sábado, 29 de março de 2008

Quando chove no vale

Essa vai soar com uma daquelas histórias de acampamento. Contada ao redor de uma fogueira sobre amores impossíveis e acontecimentos fantásticos. Pessoalmente nunca fui uma pessoa de acampamentos, tampouco um contador de histórias. Desta, que agora transcrevo, não assino a autoria. Passo adiante tal qual me foi relatada, ou o mais próximo que minha memória o permita.
Cheguei ao ancionato, como de costume, logo após o almoço. Minhas tarefas da tarde transcorreram de forma normal e me parecia mais um dia enfadonho, preenchido pelas tarefas rotineiras e de pouca importância que vinha exercendo nessas duas semanas que me estabeleci em Blumenau e me vinculei ao meu atual emprego. Porém um encontro fortuito e uma história singular garantiram um passar das horas mais prazeroso dos que eu havia tido até então. Dentre todos aqueles senhores e senhoras de idades muito avançadas, na sua maioria descendentes de alemães (visto que fora essa a colonização da cidade) conheci um senhor cuja pele parda e olhos escuros e levemente puxados destoava das feições germânicas que pareciam povoar o pátio principal. Ele usava os cabelos grisalhos, finos e lisos à altura dos ombros e tinha no pescoço um colar de contas acastanhadas. Era claro, ao ver o homem, que sua origem indígena o colocava de forma diferente naquele meio. O encontrei só (não sei dizer se por opção ou exclusão) a ver as andorinhas que voavam baixo ao fim da tarde. Me aproximei e o cumprimentei perguntando se poderia me sentar ao seu lado. Ele assentiu com um meio-sorriso e um menear de cabeça, mas suas palavras foram: “— Trouxe um guarda-chuva?” Sentei-me na cadeira vaga e creio que minha expressão tenha explicitado minha surpresa.
“— Antes que você se vá, vai chover. É bom que tenha um guarda-chuva”.
Não pude deixar de pensar nos xamãs dos filmes americanos. Índios feiticeiros com chocalhos e peles de animais sobre as cabeças, dançando em volta de uma grande fogueira. Evidente, não era esse o caso do meu interlocutor. Ele prosseguiu:
“— As andorinhas, quando voam baixo assim, trazem a chuva dos morros”. E apontou para as montanhas que cercavam a cidade, onde havia uma tênue massa branco-acinzentada, que poderia realmente indicar chuva.
Aproveitando o rumo da conversa, perguntei, mais com o intuito de continuar o diálogo, como ele havia aprendido aquilo. Ele me respondeu que era uma história passada para todos de sua tribo no tempo de seus ancestrais, e que agora era contada aos mais jovens e aos amigos, para preservação da cultura que vem se perdendo rapidamente nas últimas décadas. Embalado pela curiosidade e pela ociosidade, solicitei àquele senhor que contasse então sua história. Ele sorriu ao ver meu interesse e começou seu pequeno conto enquanto um princípio de garoa bem fina começou a cair e as últimas andorinhas voavam, creio eu, a procura de seus ninhos.
Existe em Blumenau, diz ele, um morro ao qual os colonizadores nomearam Spitzkopf, algo como “cabeça pontiaguda”. Mas antes mesmo da colonização, que se deu há pouco mais de um século e meio, o morro havia sido terra dos Laklanõs, índios nativos da região, derivados de tribos Kaigang que habitavam os vales catarinenses na época. A tribo de seus antepassados vivia no topo do morro, a cerca de novecentos metros de altura. Lá de cima, podia-se ver ao longe por sobre o vale, até enxergar o mar que se estendia distante, ao longo da costa muito além das montanhas. Lá de cima, quando o sol nascia surgindo de dentro do mar como que em chamas, sua luz ofuscava e cegava quem quer que o visse. Segundo os costumes do povo, é nessa hora, quando o sol cruzava do mundo dos deuses para o dos homens, que o portal entre os mundos ficava aberto, dando passagem ao astro. A ofuscação impedia que se visse a face dos deuses, mas com o portal aberto, as divindades podiam ouvir as preces dos homens santos e líderes, e receber seus sacrifícios em forma de cereais e frutas que eram atiradas no precipício de centenas de metros. E nessa hora, se a prece fosse profunda como o oceano e pura como o mar, ela seria atendida. Por esse costume, eles se chamavam Laklanõs — a Gente do Sol.
Seu território, no topo do morro, os mantinham longe de conflitos com as outras tribos Kaigangs que viviam às margens dos rios no leito do vale. Mas os anos se sobrepuseram e finalmente chegou a invasão alemã. Com o início dos primeiros confrontos entre indígenas e imigrantes nos vales, alguns dos Kaigangs fugiram para as encostas dos morros. Uma dessas tribos fugitivas se instalou aos pés do morro dos Laklanõs. Depois de alguma hostilidade, uma certa paz reinou entre as duas tribos, ficando o Povo do Sol em seus domínios na parte mais elevada do morro, enquanto os novos habitantes se estabeleceram mais abaixo, respeitando ao mesmo tempo o território da tribo nativa e fora do alcance do homem branco.
O tempo transcorria enquanto essa frágil paz fora estabelecida e enquanto os europeus se dispersavam apenas nos vales. Mas os índios são homens. Homens são gananciosos. Homens são invejosos. O Povo-do-pé-do-morro, como o velho índio os nomeia, quis tomar o privilégio dos Laklanõs de estar com os deuses. Eles descobriram que todas as manhãs, ao nascer do dia, os homens santos faziam suas preces e oferendas aos deuses. Enviaram então um caçador, jovem de corpo e espírito, para pouco antes da aurora subir o morro e descobrir a localização do santuário da Gente do Sol. O caçador partiu em sua breve jornada armado apenas da escuridão de uma madrugada sem nuvens e das sombras da mata. A aurora se aproximava e as sombras abrandavam seu abraço. Ao raiar dos primeiros raios, um canto melodioso e fluido atingiu os ouvidos do caçador. Tão doce e sublime era o canto que o Kaigang acreditou ter encontrado com os próprios deuses. Seu coração se encheu de júbilo com a beleza divina que a ele se mostrava. Porém, atirou-se rápido em meio a vegetação molhada de orvalho, ao perceber que voz não era de deus algum, mas da beleza majestosa de uma mortal. De olhos tão negros e brilhantes quanto os dele, e que cantava para a mata verde que acordava devagar. Bastou um segundo de cruzar de olhos para desarmar o caçador e fazê-lo deixar seu esconderijo. As pinturas nos adornos da índia denunciavam as mãos dos artesãos Laklanõs. Mas naquele momento não existiam tribos nem santuários. A própria mata, o próprio morro se resumia a quatro olhos negros que brilhavam aos pares como brincos de ébano polido. Quiseram os deuses que aqueles olhos não mais se afastassem e pelas semanas que se seguiram, ela, dos Laklanõs e ele, dos Kaigangs-do-pé-do-morro, se encontravam entre as plantas e as árvores, na fronteira do território entre as duas tribos. Dia após dia, sempre antes do alvorecer, quando ela saía a cantar para a mata. Ele ouvia suas canções e a presenteava com ornamentos coloridos. Ela retribuía com os mais belos olhos que já habitaram a face humana.
O colorido dos presentes no entanto não impressionou apenas a jovem. Alguns guerreiros Laklanõs também repararam nas peças Kaigangs que ela usava e, impulsionados pelas suspeita, seguiram a índia na escuridão da madrugada enquanto os líderes da tribo se dirigiam para o local das oferendas aguardando o nascer do sol. Inebriado pelo canto adocicado de sua amante, o jovem-do-pé-do-morro não se deu conta dos guerreiros que o cercavam até que fosse tarde demais. Até que as pontas das lanças apontassem inquisidoras ao seu redor, como um júri condenando um réu. Os contraditores enamorados foram levados à presença dos líderes, que aguardavam a chegada do sol no santuário no alto do morro. A comitiva chegou aos líderes no momento em que a enorme esfera flamejante se erguia acobreada de dentro das águas no longínquo oceano. O Kaigang vislumbrava o objetivo que o lançara em sua empreitada. O portal se abria em chamas e os deuses estavam pela primeira vez ao seu alcance. Quisera ele haver sido outra sua sorte. Não só invadira território Laklanõ, como cortejara sem permissão uma filha do sol. E agora estava frente ao deuses no santuário, uma regalia apenas concedida aos líderes do Povo do Sol. A morte bailava ululante ao redor do jovem caçador, com seus dedos magros e frios tocando os cabelos do índio, convidando-o para uma última dança. O inevitável e supremo veredicto fora dado, e o jovem Kaigang fora lançado ao abraço da morte que aguardava de braços abertos como uma amante aguarda o consorte. A vida do jovem índio fora arremessada, precipício abaixo como sacrifício aos deuses que aguardavam a oferenda além do portal cuja luz intensa cegou e aqueceu toda a platéia daquele admirável espetáculo. A jovem índia, ainda que cega pelo brilho dos deuses, chorou e implorou aos Imortais pela vida do amado, que bailava com a morte num palco etéreo rumo ao chão. As suas lágrimas eram salgadas feito o mar e sua dor profunda como o oceano. E assim seu choro e sua prece cruzaram o portal e tocaram o coração dos deuses, que se apiedaram da tristeza e desespero da jovem. Então o brilho dos raios solares atingiram o ápice de seu fulgor e em meio às ofuscantes chamas brancas que cruzavam o ar, o Kaigang se despediu da morte e adiou aquela valsa. Seu corpo já não era o seu, plumas lhe cobriram os braços, que braços já não eram. Tão logo a claridade abrandou o céu foi cortado por uma andorinha veloz, que outrora vivera entra os homens, na tribo dos Kaigang do pé do morro hoje chamado Spitzkopf. E o sol deixou as águas e se lançou ao céu junto com aquela andorinha, acordando o morro e a mata para o dia que despertava ensolarado.
A índia, com os olhos cegos pela presença divina, não viu a resposta dos deuses à sua prece. Desamparada e ignorando a solitária andorinha que voava sobre o morro, partiu a correr pela a mata que um dia acolhera as suas juras de amor clandestinas. E correu até que deixou o dia para trás, e sob as estrelas se sentou no meio da mata, no mesmo lugar onde costumava se encontrar com aquele jovem que não mais iria andar entre os homens. E lá ela chorou. E chorou. E chorou. E o choro não cessava, e de suas lágrimas brotou um córrego, que escorreu triste morro abaixo. Um córrego salgado como as águas do mar e frio como o fundo melancólico do oceano. Mas assim como o choro, sua dor não cessava. Decidiu a índia, porém, que ela mesma a cessaria. E a morte se animou novamente. Vestiu-se de preto-baile e foi para o salão, pois a banda já tocava e lhe convidavam a bailar. A índia se atirou de costas no salgado regato e, vendo as estrelas, se pôs a cantar sua última canção enquanto a morte, com passos hábeis de bailarino, a embalava em seu balé noturno. E a canção ecoava na noite. A mesma canção que um dia entoou na mata e que embalou dois pares de olhos negros, amantes que não mais se veriam. E tão doce era sua voz que as águas do córrego, antes salgadas das lágrimas, se adocicaram com o soar daquela ária. E o regato desceu o morro até a tribo dos Kaigangs enquanto aquela canção sondava os céus escuros até seduzir uma andorinha, que voou esperançosa para reencontrar a alma enamorada que lhe salvara a vida. Quando chegou, porém, nada encontrou de sua amada. Apenas um regato que jamais vira no morro e que corria encosta abaixo. Voou baixinho seguindo o percurso d’água. Mas quando chegou aos pés do morro não havia mais canto. E no lugar dos brilhantes olhos negros que ansiava encontrar, um olhar vítreo e sem vida boiava num corpo afogado nas margens do arroio que formara um lago de tristeza na base do morro. E a andorinha voou baixo e chorou como jamais chorara. E outras andorinhas voaram baixo na noite e se compadeceram do trágico fim daquele sarau. E os homens que viram as andorinhas, pranteando sobre o lago de lágrimas também choraram, tão triste a sina que criara tal regato. E a tristeza se espalhou e a mata que já abrigara os amantes se juntou ao coro choroso. O próprio morro, que até então não vira tamanha tristeza, se apesarou. Tal pesar se condensou em comoção e se precipitou como lágrimas por todo o morro. E logo todo o vale chorava o triste epílogo daquele amor. E desde então, quando as andorinhas voam baixo, o vale se lembra de tal malfada história e chora junto com as aves, que um dia voaram baixo para o pé do morro, para se lamuriar da mais triste história que nesses morros aconteceu.

terça-feira, 25 de março de 2008

Chicano


Só pra postar mais uma ilustração. Esse é um rough pra um mexicano. Quem sabe um dia dou um trato melhor nele e colorizo o infeliz. Por enquanto fica o sombrero à grafite.

sexta-feira, 21 de março de 2008

MASCOTES DE MARCAS – PROSOPOPÉIA DE VALORES

Escrevi este artigo já há algum tempo e ele foi originalmente publicado no site da Universidade Tuiuti do Paraná - UTP e no site Tudocom.


Os estudos da linguagem apontam a Prosopopéia como a figura pela qual se dá vida, voz e ação a objetos inanimados. Personificação. O radical Prosop, do grego, significa “rosto, face”.
Esse é justamente o principal objetivo das mascotes de marca. Personificar, dar um rosto à imagem do anunciante e, se possível, ao seu principal benefício/característica. Tomemos os coelhos mascotes da marcas de pilhas Energizer e Duracell. Não só transmitem os valores da marca, mas representam o principal benefício do produto – pilhas de longa duração.
Não data de hoje a criação de mascotes para a publicidade. No período pós-guerra, publicitários e ilustradores já focavam seus esforços na criação de bonecas de cerâmica que tinham como objetivo identificar-se com uma marca determinada. Foi a forma de dinamizarem as marcas, de aproxima-las do consumidor num período marcado pela explosão de consumo que prenunciaria nossos dias atuais. Esse período foi marcado pelo surgimento de importantes mascotes, como o tigre Tony, dos cereais matinais Kellogg’s no início dos anos 50.
Mascotes são testemunhos. A personagem torna-se porta-voz da marca. A mensagem anunciada passa a não ser dita mais pela marca, mas por uma terceira pessoa (a personagem), agregando a si mais credibilidade, fator decisivo na criação de um estado psicológico menos defensivo por parte do público.
Fundamental na criação da mascote é a associação entre ela e a marca que representa. A associação deve ser imediata. Ronald McDonald, se transformou no embaixador da McDonald’s junto das crianças. Além de ser reconhecido imediatamente, também o é sua ligação com a rede de fast-food. Ao contrário, a imagem do coelho das pilhas de longa duração está dividida entre as marcas Energizer e Duracell. Uma disputa que obrigou as empresas a uma separação de mercados: nos Estados Unidos o coelho é usado pela Energizer, que foi a primeira a utilizar sua imagem no país (e diga-se de passagem, segundo o site da empresa foi eleito um dos “Top 5 Advertising Icons of the 20th Century”). No mercado Europeu, ocorreu o inverso, sendo a imagem da mascote atribuída a Duracell. Em tempo: o coelho da Energizer foi introduzido ao mercado em 1989, enquanto o da Duracell já estrelava comercias europeus desde 1974.
O uso de mascotes, porém, implica na necessidade de abordagens uniformes, consistentes e de interação contínua com o público, adotando a personagem como ícone – ou símbolo – tão precioso quanto o próprio logo da empresa. Diversos fatores ainda influenciam a criação e uso de mascotes, inclusive uma avaliação precisa se esta é, ou não, uma estratégia adequada; uma vez que uma mascote demanda grandes investimentos, cuidados e regularidade de exibição, sob pena de perder notoriedade, ligação com a marca ou sua própria personalidade. A aplicação de uma mascote deve, portanto, avaliar não só o budget, mas se esta tática se enquadra nas estratégias de comunicação traçadas.
O uso da prosopopéia está embasado não tanto na forma, que dá vida a animais ou objetos inanimados, mas no conteúdo destas personagens. Que digam Lewis Carroll, J.M. Barrie, Walt Disney e tantos outros – isso além da maioria de nossas fábulas infantis. Para as mascotes de marcas, assim como para qualquer personagem pública, um rostinho bonito apenas, já não basta.


quinta-feira, 13 de março de 2008

Morre Maira Maíra

Outra do Duelo. O tema era morte. É mais uma experimentação, tentando usar só palavras com a primeira letra M, de morte.


Maira Maíra morreu. Morte matada: matou-se. Mastigou mato maligno, minguou muda. Motivo? Mágoas mil, mas mágoa maior marcou-lhe Milton. Marido malandro, mentiroso. Mimava Márcia, morena matreira. Magra, madeixas marrons, mamas maravilhosas, maiô minúsculo. Mulher maravilha, mesmo. Maira Maíra, muda murchava. Mantinha mente mansa, mas mordia-se maltratada, moral minada, magoada. Melhor morrer, meditava.

Media métodos. Mutilação metia-lhe medo. Machucava muito. Mirava morte mais melancólica, menos moderna. Mítica, misteriosa. Mais marcante. Merecia melhor mortalha. Maquiou-se, meteu meias macias, malha marfim, melhores miçangas. Marchou.

Mediu meia milha marcando mata. Mãos miúdas mexiam moitas. Manipulavam morte. Mato mortal Maira Maíra mordeu. Mastigou mais. Movia molares mastigando morte. Menta maligna matava Maira. Maira morria.

Morreu, Maira Maíra.

domingo, 9 de março de 2008

Dormentes

Postado tb lá no Duelo de Escritores, sob o tema "Viagem de Trem". Dá um pulo lá e contribui com a votação, no texto que vc achar mais bacana. Por enquanto só om copiar colar do Duelo pq o PC tá na UTI e maior parte do conteúdo tá lá dentro. Lá vai o texto:

O sol mal subiu e você já estava na plataforma. Estação cheia. Um desfile de malas, mochilas e sacolas. Lá de trás uma fumaça preta anunciava a chegada. O povo se aproximou da beirada da plataforma. E lá no meio você. Com apenas uma maletinha de mão, praticamente vazia, embarcando numa viagem que sabe-se lá quanto tempo ia levar. Mas, enfim, você entrou. É bem verdade, meio assustado. Passar pelos corredores estreitos com um trem em movimento se balançando de um lado para o outro talvez não tenha sido o melhor dos começos. Mas logo você encontrou uma cabine com espaço. Lá dentro apenas um casal de uns trinta e poucos anos. Depois de instalado, você se apresentou. Ele era maestro, ela professora. Estavam em lua-de-mel. Talvez por isso tivessem bem mais bagagens que você. Eram um casal divertidos e fizeram os primeiros quilômetros da viagem passarem rápido. O único incômodo era a sensação de estar atrapalhando. Os dois ali, em lua-de-mel, e você atrapalhando ali na cabine. Mas eles pareciam não se importar. Pela janela você apreciava a paisagem exuberante na tarde ensolarada enquanto conversava e sentia o balanço dos vagões sobre os trilhos. Com o tempo, porém, a companhia do casal começou a ficar meio cansativa. Provavelmente pela proximidade constante. Com uma desculpa qualquer você pegou a mala e saiu a procura de outra cabine, prometendo voltar para retomar a conversa.

Passando pelas cabines você vê pela porta de vidro uma moça sozinha, olhando pela janela. O cabelo castanho amarrado para cima revelava a nuca e o pescoço longo e delicado. A bagagem parecia de apenas uma pessoa. Você estava com sorte. Com duas batidinhas no vidro, para não assustar a moça, você abre a porta e pergunta com umsorriso — que você acreditava sedutor e ela achou meio bobo — se o assento estava vago. Ela respondeu que sim com outro sorriso. Ela era uma estudante de música de pouco menos de trinta anos. Interessante, bonita. Vocês conversaram e logo se deram bem. Lá fora o sol continuava a iluminar a paisagem e dentro da cabine o clima estava ainda melhor. Você anda voltou algumas vezes a sua antiga cabine para visitar os recém-casados, mas quando o trem parou numa estação no meio do caminho e você viu, pela janela, os dois na plataforma de desembarque, uma tristeza repentina lhe apertou o peito. Eles acenaram cercados pela bagagem volumosa enquanto o trem se afastava seguindo viagem. Ao menos lhe restava ainda a companhia da sua nova colega de cabine. Masfaltavam ainda algumas estações para você descer quando ela disse que havia chegado a sua parada. Da plataforma da estação ela mandou-lhe um beijo e foi ficando para trás enquanto o vagão retomava a viagem. Na cabine apenas você e a sua mala, que afundava pesada no estofado do banco a sua frente. Olhando a paisagem, com a testa contra o vidro, você adormeceu ao embalo do trem. A paisagem continuava lá. Os túneis surgiram e se foram, escureceu e tornou a clarear. E a paisagem continuava lá. Mas você não percebeu porque havia adormecido. Só acordou quando um funcionário, de uniforme negro impecável, veio lhe chamar. Chegara a sua estação.

Você desceu meio desajeitado, com todas as suas malas, a bagagem caindo aqui e ali. Algumas provavelmente tinham até ficado para trás. Vendo a sua cara de atordoado na plataforma, cercado pela própria bagagem, o funcionário não se conteve e riu. “Pobre, homem. Não deve nem saber onde está”. Com o orgulho ferido e achando-se mais esperto você ainda respondeu “Ao menos posso ir aonde quiser, que não tenho trilho algum que seguir”. E só com a cabeçapara fora do trem o funcionário concluiu: “Meu senhor, esse trem não corre sobre trilhos”.Só então você percebeu a falta dos dormentes, do metal, da linha reta e previsível dos trilhos. E o trem saiu serpenteando em todas as direções, como se cada passageiro pudesse escolher o caminho a seguir. E você ficou na plataforma, cercado por toda a sua bagagem e coberto pela fumaça preta que saía da chaminé enquanto o trem ia se afastando.