sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Maria Fumaça




Maria Fumaça


maria fumaça
olho de brasa
boca de tição

maria fumaça
da cor do carvão

maria fumaça
boca de fornalha
corpo de carvão

maria fumaça
maria trovão

troveja maria
troveja

maria fumaça
(maria)
olho de brasa
(maria)
canto de névoa
(maria)
maria fumaça
(mania)

maria fumaça
cheia de graça
louca emotiva

locomotiva
maria pirraça

apita maria
apita

aperta maria
aperta

cospe fumaça
maria fumaça
anel de fumaça
maria da graça
maria fumaça
ameaça, desgraça
coração destroça
fumaça e troça
maria fumaça

queima quem brinca
com fogo, maria

anel de madeira
(anel de fumaça)
em cada orelha
(acima da telha)

maria fumaça
maria

(fumaça!)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Amor Pornô

Não fazia nem uma hora aquelas portas velhas e largas estavam expelindo os tipos habituais que, pouco antes, lhe habitavam as entranhas. Saíam aos borbotões, se distanciando rápido, se espargindo pelos arredores, ejaculados porta a fora. Alguns mais elétricos, outros mais leves, todos distantes de si e do mundo. Pequenas gotas brancas de ilusão. Velhos solitários com nada além de suspensórios e lembranças como companhia, tipos esquisitões engordurados, gordos demais, magros demais, sozinhos demais. Grupos de garotos espinhentos no cio, uivando de excitação verde não colhida. Umas poucas putas, travestis ou oportunistas esperançosos. Todos com a solidão viscosa a escorrer-lhes pelos rostos, pelos peitos a dentro, enquanto a palavra “privê” piscava em curto no letreiro iluminado do Cine L’amour.

O carro bordô subia a ladeira, agora menos movimentada, passando pelas paredes pichadas com sua carenagem de pintura queimada de sol. O interior, que havia sido luxuoso há uns dez anos, abrigava o homem de blazer apertado, perfume de pós-barba e careca mal coberta pelos cabelos molhados. O veículo parou em frente ao cinema e o potente motor silenciou. O homem conferiu as costeletas bem aparadas no retrovisor, saiu do carro, destrancou a porta da frente do velho prédio, e entrou no Cine L’amour.

Lá dentro, o funcionário ainda uniformizado arranjava os produtos na bomboniére, separando as balas, as camisinhas, os chocolates e refrigerantes. Deixava o hall pronto para a próxima sessão, que só viria algumas horas mais tarde. A mocinha recém contratada já terminara de limpar a sala de cinema — mais rápido que a funcionária anterior, faça-se justiça — e já tinha ido embora. Só mais tarde retornaria. O painel interno trazia elencados cartazes de clássicos que haviam desfilado nas telas do L’amour. Debbie does Dallas, com Bambi no característico chapéu de cowboy e um decote levemente insinuante sobre uma estrela azul; a gulosa Linda Lovelace destacando-se boquiaberta sobre o fundo amarelo vibrante do cartaz; Miss Jones em todo o seu esplendor tipográfico preto e vermelho; e um elenco de estrelas de penteados ultrapassados e beleza e lascívia eternizadas em vinte e quatro quadros por segundo.

O homem recém chegado cumprimentou o rapazote que terminava seu trabalho, chamando-o pelo nome que trazia no crachá preso à lapela. Gil, estava lá escrito. E Gil respondeu ao patrão com a mesma simpatia, e talvez mais uma inflexão quase imperceptível, mas que sempre há na voz quando esta parte de um jovem funcionário ao patrão. Patrão conferiu, muito por cima, o trabalho e parabenizou o rapaz com um tapinha nas costas. O rapaz disse que estava quase terminando e que já ia sair para sua folga. Voltaria depois para a outra sessão. Graça, ele lembrou, já tinha saído. Mas já terminara todo o serviço. “Rápida essa mocinha, não? Acho que foi uma boa contratação”. Foi o que disse Patrão, tanto para si quanto para o funcionário, que sorriu afirmativamente em retorno. “Então tudo certo. Se todo mundo já foi, pode ir para a sua folga. Eu fico aqui até vocês voltarem. Vai aproveitar a vida que depois que você ficar velho não vai dar mais”, Patrão disse rindo. “Tudo bem”, o jovem respondeu, “mas de qualquer jeito, o Seu Genaro ainda está aí, mesmo” e foi saindo em direção à porta. “Ainda?”. “É, deve estar na sala de projeção”, disse o rapaz sem ligar para o tom de surpresa na voz patronal. Nem ouviu o homem no terno apertado deixar escapar por entre os dentes um “outra vez?” E já estava do lado de fora quando, balançando a cabeça, Patrão falou em voz baixa “velho safado”.

O suculento lábio inferior escondia o seu vermelho por trás do branco dos incisivos superiores. Os olhos sombreados, levemente fechados, deixavam escapar por entre os cílios longos o verde das íris. Uma gota de suor escorria pelo pescoço esguio e feminino, até chegar a um peito arfante, pingado de suor que descia pelos seios nus, fartos, balançando ritmados pelo movimento imposto pelo rapaz fora de cena. A câmera abre revelando o casal. Ela reclinada para frente com os braços apoiados na penteadeira, rosto refletido no espelho que refletia também o rapaz, de pé, atrás dela. Os cabelos colados no suor das costas, cintura curvada para trás, nádegas empinadas, as pernas bem lapidadas, abertas. A cena era toda dela. Dois corpos engalfinhados num espetáculo particular para o deleite de um velho sentado numa cadeira de madeira ao lado do maquinário ultrapassado. Os cabelos grisalhos e o olhar vago repetiam a figura do crachá pendurado no bolso do uniforme bordado “Cine L’amour”. De dentro da penumbra da sala de projeção só nascia o som companheiro da película passando pelos rolos do projetor antigo, naquele gemido baixo tão conhecido e confidente. O auditório visto além da janela de projeção permanecia vazio e limpo, no escuro. A única luz provinha do telão iluminado pelos corpos nus gigantescos e por um lampejo rememorado na mente, como uma reprise por demais repetida. O áudio do filme vinha lá de fora, junto com a pouca luz do auditório, trazendo gemidos gulosos, pedidos libidinosos e memórias insaciáveis para a sala de projeção escura. A porta se abriu de repente, mas sem violência. O homem de terno apertado entrou e acendeu as luzes balançando a cabeça de um lado para o outro, mais para si do que para o velho, que rapidamente desligou o projetor interrompendo um gemido e uma cara de dor mal interpretada na grande tela.

"Outra vez, seu Genaro?" Foi com um suspiro que o patrão falou. E o velho soube na hora que aquele suspiro significava mais que a própria frase. Baixou a cabeça envergonhado, triste e saudoso. De um tempo que foi e de um tempo que estava para ir, para sempre. Patrão puxou uma cadeira, colocou-a à frente do mais velho funcionário e sentou-se. Os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos unidas em meditação, a cabeça baixa revelando para o velho uma careca ainda mais evidente desta posição. Inspirou o ar como se fosse pesado e deixou que lhe saísse pelas narinas com o mesmo peso, como se abandonasse uma carga por demais carregada. Levantou o tronco e falou para o velho, que mantinha o olhar baixo, fitando as pontas desgastadas dos próprios sapatos de bicos arredondados.

"Seu Genaro, há quanto tempo o senhor trabalha aqui? Sempre foi um funcionário tão exemplar! Discreto, sempre no horário. E eu não retribuí direitinho tudo isso? Sempre paguei o senhor em dia, sempre tratei com respeito, volta e meia até lhe dava um bônus, não é? E eu nunca liguei de o senhor, ou qualquer outro, vez ou outra assistir a um filme por aqui, desde que deixasse tudo limpinho, não incomodasse ninguém, que fosse sempre discreto. Mas já não está dando mais, seu Genaro! Esses últimos anos está demais. É todo dia, homem de deus! Nem deve ser saudável pra um homem da sua idade. Eu até entendo que um homem vez por outra precise relaxar, se divertir, se dar o direito. Às vezes a gente tá meio sozinho, eu sei como é isso. Mas já está afetando o trabalho! Eu já avisei o senhor outras vezes, mas agora não posso mais ficar fazendo de conta que não estou vendo. Eu vou acertar todas as contas certinho com o senhor, vou até lhe adiantar o salário cheio do mês, mas vou ter que dispensar o senhor, seu Genaro. Não tem outro jeito."

O velho manteve os olhos no chão durante todo o discurso. Não sabia o que dizer. Apenas largou, por sua vez, um suspiro longo, levantou a cabeça e olhou para o patrão com os olhos baços. "Olhe, se quiser lhe faço uma carta de recomendação", Patrão disse antes que se pronunciasse. "Obrigado, patrão". Foi tudo o que disse o velho. Patrão levantou-se da cadeira, apoiou a mão no ombro do funcionário e saiu, fechando a porta atrás de si. O velho ficou um tempo olhando pela janela de projeção a tela branca, imaginando na sua mente as cenas que vira ali tantas vezes. Os corpos, os gozos, os sexos. A saudade. Tirou o crachá do uniforme e o colocou ao lado do projetor. Tocou o corpo metálico do equipamento percorrendo-o com o dedo de unha comprida, como se fosse corpo de amante. Abriu a porta e deixou a sala apagando a luz. A porta se fechou devagar enquanto o velho Genaro descia os degraus, passando pelas cadeiras forradas de vinil, pela grande tela branca, pela porta dupla, pela última vez.

O vento lá fora trazia um cheiro de chuva que ainda não chegou. O dia estava cinza mas ainda seco. Genaro seguiu as paredes pichadas, as portas metálicas das garagens, as bancas dos ambulantes. Deu à rua principal com a cabeça baixa, parando na esquina esperando o sinal abrir. Olhou por sobre o ombro e viu, uma quadra abaixo, o Cine L'amour lhe piscando um adeus privê. O homenzinho verde apareceu e os carros pararam. Genaro se perdia entre as faixas brancas pintadas no asfalto, o cheiro de escapamento e o ronco dos motores. Caminhava até o ponto de ônibus mesmo sabendo que o seu já tinha passado e o próximo demoraria ainda uns quarenta minutos. Sentou-se no banco velho que o recebeu, como os velhos, com um rangido, que suas articulações prontamente responderam em reconhecimento. Assistiu os carros passarem, as pessoas passarem, a vida passar, como se fosse um filme sem graça, sem gozo. Barulhos demais, sussurros de menos. Saudades demais. Depois de quinze minutos viu, no outro lado da rua, a menina recém contratada do L'amour chegar. Graça, era o nome dela, parece. Que nada tinha a ver com a moça, pensou o velho Genaro — Seu Genaro — ela dizia. Ele não dizia nada, que graça não via na moça. Ela dobrou a esquina e desceu a rua pichada. Genaro via as pernas finas, as ancas magras balançarem forçadamente de uma lado para o outro. Trabalhadora, dizia Patrão. Gil também confirmava, dizia que seu Genaro é que estava ficando amargo. Genaro estava, é verdade, mas mesmo assim não simpatizava com a moça que trabalhava ligeiro.

Genaro conhecia o L'amour. De quando chegou, anos antes. Os negócios iam bem, Patrão tinha comprado um novo carro, tinha mais cabelo e um terno menos apertado. As costeletas, já as tinha bem aparadas àquela época. Genaro cuidava de tudo. Limpeza e projeção. Mas Patrão decidiu pôr alguém pra ajudar Genaro. "Seu Genaro, o senhor fique apenas com a projeção. Que eu vou arrumar alguém para lhe ajudar nos trabalhos mais pesados". Patrão arrumou. Deixou o velho Genaro mais folgado, cuidando dos filmes e das sessões apenas. E já contratou logo mais gente. Tinha um rapaz bem novo, no lugar de Gil. Genaro não lembrava mais o nome dele, lembrava que ele um dia não apareceu mais, simplesmente. Foi daí que Patrão contratou Gil. E tinha a Dona Cida. Maria Aparecida, o nome dela. Ela também, velha em idade mas não tão velha quanto Genaro. Devia ter uns quinze, dez anos menos, provavelmente. Genaro nunca havia perguntado. Uma pena.

O ônibus chegou ruidoso, despertando o velho com um susto. Com esforço subiu os altos degraus e embarcou, enquanto a luz dos postes começava a acender prematuramente, prevendo a noite que se adensava. Sentou num acento vago no fundo do ônibus. O mesmo de sempre, velho conhecido, que fazia o caminho aos bairros distantes que abrigavam velhos sozinhos em quitinetes de azulejos dos anos sessenta. Barulhento, expelia baforadas negras como dum cachimbo sujo enquanto vencia os buracos da cidade resmungando como um velho chato e rabugento. Lá dentro, nos últimos bancos, outro velho, menos rabugento, se perdia entre os demais passageiros. Nenhum tão velho quanto ele. Talvez aquela senhora dormindo, de cabelos brancos e rugas nordestinas nas faces, com a cabeça quase tocando a janela e uma roupa florida combinando com a bolsa de crochê. Será que iria ela também para uma quitinete de azulejos velhos? Genaro não se importava. Já mal reparava na mulher. Os primeiros pingos começavam a tocar de leve as janelas do ônibus que, embaçadas, lembravam uma tela branca.

Uma tela branca que recebia cenas obscenas e belas, ejaculadas de um projetor que gemia gracioso para uma platéia desconhecida. A sala, nunca muito cheia, como convinha. Bastante espaço para que os clientes aproveitassem o filme preservando suas identidades e seus pudores sem um cotovelo desconhecido ao lado ou o cruzar com um rosto não tão desconhecido. Raros casais sentados nos cantos com mãos ligeiras. Velhos sozinhos rememorando ou fantasiando. Garotos em hordas que não deveriam estar ali. Solitários e oportunistas na esperança de encontrar um par sob a luz dos pares - ou trios, ou grupos - que copulavam na tela iluminada. Lá embaixo, na porta ao lado da primeira fileira, vazia como sempre, Dona Cida aguardava com a vassoura, os panos e as luvas o fim da sessão, olhando a tela, disfarçadamente a plateia, ou o rastro de luz que entrava pela janelinha de projeção, atrás de todos, até tocar o projetor lá dentro, bem lá no fundo, assim.

A chuva aumentou e Genaro despertou de suas lembranças. Só então percebeu que a velha tinha acordado e ido embora. Seu olhar de velho despedido permanecia cravado na janela onde, há pouco, uma cabeça esbranquiçada e sonolenta quase batia. Aguardou mais uns minutos e saltou no mesmo ponto onde saltava todos os dias ao cair da noite. A cobertura de zinco fazendo barulho sob a chuva. Abriu o guarda-chuva e caminhou uma quadra até a entrada de sua casa. Subiu a escadinha externa anexa ao prédio, abriu a porta de sua quitinete e entrou, deixando do lado de fora um dia choroso que chegava ao fim.

O apartamento escuro lembrando uma sala de projeção vazia, onde poderiam estar sentados dois velhos uniformizados olhando uma tela branca onde uma loira de maquiagem borrada era penetrada por trás por um rapaz tatuado enquanto aplicava uma sessão de sexo oral a outro a sua frente, num sofá de couro ao som de suspiros, gemidos e um ou outro tapa de leve nas nádegas arredondadas. Assistindo aos esforços da moça, estariam os dois velhos lado a lado, em silêncio, apenas olhando a tela. Nenhum deles prestaria muita atenção ao filme. Os olhares perdidos nas cenas provocantes apenas disfarçariam os demais sentidos, conectados naquela presença eletrizante ao lado. Como uma fonte de calor ou uma estática que se percebe sem mesmo se ver. Disfarçando o indisfarçável. E nessa falsidade dividida, cientemente falsa e dividida, deixariam-se estar na prazerosa companhia um do outro. Até que a tira de filme chegasse ao fim e a tela se cobrisse toda de um branco viscoso. Naquele o tempo o prazer se alcançava com apenas trinta e cinco milímetros.

Mas ao acender do abajur, nada passava de uma quitinete escura de azulejos antigos. Genaro foi ao banheiro, retirou as calças de barras molhadas, ligou o chuveiro quente e deixou que a água lhe lavasse o resto de dia que escondia-se entre as rugas de seu corpo. Caminhou sua flacidez nua até a cama no quarto-sala-cozinha, vestiu o pijama e os chinelos apeluciados, num raro momento de prazer verdadeiro. No fogão requentou a sopa de ontem e foi tomar sua refeição no sofá em frente ao aparelho de tevê de poucos canais. A pequena tela brilhante lhe parecia débil quando comparada à enorme tela do L'amour, que preenchia de vida alguns corpos carentes, dela ou de algo mais. Esticou o cotovelo para o lado num movimento quase automático, esperando que esbarrasse em outro cotovelo. Esbarrou, ao contrário, numa ausência há um bom tempo presente.

Uma ausência que o acompanhava desde a última vez que teve alguém ao seu lado na sala escura do Cine L'amour. Quando todos iam-se embora e ela, Aparecida do nada, surgia a limpar as poltronas de vinil e os corredores de sal, pipocas e sujidades mais. Ele lhe sorria com os lábios murchos dele. Ela lhe sorria com os dentes falsos dela. E eram os sorrisos mais firmes e sinceros que aquela tela haveria de presenciar. Ele colocava o filme a passar de novo, com a desculpa de entreter o trabalho — e outro tipo de filme não havia no L'amour — e ela consentia com indisfarçado contentamento. Ele ficava ao seu lado, lhe fazendo companhia. Pouco conversavam. Conversar mal era preciso para quem já tinha conversado uma vida toda. Quando ela terminava, sentavam lado a lado na sala pouco iluminada até que o filme e os gemidos acabassem e que a tela orgásmica cobrisse-se novamente de branco. Ele então guardava os rolos, desligava o projetor e iam embora até despedirem-se no ponto de ônibus. Aos poucos a estática entre eles ia diminuindo e, instintivamente, aproximavam-se mais um pouco até que aquela vibração invisível ou aquele calor de corpo velho voltasse a se estabelecer entre eles. Um dia os cotovelos enrugados encontraram-se. Os olhares então deixaram a tela onde uma ruiva muito nova masturbava um homem de bronzeado artificial que devia ser bem mais atraente quando mais jovem. Cida, encabulada, mais pelo toque dos cotovelos do que pelo filme. Genaro lhe estendeu a mão, que ela aceitou. Ficaram de mãos dadas assistindo a ruiva receber aos seios o membro viril do homem bronzeado.

No televisor não havia ruivas nuas ou bronzeados depilados. Apenas uma apresentadora de telejornal comportadamente vestida. Quanto a Genaro, ao seu lado havia apenas aquela ausência tão presente nos últimos anos. Levou o prato fundo à pia e decidiu não lavá-lo, mesmo que fosse pouco o trabalho. Meteu-se embaixo das cobertas e apagou as luzes. Sentado ainda na cama, viu o televisor desligado, a pia com a louça suja, a janela da sala mostrando o riscar da chuva lá fora. Deitou com a chuva de dentro represada. Na manhã seguinte acordaria só. O Cine L'amour desaparecera de sua vida. Também.

Dormiu um sono agitado. Sonhou-se sentado nas poltronas de vinil, mãos dadas com Dona Cida. Maria Aparecida. À sua frente, sexos gigantes se encontrando, se penetrando, se lambuzando numa grande tela luminosa, com gemidos escorrendo densos e um calor nas palmas das mãos velhas e suadas de dedos entrelaçados. Sonhou que seu colchão velho tinha recebido o dorso manchado de uma velha de dentes falsos e sorriso verdadeiro. Com seu membro inerte mostrando alguma vida e rememorando a juventude perdida, entre pernas magras idosas. Depois com o descansar de dois velhos entregues novamente à companhia um do outro. Todos os dias de mãos dadas, numa cópula de dedos entrelaçados, de palmas confidentes. Sonhou com o primeiro dia em que reprisou o filme e o assistiu sozinho. Dona Cida não aparecera. Gil o ajudara na limpeza aquele dia. No dia seguinte também. No outro, novamente. Na semana seguinte, com Dona Cida desaparecida, Patrão teve de contratar Graça. Quase mês depois, veio saber, Dona Cida havia falecido. Foi visitar uma prima doente e nunca mais voltara. Acabou que Graça ficara em definitivo no L'amour. Rápida, a moça, de fato. Terminava o serviço quase na metade do tempo. Ainda assim Genaro não gostava muito dela. Depois que ela saía, ficava na sala de projeção escura e ligava o projetor que gemia baixo ao seu lado, acompanhando as cenas do último filme que assistira com uma mão na sua. E revia, todos os dias, na grande tela, a morena voluptuosa de cabelos negros ser possuída por um mexicano enquanto acariciava uma loira de seios enormes.

Acordou lembrando aquele último dia. As luzes acesas da sala de projeção, Patrão à sua frente, a sala do cinema limpa e vazia, no escuro. A tela, naquele dia, não havia ficado branca ao fim do filme. Naquele dia, após a limpeza, ao ter o filme interrompido, a tela do Cine L'amour havia ficado negra.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

À Mainha Morta

eu rio
do rio

pruquê
o rio tá na vala, mainha

padinho diz
que quâno rio inchê
vai dá di vê meu riflexo

mas já dá, padinho
que o rio é marrom e rachado
qui nem minha cara di sertão

até meus óio verve mais água qu'esse rio

eu cuspo
pelo buraco onde tinha um dente
pra vê se o rio enche di novo

ai di mim, mainha

o poço secô
tu já morreu
painho sumiu

padin diz que foi pro rio

mas eu tô no rio
e
o rio secô
o rio rachô
e painho não tá
no rio, mainha

'que o rio tá seco
e velho
que nem eu
vazio

domingo, 4 de outubro de 2009

Desmetrica Mente

tanto tempo
tantintento
tem totanto
me livrar

da forma
(a que dá forma)
........[a queda à forma]
que disforma
que deforma
que conforma
........com forma

transtorno
transtorno
transpiro
expiro
esporro

preso à pressa
à prece à prensa
preso à porra da madrerrima
spiritum sanctum do verso nostrum

........[vade-mécum
........(vá de retro)

Relicário velho
Relicário relho
Reles cárie
........(extração)

me afeta
o afeto
infecto
incerto inseto
inserto goelabaixo

e
me apego
me apago
no pirófagafago
de línguas de fogo
do verso pagão

enterro interno
o verso beato
com uma pá de terra
duas pás de cal

e um punhado de pretérita certeza