhas criações na verdade são suas.

Raciocínio interessante...

Você parece surpreso.

Na verdade estou um pouco.

Mas como? Se, teoricamente, foi você quem me criou? Você deveria saber que eu chegaria a esse raciocínio. Ou não?

Não sei... Talvez de alguma forma, as criações tenham certo livre-arbítrio afinal de contas...

Tipo, um destino não traçado?

Mais ou menos. Como se os personagens que criamos para viver as histórias criadas por nós, tivessem alguma forma de vida própria, uma pseudo-independência.

Você quer dizer que a relação é mais ou menos essa? Tipo, você como Criador, é como se fosse um escritor e eu, supostamente sua criação, seria um personagem que vive uma história que você criou?

Exatamente. Finalmente você entendeu.

Bom, confesso que ao menos é uma analogia interessante.

Não é não.

Não é?

Não.

Por quê?

Porque não é uma analogia.

?

Não é como se um fosse um escritor e você meu personagem. É exatamente isso. Você é um personagem. Não há analogia alguma nisso. Nenhuma metáfora nem qualquer outra figura de linguagem. Você é um de meus personagens.

Você quer dizer que você é um escritor e eu sou um personagem criado para algum romance.

Um texto, na verdade. Um diálogo de poucas páginas. Não sei se vai ser uma peça, um conto ou só mais um arquivo perdido no meu HD. Mas definitivamente não um romance.

Então quer dizer que eu não existo?

Olhe a sua volta. É claro que você existe!

Mas eu sou real?

Se você pensar bem, o que é real? A cor da minha roupa, por exemplo, chega a você através dos seus olhos, que enxerga os raios de luz refletidos nela como sendo marrons. Mas na verdade, você não tem como dizer se ela é de fato marrom, tem?

Acho que não?

Claro que não. Mas você diz que é real. Veja, quando eu coloco a sua colher dentro deste copo com água, (não faça essa cara. Eu já criei uma xícara de café na sua frente. Qual o problema de criar um copo d’água?) ela parece estar partida. Os seus olhos a enxergam partida. Mas será que ela realmente está?

Ilusão de ótica?

A idéia é essa. Mas estenda o conceito a todos os sentidos. A tudo. Digamos que assim como os seus olhos podem lhe enganar e faze-lo perceber as coisas diferentes, todos os sentidos façam o mesmo. Logo você não poderia saber se uma parede realmente é lisa, se o café realmente já esfriou, se seu cheiro realmente continua exalando ou se os sons que você ouve, são realmente como você os ouve. Dessa forma, o que é real?

Não entendi.

Você é tão real quanto qualquer coisa. Afinal, ninguém sabe o que é realmente real. Depende de como você, e qualquer objeto, interage com o universo no qual está inserido.

Então nada é real.

Nada, tudo. Qual a diferença? O que importa é que você é tão real quanto qualquer coisa.

Tanto quanto qualquer coisa neste universo, nessa existência, você quer dizer.

Pode ser.

Bom, se eu sou seu personagem, você deve ter me criado para viver alguma história.

Certamente.

Que tipo de história?

Esse é o problema. Na verdade é por isso que eu queria falar com você desde o começo.

Sobre a minha história?

Na verdade o problema é que não há história. Não consegui criar nenhuma história para você. Estou sem idéias. Pode chamar de um “bloqueio”.

Como assim? Tem que ter uma história, não tem? Não pode ter um personagem sem uma história, pode?

Receio que não, Peter. Sinto muito.

O que quer dizer? Que cara é essa?

Receio que sem histórias não possam haver personagens.

Ei! O que você vai fazer? Péra aí!

Sinto muito. Não é algo que eu queira fazer, Peter. Mas toda história precisa de um ponto final. Mesmo essa.

Espera! Não!

Adeus, Peter. Sinto Muito.

FIM.

domingo, 11 de maio de 2008

Fantasmas


Só pra postar mais uma ilustra e pôr um pouco mais de cor nesse blog. Tenho ilustrado mto pouco ultimamente. Mesmo esboços estão raros e são ainda mais raros aqueles de que gosto. Esse fantasminha aí já tem mais de um ano, feito bem descompromissado. Vou deixar ele um pouco por aqui pra defender esse espaço até que pintem mais ilustras bacanas. Até devo postar alguns rabiscos não tão bacanas e alguns textos, provavelmente do Duelo (tb to meio sem tempo pra escrever qq coisa que não seja de lá ou da pós).

sábado, 10 de maio de 2008

902

Esse está até daqui a pouco em votação no Duelo de Escritores. Provavelmente quando vc ler isso o resultado já deverá ter saído. Mas passa lá pra ver o próximo tema.

O hotel ficou fechado por três dias em luto pela morte do pai do proprietário. Às quinze para às seis da manhã Pedro chegou para trabalhar. Sabia que Seu Marcos não viria, estava acompanhando o inventário do pai. Pedro foi ao lobby e viu pela primeira vez o hotel vazio e desocupado. Na parede atrás do balcão o painel com todas as chaves penduradas, do 101 ao 1209. Um espaço no meio daquela parede de chaves chamou a atenção: 902. A única chave faltando. Procurou no balcão e nas gavetas, mas a chave não estava ali. Alguém esqueceu de colocar a chave de volta. Com certeza não havia hóspedes no hotel e só uns poucos funcionários. Mas nenhum deles ficaria com a chave. Depois de uns minutos organizando as coisas foi conferir se a chave não foi esquecida no quarto. Aos poucos o hotel voltava à vida com o vai e vem dos funcionários.

O número nove do botão do elevador se acendeu sob o indicador do funcionário. Um pequeno solavanco pôs o carro em movimento. Com um sinal sonoro o elevador parou de subir e as portas se abriram para o corredor estreito com papel de parede anos 70. O quarto 902 era o primeiro à esquerda. Porta fechada, aparentemente ninguém no andar. Testou em vão a maçaneta. Ninguém da limpeza estava com a chave. Procurou no bolso e lembrou que não trouxe a chave reserva. Retomou o elevador e desceu os nove andares. O botão T se apagou quando atingiu o térreo. As portas se abriram revelando uma fraca luz da manhã que começava a clarear o lobby. Foi à saleta onde ficavam as chaves reservas. Uma dúzia estava faltando, provavelmente com o pessoal da limpeza. Inclusive a do 902. Mas lá, ele sabia, não havia ninguém limpando.

Cogitou se algum dos hóspedes teria levado a chave por engano. Era improvável, mas não custava tentar. Buscou no sistema a relação de locações da última semana. Nenhum hóspede havia ficado no 902. Procurou nas semanas anteriores. Nada. Puxou pelo sistema todo o histórico. Em branco. O quarto 902 nunca recebeu hóspede algum.

O elevador pareceu lento para galgar novamente os nove andares. A chave-mestra balançava nervosa por entre os dedos. O elevador se abriu e ele lembrou daquela cena do O Iluminado e o rio de sangue. Livro do cacete, me deixou uma noite inteira sem dormir. Foi até a porta do 902. Redrum. Porra, que isso agora vai ficar na cabeça. Girou a chave e ouviu o mecanismo destravar. Girou a maçaneta, respirou fundo Overlook my ass e abriu a porta já imaginando um baile de máscaras. No lugar do quarto um corredor estreito com o mesmo papel de parede ultrapassado e, no fim, um elevador. Sem entender muito percorreu o caminho perpeplexo, ouvindo a porta se fechar atrás de si. Não quis olhar para trás. Seguiu até o elevador.

O T acendeu novamente e o elevador desceu. Mal tirou o dedo do botão já tinha chegado ao térreo. Desceu os nove andares como se fosse um ou dois. As portas se afastaram e ele estava novamente no lobby, já bem movimentado por hóspedes e funcionários. Meio perdido foi ao balcão coçando a cabeça como tenta encontrar alguma idéia entre os cabelos. Congelou de repente. Pendurada junto às outras chaves lá estava ela. A chave do 902. Num impulso pegou a chave e saiu correndo para o elevador, sob olhares surpresos de alguns hóspedes. Apertou repetidas vezes o número 9 até a porta se abrir no andar desejado. Voou pelo corredor e quando colocou a chave na porta essa se abriu leve. Pedro se precipitou no quarto, assustando a camareira que arrumava os lençóis.

— Credo, Pedro, quer me matar do coração?

— Desculpa, Madalena — E saiu de volta ao elevador, ainda mais confuso.

De volta ao elevador cutucou o T como se quisesse castigar aquela luzinha pela sua confusão.

No balcão, não satisfeito, abriu a lista de hospedagem do 902. Vários nomes de vários hóspedes apareceram. Como em qualquer quarto. Mas uma linha em branco no sistema chamou a atenção. Nenhum registro de locação no quarto 209. Atônito, voltou ao elevador tentando parecer normal. Paulo segurava a porta para ele. A luz do 6º estava acesa. Pressionou a do 2º e a porta se fechou.

— Ficou sabendo, Pedro? O pai do Seu Marcos faleceu. Parece que ele vai fechar o hotel em luto por uns dias.

(não pareça assustado, não pareça assustado, não pareça assustado)

— Que cara de susto é essa Pedro!?

(merda)

— Nada não. É que eu não tava sabendo. Coitado do Seu Marcos.

Mal abriu a porta do elevador ele saiu sem se despedir. Caminhou até a porta de madeira, colocou a chave-mestra na porta de número 209. Abriu, entrou e logo fechou a porta atrás de si. Estava novamente no corredor anos 70. Na sua frente, a porta do 903. Deu dois passos à frente, girou nos calcanhares e admirou a gravação 902 na porta amadeirada. Caminhou devagar ao elevador, apertou sem força o botão do térreo e quando as portas se abriram novamente atravessou o lobby atirando as chaves no balcão. Saiu pela porta de vidro que dava para a rua sem olhar para trás.