quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A terra vazia e vaga de Werner Neuert



"Não adianta nada ficar escrevendo
se não desvendar os fragmentos podres
ou a luz mais branca."

— Werner Neuert




Encontrei um exemplar de A Terra estava vazia e vaga, de Werner Neuert, em um sebo no centro da cidade. Já havia ouvido o nome do autor em um comentário aqui, outro ali, por um e outro amigo que também insistem em ler o que pelo Vale se escreve. Mas não conhecia nada a respeito do autor. Peguei o volume de capa negra sem ao menos saber que se tratava de um livro de contos. A orelha me dizia que Neuert era um autor do Vale — amigos haviam dito, de Indaial.

Na contracapa, branco sobre o preto, estava o que julguei ser um breve excerto de um conto do livro. Traçava a curiosa história de um protagonista sem nome, cidadão aparentemente exemplar, que um dia vai ao parque e encontra São Francisco de Assis. Conversa com o santo e, por isso mesmo, termina posto, pela família, em um hospital psiquiátrico. O santo também acaba lá.

O trecho me fez subir as orelhas — se uma pessoa pudesse fazê-lo, como os animais, eu teria certamente feito. Pouco mais tarde vim a descobrir: o breve trecho não era trecho. Era um conto completo. E não dos menores do livro. Em A Terra estava... Neuert é assim. Nunca tarda ao leitor encontrar o ponto final. Mas em muitos dos contos, não se engane o leitor, o texto continua muito além do último ponto. Há sempre algo que segue narrando, nesses textos de Neuert.

A obra traz retratos de tipos cotidianos. O cidadão anônimo cuja história muitas vezes se resume à sua miudeza. Ao seu viver e morrer e amar insignificantes. No conto de número 37 — que a maior parte dos contos são assim, anônimos, números apenas, talvez como quem os lê — lemos, na íntegra:

"Quando soube que teria pouco tempo de vida, foi correndo comprar flores para Luíza, há muito tempo desejava dar flores a ela".

Assim Neuert, com seus mini e microcontos volta e meia nos põe em xeque, nos volta a nós mesmos, refletidos em pálidos e breves momentos entre os tantos afazeres de nossas vidas irrelevantes. Como no 39º conto, em que conhecemos o trabalhador que ao abrir a marmita todos os dias ao meio-dia lembrava da amante e perguntava a si mesmo: "— Será que ela também faria comida pra eu trazer?" É o tipo simples, ou apenas indigno de nota, que parece mais atrair o autor. O esquisito da praça ou estação de qualquer cidade, como seu "Chapéu-de-Flores" (conto 87) que passa o dia a distribuir flores a desconhecidos, ou o homem que realiza o sonho ao comprar uma kombi que passa mais tempo na oficina do que circulando, o outro traído mas que ama incondicionalmente a esposa, o transeunte, o qualquer um, que vive, que goza, que se irrita. Que passa.

Neuert divide sua obra em várias partes temáticas, mas o livro pode ser dividido em dois grandes momentos. O primeiro comporta os 129 micro e minicontos sem título. Destes, destaca-se o humor mordaz de 91, em uma única frase: "— Opção sexual o cassete, se eu pudesse optar, seria hetero". A mesma estrutura de piada, simples como um conto de boteco, se repete em 31 e, mais rebuscada, no humor mais ácido de 25, onde um João, preso na ilha de Patmos, resolve, apenas para espantar o tédio, escrever "uns negócio aí", ao que é aconselhado: "—Não vá inventar polêmica". Esse diálogo da ironia ou do sarcasmo com o sacro é também recorrente, em A Terra estava... Retorna, por exemplo, em 76, com o espectador da missa de olhos fixos no Cristo crucificado, para mais tarde, ao retornar ao carro, comentar com a esposa "—Visse que o Jesus tá com o nariz torto?".

Mais humanos e viscerais, talvez sejam o conto de número 40, tangenciando a pedofilia dentro de casa, ou o conto 55 com a insegurança e falsa moral falocrática. Dentre esses breves contos, é preciso ainda destacar os de número 65 e 66, sobre livros, letras e diplomas; o encorpado 108 onde o filho orgulhoso apresenta a mãe sua tese de doutorado para receber em resposta "— Para que tantas palavras, meu filho?" e o mais explicitamente metaliterário 83, um dos mais poéticos e destaque deste trecho do livro, que reproduzo na íntegra:

"Abre essas palavras. Arranca o que tem lá dentro. Não adianta nada ficar escrevendo se não desvendar os fragmentos podres ou a luz mais branca. Aperta, esmaga com raiva até tirar toda a essência. Depois bebe com serenidade, como um santo. Bebe até cair ou despertar. Mas primeiro: abre essas palavras."

A Terra estava vazia e vaga conta ainda com um segundo momento, onde apresenta contos pouco mais longos, alguns ultrapassando a primeira página. Os contos deixam de ser anônimos, ganham título, ganham nome. Muitos, de pessoas. Aqui o autor parece lançar mão de um texto melhor estruturado, com grande força de imagens, muitas na fonte do surreal ou do fantástico. Neuert troca o impacto pelo envolvimento. O golpe direto e seco pelo enlevo da narrativa. Alguns dos temas se repetem, como em Kombi e Kombi II, Negão, Pedro, José, Luci ou Bach e Putas. Mas o destaque é força com que trabalha o surreal. Ótimos são Coceira com sua protagonista que na falta de um amor, ama-se a si própria até consumir-se; Bom dia borboletas, que traz o dia em que as pessoas começaram a expelir borboletas ao falar; o intrigante Azul onde um homem passa a ver tudo, de repente, em tons de azul. Tudo exceto a morte, que enxerga em cores normais, no cadáver na rua, no pôr-do-sol, na barata morta. O belíssimo e angustiante Seis bilhões, com toda sua falta de espaço, de tempo, de vida, repleto de excessos de tudo, exceto talvez, de paz e de si mesmo. Todos estes, de uma beleza imagética tocante, onde o autor lança mão de mais recursos poéticos e mostra que pode trafegar igualmente entre lagartas e borboletas. Como aquela que, colorida na capa negra criada por Denise Patrício para o volume, se esconde, ainda lagarta, dentro da crisálida. Ou como aquelas, na contracapa do livro, já lepidópteros alados metamorfoseados em cor sobre o fundo negro. A Terra de Neuert é vazia, vaga, mas cheia de borboletas.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Declamações



Declamações


nos teus ouvidos
....falo em romance
nos teus lábios
....falo em riste

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Retorno em vermelho e azul

Azul e vermelho. Azul e vermelho. Azul e vermelho. As cores se intercalavam na paisagem vista através do vidro fechado. O barulho, já nem ouvia mais. Lembrava a última vez que vira a paisagem naquelas cores, através daquele vidro. Já não sentia ódio — há algum tempo não sentia — estava como que adormecido. Havia algo no peito, no entanto, que pesava. Não identificou em princípio. Há muito não o sentia. Há anos. E lembrou da última vez. Também estava lá, apertando o peito, apesar de tudo. E lembrou-se. E sentiu, como não poderia deixar de ser, inevitável e fatídica, saudade.

O carro alugado em um quase desmanche do subúrbio não era o mais discreto. Não importava muito. Era um carro velho, barato e desconhecido. Provavelmente nem se importariam muito com alguma avaria. Até com a falta, vai saber. Olhou no retrovisor sem reflexo. Só um borrão manchado no espelho velho. Um espectro que dava apenas para imaginar onde ficariam os olhos bem mais enrugados do que há anos, uma barba não muito bem feita. Ao menos a roupa não estava tão mal. Era, na verdade, a melhor roupa que usava desde muito tempo. Desde vários anos. A sensação de usar uma roupa que não fosse igual a de todos os outros lhe causava um certo prazer desfrutado em silêncio, numa íntima satisfação de um agradável segredo. Olhou o relógio que já lhe incomodava o pulso — tanto tempo sem usá-lo! — conferiu as horas sem se importar muito, não tinha muito mais que o fazer. Ficari ali pelo tempo que fosse necessário, como havia feito nos últimos dias. A casinha azulada do lado de fora do carro era simples, mas bonitinha. Ou ela teria adquirido algum bom gosto, afinal, ou o marido que escolhera. A segunda opção, provavelmente. Ela deveria ter simplesmente ido morar com o coitado. Demorou algum tempo, mas eventualmente teriam de terminar. O rapaz havia entrado há já quase uma hora. Finalmente, a porta da frente se abriu e fechou-se em seguida, rapidamente, tempo apenas suficiente para deixar sair apressado um rapaz — surpreendentemente novo, por certo apenas alguns anos mais velho que ela — que logo se pôs em marcha apressada e distraída rua abaixo, ainda acertando a camisa por dentro do cós da calça. Saiu feliz, leve, como das outras vezes. Irritantemente leve.

O motor fez o capô trepidar, assustando apenas uns poucos pássaros na árvore ao lado que projetava uma sombra vasta na rua vazia de subúrbio. Colocou o carro em marcha e acelerou suavemente, medindo a distância. O carro foi ganhando velocidade devagar, sem despertar muito a atenção. Chegando aos setenta quilômetros por hora estabilizou o ponteiro tremulante do velocímetro. O pneu deu um solavanco quando acertou o meio fio, arremessando o carro alguns centímetros para o alto. O som assustou o rapaz, mas ele nem teve tempo de se virar. Antes que pudesse terminar o movimento, um farol arredondado lhe entrava pelas costelas enquanto um para-choque de metal lhe separava o joelho. Rolou por sobre o capô até atingir a coluna do para-brisas, no instante em que o carro fazia a curva para retornar à rua, deixando a calçada. Foi arremessado por sobre a cerca baixa de uma das casas próximas, indo aterrissar atrás das plantas do quintal. Só seria descoberto, provavelmente no outro dia, coberto de sereno e sujo de grama, um pé pra cá outro pra lá, numa posição de boneco de pano estropiado. O carro seguiu a rua e dobrou à direita na primeira quadra. Parou no outro lado em frente a uma entrada de garagem abandonada, sem um farol e com o para-brisas trincado. A chave, na ignição; a porta apenas encostada.

Azul e vermelho. Azul e vermelho. Azul e vermelho. A praça, trocando de cor, fez com que lembrasse do pobre do marido. Provavelmente pela estátua careca e de óculos entre as hortências. Careca tingida pela luz vermelha.

Nem lembrava muito bem como, mas ela estava de roupão — ou era um hobby não tão fino — azul. Os cabelos estavam molhados e cheirosos. Já não cheiravam ao rapaz, àquelas horas atirado num quintal vizinho. Nem ao marido, certamente. Nem a ele. A infeliz e irremediável certeza: há muito tempo não cheiravam a ele. Ela tinha a boca vermelha. Não era batom; não, não era. Era um corte no lábio inferior. Não no nariz, dessa vez, mas no carnudo, vermelho, lábio inferior, que ela deixava meio pendente da boca entreaberta de dentes pequenos. Ah, como ele lembrava daquele sorriso de dentes pequenos e boca vermelha! O sangue o fez lembrar da última vez em que beijou aqueles lábios. Ainda tinham sangue quando treparam no chão da cozinha da casa que já não era dele, naquela vida que já não era dele. Ela não sorria, agora, mas tinha nos olhos aquela mesma doçura quente, encolhida próxima à cabeceira da cama. O roupão deixava escapar uma perna bonita e bem depilada. Devia ter se preparado à espera do rapaz. Subiu os olhos pelas pernas imaginando o que mais aquele roupão escondia que ela havia preparado para o rapaz jogado num quintal próximo, casas abaixo. Semiaberta, a vestimenta revelava o arredondar dos seios já mais crescidos. O pescoço já não mantinha toda a vida da juventude, nem o rosto, ainda bonito, mas já aparentando uma mulher. Não era mais uma adolescente. Mas quando ela esboçou um pequeno sorriso, foi como se a mesma menina ressurgisse daquele ar jovial, fresco, pronto para ser colhido doce, úmido e suculento, sumo que escorria na boca e derretia por dentro, com todo o sabor de uma safra de apenas catorze anos. Ah, como ele se lembrava! Aproximava-se da cama devagar, a chave de rodas que trouxera do carro já pendia na mão ao lado do corpo, sem tensão, baixa, praticamente inerte. Perdia aos poucos a força. A determinação. Estava inebriado pelas lembranças e pelo reencontro com aquele corpo jovem e fresco que ele ainda via naquela, jovem, mas já, mulher. Despertou do transe apenas quando a porta se escancarou brusca. O homem careca de camisa polo e óculos abriu a porta. Chegou já raivoso. Com certa surpresa, viu a mulher seminua, coberta apenas pelo roupão, encolhida contra a cabeceira da cama enquanto o homem com a chave de rodas, de pé, ia em sua direção. Não sentia ódio pelo marido. Pena, no máximo. Era um pobre coitado, tinha certeza. Como ele havia sido. Mas não pôde fazer nada. O homem investiu contra ele. Atirou-o contra a parede, nem ligou para a chave de rodas que trouxera. Esta ensandecido. Qualquer um que passasse na rua veria pela janela a cena. Não teve muita opção. Se não fizesse nada o marido o atiraria janela a fora. Ergueu e depois baixou veloz a chave de rodas. Depois de dois golpes o homem estava caído aos seus pés, a careca vertendo sangue, tingindo de vermelho os poucos cabelos que lhe rodeavam. Não era tão velho, deveria ter sua idade, mais ou menos. A careca prematura sujando o chão de vermelho, dando tempo apenas de pronunciar, baixo, contra o chão um nome ou apelido de apenas duas sílabas idênticas. Não pôde suportar ouvir aquele nome saindo dos lábios de outro homem. Baixou mais uma vez a chave de rodas que ficou de pé, presa na careca vermelha. Olhou para a moça na cama sem saber o que dizer. Nos olhos dela, também não conseguia ler nada além de dúvida e curiosidade. E um corpo ofegante sob o roupão azul.

Era manhã, a rua movimentada apenas pelos carros saindo das garagens levando os donos aos trabalhos no centro. Ele já estava parado lá há algum tempo, como das outras vezes. O carro velho sob a árvore, não longe da casa. Não foi tão difícil assim achar a casa. Bastou uma busca na internet para descobrir, em um site de relacionamentos, Sara, a amiga que sempre visitava e ia tomar banho de piscina enquanto ele observava, ouvindo o gelo estalar ao uísque, as adolescentes se divertirem. Na lista de amigos da moça, lá estava ela. O sobrenome era outro, mas era ela, com certeza. Ao lado da foto, alguns dados. E o nome da loja onde trabalhava. Tinha até currículo. Ela não havia estudado muito, mas até que não se deu tão mal. Tinha casado, estava no perfil. Por isso o sobrenome estranho. No mínimo com alguém mais velho, podia apostar. Por volta da sua idade, provavelmente. Ou da idade que tinha quando se despediu dela pela última vez. De todo modo, não era nele que estava interessado. Precisava vê-la de novo. Aproximar-se dela de novo. Acertar as contas com aquele demônio curvilíneo que o mandou ao inferno. Foi à loja e ficou observando a fachada de longe. Viu quando ela saiu. Um pouco mais velha do que lembrava. Bom. Sabia que não poderia com ela se ainda tivesse todo o viço da juventude, esfregando-lhe na cara aquela doçura que o deixava desarmado e de pernas bambas. As roupas, no entanto, eram coloridas e conferiam-lhe algo daquele ar infantil-sensual maldito. Afastou os pensamentos. Pensou em correr até ela naquele mesmo instante e apertar-lhe o pescoço já não tão delicado. Ver-lhe os olhinhos arregalarem-se e aquele sorriso macabro que não lhe saía da memória desaparecer. Mas não poderia. Não suportaria retornar àquele lugar. Nem mesmo por causa dela. Estava agora se acostumando a usar roupas comuns. A ver-se vestido diferente das outras pessoas ao redor. Estava se acostumando a ver o lado externo dos muros, os sons da cidade. Não retornaria jamais. Nem por ela. Seguiu-a, então, a distância, até que ela entrou na casinha azul. Sorriu para si mesmo. Bastava entrar ali e enterrar-lhe a mão no nariz delicado e perfeito, ouvir o rebentar da boca deliciosa e o suspiro cortado pelo estalar de uma traqueia partida. Mas havia o sobrenome. Ele estaria ali, ou para chegar. Teria de esperar. Não hoje. E saiu com o número e a fachada da casa gravados na memória, sabendo que retornaria ali algumas vezes ainda, antes de tomar qualquer porvidência. Era um prato que se comia frio, diziam.

Vermelho e azul. Vermelho e azul. A paisagem ia mudando do lado de fora do carro. Os dois homens no banco da frente em silêncio. Haviam insultado-o o suficiente. Viajavam agora calados. Anoitecia enquanto o carro se destinava para a área mais afastada da cidade, onde se escondia àqueles dos quais se queriam esquecer. Azul e vermelha a estrada passava. Como ele e ela.

Ela, sobre a cama, de azul-roupão sobre o corpo mal coberto. Ele, salpicado de vermelho. Ao chão um homem com uma chave de rodas na cabeça. Nos olhos dela, curiosidade macabra e excitada. Nos dele, dúvida e uma mistura de tesão, ódio, saudade e — sim, por que não? — amor. O corpo dele sobrepujando-se devagar ao dela. Ela, se afastando inutilmente contra a cabeceira da cama, mas com os olhos sempre nos dele. Ele agarrou a gola do roupão e a puxou para si. Ela ficou ali, meio pendurada pelo colarinho. Assustada, ofegante, olhos brilhando, um seio arquejante se denunciando pela abertura do roupão. Maior, mais arredondado, mas ainda firme, tenaz, o mamilo eriçado em rosa. Subindo e descendo, subindo e descendo com a respiração acelerada de hálito doce. Agarrou-lhe com a outra mão o pescoço. Ainda lhe cabia fácil na mão. Pressionou até que ela vertesse aquele hálito que há anos não sentia. Sentiu-o próximo ao rosto. O cheiro atingiu o cérebro como um dardo. Chegou a cambalear e apertou a mão contra o pescoço da moça como para se segurar e não cair. Ela emitiu um leve gemido que o trouxe de volta. E trouxe de volta as lembranças dos gemidos de outrora. Lembrou-se das tardes de antanho quando não estavam a mãe nem a empregada. Puxou-a, pelo pescoço mesmo, para mais perto de si. Hipnotizado. Azul e vermelho. Ele vermelho. Ela azul. A parede azul e vermelha, azul e vermelha, azul e vermelha pela janela aberta ao fim da tarde. Despertou quando percebeu que ela também admirava as cores projetadas nas paredes. Largou-lhe o pescoço, espiou pela janela. As luzes no teto do carro lá embaixo brilhavam azuis e vermelhas. Dois homens saindo do carro, armas nas mãos. Falando com alguém fora da sua visão e se dirigindo à casa. Lembrou dos uniformes. E dos uniformes. E dos dias e meses e anos. Lembrou da última vez. Do gosto do beijo e do sangue. Do olhar quente, do sorriso macabro. E dessa vez nem havia trepado. Há quanto tempo não trepava? Não voltaria. Não assim. Não sem ao menos dar o troco. Arrancou o abajur da tomada e, com um puxão arrancou-lhe o fio. Enrolou uma ponta em cada mão, deixando-o estendido firme. Levantou os olhos e viu os delas, já mais assustados. Foi rápido em sua direção, deu uma volta com o fio no seu pescoço e puxou-lhe para cima, tirando-a praticamente toda da cama, só as pernas penduradas. O roupão já quase todo aberto, os seios roçando-lhe o peito, os lábios em frente aos seus. Seu corpo de homem envelhecido se dividindo entre ódio e prazer. Uma perna depilada levantou-se e tocou-lhe, leve e sem querer, a virilha. A vontade fraquejou-lhe. Afrouxou o fio. Deixou a moça retornar à cama. Voltou à janela, olhou para baixo. Os dois homens uniformizados já junto à porta, forçando a entrada. Olhou para ela, olhou para os homens, para o vermelho e azul brilhando nas paredes. Suspirou abatido. Não podia mais fazer aquilo. Mas não podia, também, voltar. Não suportaria. Amarrou o cordão no parapeito da janela, sentou na beirada e enrolou o fio ao redor do pescoço. Não voltaria por nada. Nem por ela. Ela o olhava com um sorriso macabro. Aquele sorriso macabro de olhos quentes e doces. Passou os dedos de leve no pescoço meio machucado, desceu o dedo seguindo o decote do roupão já aberto, com um ar provocante. Ela levantou o dedo, apontou para corda no pescoço e fez sinal que não. Apontou para o chão para que ele descesse. Ele o fez, tirou o cordão do redor do pescoço, segurando-o nas mãos sem saber o que fazer. Quando a porta se abriu sob o peso da botina, a moça encolheu-se contra a cabeceira da cama, deixando escapar um assustado "Jorge, não!" dos lábios maliciosos. Os dois homens apontaram as armas. Acabaria, afinal, retornando para lá.

Azul e vermelho, azul e vermelho, azul e vermelho. A paisagem já noturna se iluminava colorida enquanto ele, no banco traseiro, as mãos às costas, relembrava. Saindo pela porta do quarto, a moça fechando o roupão, sendo auxiliada pelo outro policial de cacetete rijo pendurado à cintura. Por baixo do roupão imaginava o corpo arrepiado, os bicos dos seios em pé, as lembranças de anos atrás antes que tudo aquilo tivesse acontecido pela primeira vez. Nos olhos, aquele mesmo olhar excitante. Através do vidro do carro em movimento, olhava a paisagem com um só sentimento. Saudade.