sábado, 28 de junho de 2008

Homens do Mar

Não tenho gostado mto das minhas ficções ultimamente. Acho q até por isso o número de ensaios e artigos vem crescendo aqui. Ando tb sem mto tempo e as ilustras tb rarearam por isso. Além do mais tem um povinho me azucrinando as idéias ;)
De qq forma, essa é uma tentativa de fazer qq coisa meio metaliterária, homenagem(?) a Melville e Hemingway. Foi pra rodada anterior do Duelo, então já sabem, prazo curto, tema proposto, aquela coisa toda. Sem mais delongas


Homens do Mar

A sacada de madeira se debruçava da areia sobre o mar. A tarde naufragava lentamente no oceano rajado de cobre. Poucas gaivotas sobrevoavam o que restava do dia e poucas velas arrastavam para a praia as últimas redes.

Dentro do copo, um oceano miniaturizado dava voltas impulsionado pela falange ossuda e calejada. Santiago apreciava o inevitável e já demasiadamente postergado ocaso, com memórias de esqueletos e sal e mar. Não deu conta do homem, anos mais jovem, que se sentou à mesa ao lado. Pele tisnada, olhar perdido no mesmo oceano.

Em silêncio, ficaram ouvindo o sol afogar-se.

Uma voz de menino despertou o velho: — “Uma bebida, senhor?”

O velho negou o pedido com um “obrigado, Manolin”.

Mas não era Manolin. Era apenas o garoto tomando o pedido do novo cliente. Só então, o velho apercebeu-se do novo companheiro na sacada. E do olhar de reprovação da criança, que anotava o pedido. Sem graça, voltou os olhos cansados e a barba branca para o oceano.

Ficaram os dois, olhando as ondas ao longe, parecendo buscar algo em comum nas vagas. Algo deixado para trás, devorado ou em destroços. Vendo bestas na espuma branca, ou memórias nas correntes.

— Quem é Manolin?

A voz partiu do rosto imberbe que ainda fitava o mar.

— O vento que enfunava a vela.

A resposta veio sem que o velho tirasse os olhos da água.

— Um amigo de Santiago. Mas agora sou só eu, velho, e o mar.

Só então o velho passou o olhar para o oceano dentro do copo e lhe sorveu o que restava, enquanto o mar sorvia o que restava do sol.

— E você? Qual o seu nome? — Perguntou o velho secando a barba com a manga da camisa.

— Chamai-me Ismael.

— Você também deixou algo lá, não deixou?

— Fui tudo o que restou. Fui o que o oceano não se dignou a tragar. Regurgitado Ismael.

Baixou a cabeça olhando as vigas de madeira do chão e continuou.

— Sabe, há muito tempo havia prometido jamais retornar ao mar. Jamais me tornar ao oceano outra vez. E agora aqui estou eu, lutando pra tirar os olhos das ondas.

— Nãos somos nós que escolhemos o mar. É o oceano que nos escolhe. E quando não nos deseja mais, não importa o que façamos, ele nos cospe à costa como um esqueleto, um resto de peixe devorado. Por maior que seja, a conquista é vazia se o seu tempo sobre as águas passou.

— Por maior que seja! Há! Por maior que seja... Era titânico! Por três dias nós tentamos. Três dias! E no final só restei eu. Nem derrotado o mar me quis. Fiquei mais dois dias esperando, pela baleia ou pelo oceano, pra terminar com aquilo. Mas nenhum deles o fez. O único que me estendeu a mão foi o Rachel. Logo ele a quem negamos ajuda... Enquanto isso a baleia continua lá. Alva, gigante, no oceano.

— É por isso que ela continua grande. Se fosse trazida à praia não seria mais que esqueleto esquálido. Branca cor de osso. Vê, olha as ondas. Mar adentro são grandiosas, imponentes. As vagas gigantes, tombando navios, erguendo-se contra tempestades. Mas aqui, na praia, são pequenas, débeis, fracas... inúteis. Nós estamos na praia, Ismael.

— Sim, Santiago. Nós estamos na praia.

domingo, 22 de junho de 2008

Filho da Seca

Eu
sou filho da seca
Devoto da chuva
Oro ao trovão.
Ao fogo que rasga das nuvens
Fazendo água
Em meio ao clarão.

Eu sou da terra rachada.
O sangue da seca
No leito arenoso
Da veia vazia.

Eu que canto o clamor da fome
No pasto vazio, na terra queimada.
No poço seco sem eco
Não me espelho mais.

Um filho da seca
Orando pra chuva
Voltar a cair.

Um devoto da chuva
Orando pro santo
Do sertão ouvir.

Filho da seca
Devoto da chuva
Aguardo o porvir.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Todos os Nomes - A Divina Comédia Pós-Moderna

Como prometido, esse é um artigo que fiz sobre o livro Todos os Nomes, de José Saramago. Foi originalmente publicado no Sarau Eletrônico. Ele é um pouco extenso para um post de blog, então, se vc preferir, pode baixar o PDF que o pessoal do Sarau fez. É só clicar aqui. A análise se baseia nas metáforas contidas no próprio Todos os Nomes e na sua relação com outras obras do Saramago e de alguns outros autores, em especial a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Agora chega de enrolação e vamos ao texto.



A Divina Comédia Pós-Moderna.

Seguindo o fio de Ariadne do Inferno ao Paraíso de Todos os Nomes.

Rodrigo Oliveira

“Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com outro nome, exalaria o mesmo perfume tão agradável; (...) despoja-te de teu nome e, em troca de teu nome, que não faz parte de ti, toma-me toda inteira!”

— William Shakespeare - Romeu e Julieta.

Já à primeira leitura, Todos os Nomes revela-se um labirinto de metáforas e simbolismos. Na própria obra, o autor justifica: “A metáfora sempre foi a melhor forma de explicar as coisas” (Saramago, 1997, pág. 267). Como em todo labirinto, muitos são os caminhos encontrados em Todos os Nomes. A obra dialoga com outros textos e temáticas do próprio Saramago que, como seu homônimo protagonista, usa deste diálogo consigo mesmo para tentar pôr alguma ordem em um mundo em que nada tem sentido (idem, pág 274). “Pessoas assim (...) fazem-no por algo o que poderíamos chamar de angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a idéia do caos como regedor único do universo, por isso (...) vão tentando pôr alguma ordem no mundo”. (idem, pág 23-24).

O diálogo de Saramago, no entanto, não se limita a sua própria obra. Como Teseu precisou de Ariadne para deixar o labirinto, o próprio autor lança mão de helpers para ajudá-lo, e ao seu personagem, a saírem de seus próprios labirintos. Segundo Endoença Martins: “the helper acts to mediate the conflict that exists between the protagonist and antagonist. (…) We may say that problem is associated with the protagonist, complication with the antagonist, and resolution with the helper [1].

Esses helpers surgem em paralelos com outras obras e metáforas, como o próprio mito de Teseu — diretamente abordado no romance de Saramago — a busca pelo Santo Graal ou a cruzada de Dante em sua A Divina Comédia.

“Perdido numa medonha selva, Dante vaga por ela durante a noite. Ao amanhecer, deixando-a, começa a subir por uma colina. Súbito, atravessam-lhe a passagem uma pantera, um leão e uma loba e o afastam para a selva. Então, aparece-lhe a imagem de Virgílio, que o reanima e oferece-se a tirá-lo da selva, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Depois Beatriz o conduzirá ao Paraíso”. (Alighieri, 2004, pág. 13)

As referências são evidentes. Como Dante, o Sr. José também enfrenta a sua selva escura e sombria, ainda que esta seja composta de estantes, pilhas de papéis recheadas de nomes e datas e uma vida solitária em uma sociedade efêmera, materialista e ultrapassada. Tal qual Teseu, ambos estão em seus labirintos. E ambos precisam de um helper, de um fio de Ariadne, para conseguir deixar esse labirinto. Enquanto o poeta italiano recebe ajuda de Virgílio — outro poeta — o Sr. José encontra seu fio de Ariadne no verbete de uma mulher desconhecida — como ele, comum, insignificante, apenas um nome em um verbete.

Enquanto Teseu vaga pelo labirinto até encontrar e desafiar o Minotauro, Alighieri cruza o inferno e o purgatório até encontrar Dite. Da mesma forma o Sr. José de Saramago precisa peregrinar pelo seu próprio inferno, encarando seus medos, sofrendo física e emocionalmente pelos vários círculos da Conservatória, da Escola e do Cemitério — Inferno, Purgatório e Paraíso — e enfrentar o Conservador Geral na busca por sua Beatriz, por sua mulher desconhecida. E como Teseu depois que deixa o labirinto deixa também Ariadne, o Sr. José só encontra a mulher desconhecida para saber que ela estava, na verdade, morta. Suicidara-se, como Ariadne. Dante, depois de cruzar todos os círculos também chega à presença divina, que tanto almejava ver. Uma vez lá a intensa luz divina cega-lhe a visão. “Quase por inteiro apagou-se-me a visão que tive, mas ainda trago no coração a doçura que nasce de um êxtase tamanho” (Alighieri, 2004, pág.335) A busca pelo Graal é, em si, uma busca inatingível. Encontra-se o artefato, mas não se pode tocá-lo. É a busca pela Ilha Desconhecida de Saramago (Saramago, 1998). Uma busca, acima de tudo, por si mesmo, por encontrar-se na busca pelo outro. Uma viagem atrás da própria identidade. Um desejo (ou uma carência, ao menos) cada vez mais comum na sociedade pós-moderna, com o embate de uma vontade otimista e esperançosa contra o pessimismo desesperado da razão. Uma sociedade que se abre ao outro ao mesmo tempo em que resiste a ele, uma sociedade que, em busca de si, retoma sua história, sua língua, sua literatura. (Hall, 2003, pág. 339-340). Essa busca do ser humano pós-moderno por si mesmo “tem a ver não tanto com as questões ‘quem somos nós’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’”. (Hall e Woodward, 2004, pág.109).

O mundo de Todos os Nomes dá pouca margem a esse “quem nós podemos nos tornar”. É na esfera de como somos representados e de como essa representação nos afeta que a Conservatória e a sociedade retratada se impõem sobre os indivíduos que, retratados apenas como nomes e números, não têm como se representar além disso, perdem a sua identidade individual. “Este foi o prodígio obrado pela tua Conservatória Geral, transformar em meros papéis a vida e a morte” (Saramago, 1997, pág. 177). Mais adiante Saramago continua: “à Conservatória só interessa saber quando nascemos, quando morremos e pouco mais (...) a Conservatória é indiferente se, no meio de tudo isso, fomos felizes ou infelizes”. É essa Conservatória opressora, alienadora, que mantém o Sr. José preso aos seus labirínticos corredores. A ela não interessa quem somos, a ela só interessam os nomes. Justamente o contraponto que Saramago aborda em Ensaio sobre a Cegueira: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. (Saramago, 1995, pág. 262). Dessa forma o autor coloca em pauta a questão da identidade, opondo o ser ao parecer, o essencial e o superficial, fazendo eco à epígrafe de Todos os Nomes “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”. Nenhum dos personagens tem nome. Mas ainda assim sabemos quem são, os conhecemos de fato. Nem mesmo o Sr. José, a Conservatória ou o Conservador, que sabem os nomes desses personagens, os conhecem como nós, que conhecemos os nomes que têm, não os que lhes foram dados. Na obra, além de todas as metáforas que se revelam além de seus significados iniciais, a maior parte das personagens não é apenas o que aparenta. O Sr. José é um austero funcionário da Conservatória, de cinqüenta anos, solitário, vivendo em uma casa simples anexa ao local de trabalho. Todo o seu universo gira em torno da Conservatória. Mas esse funcionário exemplar revela-se transgressor não só das normas da Conservatória como da própria lei. Mostra-se, depois de rompida sua inércia inicial, um homem totalmente diferente, quase irreconhecível, como constata em frente a um espelho na escola que acabara de invadir: “Este não pareço eu, pensou, e provavelmente nunca o havia sido tanto”. O Conservador Geral, que aparentava a onipotência de um deus, o descaso com os hierarquicamente inferiores, a severidade em pessoa, revela-se conivente, cúmplice e tão transgressor quanto o Sr. José. A própria busca do Sr. José quedou-se outra, uma vez que o próprio objeto da busca já não existia, havia morrido. Essa busca, que parecia ser pela mulher desconhecida, apresenta-se como a busca por si mesmo. A Conservatória, que parece preocupar-se com todos os pormenores na verdade só se preocupa com pilhas de papel. Nelas as pessoas são valorizadas, enquanto aos colegas de trabalho não é dispensada a menor atenção. O pastor de ovelhas, que parecia profanar túmulos, é quem mais respeito dedicava por aqueles que jazem no Cemitério Geral. E nem mesmo estes são quem aparentam ser, com os nomes trocados nas lápides. Justamente no cemitério, entre os túmulos dos suicidas, o confronto da mentira e da verdade, da aparência e da essência, atinge o seu ápice. O Sr. José assiste a um enterro e, findo este, segue o exemplo do pastor. Troca os números da sepultura com a da mulher desconhecida.

“A troca estava feita, a verdade tinha-se tornado mentira. Em todo o caso, bem poderá vir a suceder que o pastor, amanhã, encontrando ali na nova sepultura, leve, sem saber, o número falso que nela se vê para a sepultura da mulher desconhecida, hipótese irônica, em que a mentira, parecendo estar a repetir-se a si mesma, tornaria a ser verdade” (Saramago, 1997, pág. 243)

Assim o Sr. José move a última peça. Agora o Cemitério Geral, que já era tão labiríntico quanto o arquivo dos mortos da Conservatória, também está tão caótico quanto ela. O Sr. José, que tentava pôr alguma ordem no mundo colecionando recortes de personalidades famosas, finalmente se curva ao caos por uma mulher desconhecida, deixa o global para se dedicar ao individual.

Esta essência além das aparências, não se resume aos personagens. O próprio enredo é construído por metáforas que se desdobram em diferentes e variadas leituras. Tomemos os cenários onde a trama se desenvolve. Saramago nos apresenta uma cidade soturna, acinzentada, dominada pela chuva, nevoeiro e escuridão. Mesmo os ambientes internos mostram-se escuros e opressores. As principais atividades ocorrem durante a noite ou em locais pouco iluminados. Tal qual a sombria floresta de Dante. A escuridão de uma vida lúgubre em uma sociedade opressora e vil parece ligar os dois autores. Dante e Saramago, separados por um considerável espaço de tempo. Podemo-nos perguntar se esta sociedade não seria a mesma. Se a pantera, a loba e o leão que impeliram o italiano à floresta, ainda não estarão a vagar, impelindo o Sr. José aos labirintos do mundo pós-moderno. Será este mundo tão diferente daquele de Dante, que lança sobre os dois autores angústias tão semelhantes?

A semelhança com a obra de Alighieri retrata não só a busca pelo Graal, o valor da jornada sobre o destino, como elemento transformador. Observamos que a influência da mitologia cristã que inspira Dante também percorre o texto de Saramago. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo vemos um Cristo humanizado, angustiado, perdido como o próprio Sr. José. Este cristo-humanidade, também se põe em busca de si mesmo. E os dois, Jesus e José, seguem o arquétipo quixotesco do anti-herói. Enquanto o engenhoso fidalgo de Cervantes entra em sua empresa por Dulcinéia, o Sr. José busca o amor da mulher desconhecida. Pois como o teto — sua consciência — lhe fala, o amor é o único motivo pelo qual ele procura a mulher desconhecida. (Saramago, 1997, pág. 246).

Enquanto o Jesus do Evangelho é uma peça nas mãos de Deus para atingir seus objetivos, o Sr. José também é usado pelo conservador que, com sua conivência e ajuda, media a busca do Sr. José que é, também, a sua própria busca. Assim como o Conservador restitui ao mundo dos vivos os mortos, unificando os arquivos da Conservatória, o Sr. José restitui a mulher desconhecida à vida partindo em busca de sua certidão de óbito para destruí-la e colocando o verbete junto aos outros sem a data da morte, como sugerido pelo Conservador Geral. Esse Sr. José Jesus se apresenta de novo no cemitério. O momento de maior epifania do Sr. José, quando ele chega ao clímax de sua jornada antes de entrar no arquivo-mundo dos mortos da Conservatória — como o faz ao fim do livro — se dá sob uma oliveira, que depois o acolhe na noite. Da mesma forma, o “seja feita a tua vontade” do Cristo bíblico se dá no Monte das Oliveiras, aonde ele chega à revelação de sua jornada, pouco antes de deixar o mundo do vivos. Mas o Sr. José se assemelha mais com o Jesus de Saramago do que com àquele das Escrituras. Tanto o Jesus como o Sr. José de Saramago, são muito humanos. O capítulo encerra com um Sr. José mundano: “Tomou um café com leite e uma torrada. Já não agüentava mais a fome”. (Saramago, 1997, pág. 243).

O Deus de O Evangelho Segundo Jesus Cristo remete a um ditador onipotente, onisciente e onipresente. A mesma descrição pode ser empregada ao Conservador Geral: “O meu chefe, por exemplo, só para que a senhora fique com uma idéia, sabe de cor todos os nomes que existem e existiram” e “Sendo, como é, capaz de realizar todas as combinações possíveis de nomes e apelidos, o cérebro do meu chefe não só conhece todos os nomes de todas as pessoas que estão vivas e de todas que morreram, como poderia dizer-lhe como se chamarão todas as que vierem a nascer daqui até o fim do mundo”. (Saramago, 1997, pág. 62). Se não bastasse a descrição divina do Conservador, Saramago ainda inclui outros símbolos mais sutis a este deus. Ele, que na figura da Conservatória está sempre presente ao Sr. José, separado apenas por uma porta. Mesmo dentre toda a escuridão do livro, mesmo na noite da Conservatória, a luz sobre a mesa do chefe sempre brilha. E o fio de Ariadne, que guia aqueles que entram nos sombrios arquivos dos mortos de volta à luz, está também atado a mesa do Conservador. E ainda, numa demonstração de poder acima das tradições, o Conservador une, na Conservatória, os vivos e os mortos, como um deus que ressuscita aqueles que já se foram. Ainda, andando pela Escola o Sr. José compara o Diretor desta ao Conservador, intuindo onde ficaria o gabinete: “Seria com certeza no [andar] de cima, afastado das vozes, dos ruídos incômodos do tumulto da entrada e saída das classes”. Ao subir pela escada até o gabinete, “ascendia-se, progressivamente da escuridão à luz” (Saramago, 1997, pág 97) Mais adiante, na página 129, Saramago descreve o chefe do Sr. José como “este Conservador, que conhece os reinos do visível e do invisível de cor e salteado”, corroborando essa visão do Conservador como Deus e do Sr. José como Jesus. Essa ligação entre chefe e subordinado, entre Pai e Filho, se revela quando o Sr. José senta-se na cadeira do chefe — e o faz novamente em sonho — colocando-se num mesmo paradigma que o Conservador, indicando que de alguma forma teriam algo em comum, um vínculo, como se confirma ao fim do romance.

Seguindo no paralelo do Evangelho com Todos os Nomes, nos resta ainda um personagem relevante. O Pastor. Jesus tem como tutor, por quatro anos, o diabo, citado como Pastor. Um pastor de ovelhas que o guia e o ampara. Da mesma forma o Sr. José tem na figura do pastor de ovelhas do cemitério, um tutor. Um tutor que lhe proporciona o momento de maior comunhão com a mulher desconhecida e o momento de revelação em que, pela primeira vez, encontra paz de espírito e a si mesmo. Enquanto o Pastor do Evangelho se contrapõe a Deus, o pastor de todos os nomes se contrapõe ao Conservador. Enquanto o último busca a ordem, o anterior impõe o caos. Enquanto um se preocupa com todos os nomes, ao outro os nomes não importam.

Retornando ao pano de fundo onde os personagens vivem suas histórias, destacam-se três principais cenários em Todos os Nomes. A Conservatória Geral do Registro Civil, a Escola e o Cemitério Geral. A atenção dada a cada uma destas locações contrasta com a quase insignificante atenção que o autor dá aos personagens. Enquanto os últimos nem têm nome e uma descrição quase nula, os primeiros são descritos com detalhes, tendo inclusive os seus nomes próprios — no caso da Conservatória e do Cemitério — devidamente registrados. Enquanto a conservatória recebe um completo Conservatória Geral do Registro Civil, o Sr. José, único personagem que tem o luxo de ser nomeado, não tem sequer seu sobrenome citado e, mesmo o nome, é simplório e comum.

Os três cenários, quando analisados de forma conjunta mimetizam as três fases da vida. O nascimento, com o devido registro na conservatória; o desenvolvimento, na escola, onde a mulher desconhecida entrou aluna e saiu professora; e a morte, com o sepultamento no Cemitério Geral, que leva a um novo e último registro na Conservatória. O Sr. José faz linearmente esse caminho. Começa na Conservatória, onde inicia sua história com o achado do verbete da mulher desconhecida. Passa à Escola onde, não apenas desenvolve sua busca conseguindo vários novos verbetes da mulher, como também encara e vence seus medos, onde cresce como pessoa, mesmo que isso tenha lhe causado dor, sofrimento, à custo de esforço e determinação. Depois dirige-se ao cemitério, onde tem o primeiro momento de paz espiritual no livro e onde, pela primeira vez, brilha o sol. Por fim o Sr. José retorna à Conservatória e mergulha na escuridão do arquivo dos mortos. Essa passagem linear pelos três cenários nos remete novamente à Divina Comédia, onde Dante cruza o Inferno como o Sr. José cruza seus dias na Conservatória Geral; passa pelo Purgatório como o Sr. José purga na Escola; e ascende aos céus e à presença divina como o protagonista chega ao cemitério onde encontra a mulher desconhecida, o pastor de ovelhas e a oliveira que o acolhe.

Se a cidade é retratada como escura e sombria, é na Conservatória que essa escuridão se adensa. Estantes ciclópicas criam um labirinto que exclui a luz, ao qual se entra com uma lanterna e o fio de Ariadne, sob o risco de perder-se como o historiador que “foi descoberto, quase por milagre, ao cabo de uma semana, faminto, sedento, exausto e delirante” (Saramago, 1997, pág. 15). O prédio tem forma austera e fria, de ângulos retos, minimalista. No seu interior o espaço fica divido entre os arquivos dos vivos e dos mortos, sendo a parte da frente dedicada aos que vivem. As mesas de trabalho são divididas hierarquicamente de forma que à medida que vai subindo de posto, o funcionário tem sua mesa mais próxima do arquivo dos mortos. O Conservador Geral ocupa a última posição. Além dele fica o arquivo dos que já morreram. Não só se tem que passar por ele para ir até lá, como, com o fio de Ariadne preso a sua mesa, todos os que saem de lá vêm a ele. Naquele arquivo os papéis dos mortos mais antigos são deixados ao pó e à escuridão, “amarelecendo cada vez mais, até se tornarem em manchas escuras e inestéticas nos topos das prateleiras, ofendendo a vista do público” (idem, pág. 16). Essa indiferença e descaso pela morte já fica evidente na primeira página da história: “O destino de todo papel novo, logo à saída da fábrica, é começar a envelhecer” (ibidem, pág 11) e é retomado mais tarde: “Para morrer, basta estar vivo” (ibidem, pág. 182). É a papéis com datas e nomes que a Conservatória reduz a existência humana, em um ambiente que, ao mesmo tempo, abriga a vida e a morte, “como um perfume composto de metade rosa e metade crisântemo”. (ibidem, pág. 11).

Se a Conservatória de Saramago está para o Inferno dantesco, a Escola reflete melhor o Purgatório, “o segundo reino, onde o espírito, purgando culpas, faz-se digno de ascender ao Céu”. (Aliguieri, 2004, pág. 119). É aqui que o Sr. José cumpre a sua pena para chegar ao Paraíso, é aqui que sofre, corta-se, expele pus dos joelhos, é aqui, enfim, que redime-se e purifica-se de suas culpas de uma existência inexpressiva. Como no Purgatório, a Escola também representa um momento de desenvolvimento, de preparação, de crescimento pessoal para o Sr. José. Aqui ele enfrenta os seus medos, a altura e a escuridão. Toma a iniciativa e liberta-se de seu antigo eu. Mas para isso teve de passar pela fome, frio e sangue. Teve de rastejar-se, encharcar-se. Lá a mulher desconhecida também encontrou seu crescimento, entrou aluna e saiu professora. Por fim o Sr. José encontra o caminho ao Paraíso. Arrastando-se escada acima, da escuridão à luz, o Sr. José encontra novos verbetes da mulher desconhecida. Ainda assim, ao chegar em casa, suas roupas sujas e molhadas deixam no chão uma sombra enegrecida de umidade, como a mancha de sangue nas mãos de Lady Macbeth, na obra de Shakespeare. “Sai, mancha maldita! Sai! Estou mandando”, diz Lady Macbeth, ao que depois continua “Como! Estas mãos nunca ficarão limpas?” e encerra “Aqui ainda há o odor de sangue. Todo o perfume da Arábia não conseguiria deixar cheirosa esta mãozinha” (Shakespeare, pág. 103). Da mesma forma a mancha de umidade não desaparece do chão da casa do Sr. José, acusando-o de suas transgressões. Tanto o sangue como a umidade são símbolos da culpa que não se vai, mostrando a dualidade e complexidade da personalidade de Lady Macbeth e do protagonista saramaguiano. Mas enquanto Lady Macbeth não suporta a culpa e suicida-se, o Sr. José, ao cabo de todo seu sofrimento, acaba por encontrar o caminho ao Paraíso.

O Cemitério é o estágio final da cruzada do Sr. José. Assim, corresponde ao Paraíso de Dante. Onde o poeta deixa de ser guiado por Virgílio e passa a ser guiado por Beatriz. A figura do rio é constante no Paraíso de Dante. É o seu primeiro contato com o terceiro reino, é onde ele é mergulhado e purificado. De igual maneira o Sr. José segue um rio no cemitério até encontrar a sepultura da mulher desconhecida. Sepultura que se destaca das demais pela lua cujo brilho incide sobre ela. É a lua, justamente, o primeiro círculo do Paraíso da Divina Comédia. Como o Inferno, o Paraíso é também constituído de círculos, um plano espelhado muito semelhante ao primeiro. Na obra de Saramago, o Cemitério também revela-se como um duplo da Conservatória Geral. “Da mesma maneira que a Conservatória Geral do Registro Civil (...) a divisa não escrita deste Cemitério Geral é Todos os Nomes”. (Saramago, 1997, pág. 217). A parede de trás da Conservatória, na área do arquivo dos mortos, tinha de ser derrubada com freqüência para abrir espaço para mais mortos (idem, pág. 12). Igualmente os muros do cemitério foram derrubados para dar lugar às novas sepulturas. Assim o cemitério se mistura ao mundo dos vivos revelando a mesma relação entre os vivos e os mortos que há na Conservatória. “Observado do ar, o Cemitério Geral parece uma árvore deitada, enorme, com (...) uma frondosa copa em que a vida e a morte se confundem”. (ibidem, pág. 215). Assim, a exemplo da Conservatória, o Cemitério também é um grande labirinto, onde o fio de Ariadne são os carros-guia que lideram os cortejos. As tumbas mais antigas são tomadas pela vegetação, se desgastando tanto quanto os papéis amarelados dos mostos mais antigos da Conservatória. Até o prédio e o quadro de funcionários da Conservatória são praticamente iguais. Tamanhas semelhanças levam-nos a crer que o local de chegada da jornada não difere em nada do de partida. Então qual a validade de tal jornada, ou, para usar um clichê mais popular, qual o sentido da vida? “Nada no mundo tem sentido”, responde Saramago na página 274. “Não lhe faltam desconhecidos no ficheiro, mas faltam-lhe os motivos para escolher um deles” (Saramago, 1997, pág. 47-48). Não há motivo aparente para a busca do Sr. José, nem sentido no seu destino. A sua busca parece absurda, “mas já era tempo de fazer algo absurdo na vida” (idem, pág. 83), além disso, se desistisse da busca “sabia que não suportaria regressar aos gestos e aos pensamentos de sempre” (ibidem, pág. 48). O Sr. José cresce como herói, assim como o Jesus de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, durante a jornada. Ele escolhe o caminho mais tortuoso para encontrar a mulher desconhecida, não deseja que a sua busca termine rapidamente. Era “preferível o caminho mais longo e mais complicado”, lemos na página 190. E pouco mais adiante, na página 198, perguntado sobre o que faria quando encontrasse a mulher desconhecida o Sr. José responde: “nunca pensei nisso”. É a busca, apenas, que tem validade. É nela que reside o poder transformador da jornada. E essa transformação lança dúvidas ao Sr. José e a nós, que vivemos em um mundo de tantas transformações. “Amanhã será outro tempo, ou será ele outro num tempo igual a este (...) Depois disto, quem serei eu amanhã?” (Saramago, 1997, pág. 268). É no Cemitério que o Sr. José sofre a sua maior transformação, com o encontro com o pastor de ovelhas. Ele, o único a demonstrar respeito e atenção por um desconhecido, alterando os números das sepulturas dos suicidas. Ele que tenta recriar um mundo, onde os números não mais representam quem somos. Nesse novo mundo o Sr. José se encontra. Em sonho, nas páginas 245 e 246, ele se vê em meio a uma multidão de ovelhas — note-se aqui o coletivo “multidão” normalmente usado para pessoas, dedicado para ovelhas, no lugar de “rebanho”, como seria esperado — com números sobre as cabeças, que constantemente alternavam-se, refletindo a efemeridade da identidade, revelando quão inócuos são os números para quem não conhece as ovelhas. Ele ouve alguém falando “estou aqui, estou aqui” e quando, acorda é ele que está falando “estou aqui”. Isso leva uma leitura de que o Sr. José está finalmente se encontrando em sua busca, ou um grito desesperado de alguém que quer ter a sua identidade e sua individualidade reconhecidas. No sonho, quando o pastor de ovelhas se vai, leva apenas seu rebanho, deixando ao chão os números, reforçando a importância das ovelhas sobre os números, descartáveis, desnecessários. Revelando a importância do nome que temos sobre aquele que nos foi dado. Jogados ao chão os números formam uma espiral tendo o Sr. José como centro. A espiral é um símbolo cíclico que representa a vida e a morte, a continuidade e o infinito. No limite entre a vida e a morte está o Sr. José no Cemitério, da mesma forma que o Conservador Geral em sua mesa na Conservatória Geral. E entre a vida e a morte, sob a oliveira — árvore símbolo da paz, vida e longevidade — em conversa com o pastor de ovelhas o Sr. José diz “A morte é sagrada”, ao que o pastor retruca “a vida é que é sagrada, senhor auxiliar de escrita”. (Saramago, 1997, pág. 240). Ao retornar à Conservatória o Sr. José vai ao arquivo dos mortos para destruir a certidão de óbito da mulher desconhecida. Tudo parece voltar ao início, com a Conservatória como o centro do mundo novamente. Mas agora os vivos e os mortos estarão reunidos. Uma ressurreição apenas no papel, mesmo para a mulher desconhecida. Mas se o valor do papel é tão questionado, qual o valor dessa ressurreição? Mas não é a morte que é sagrada, e sim a vida. E ao contrário da morte da mulher desconhecida, a vida do Sr. José foi mudada. A verdadeira ressurreição foi a dele, que cruzou o Inferno, o Purgatório e o Paraíso para descobrir o próprio nome.

Referências

ALIGHIERE, Dante. A Divina Comédia. Porto Alegre. L&PM. 2004.

HALL, Stuart. Org. SOVIK, Liv. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte. Editora UFMG. 2003.

___________ e WOODWARD, Kathryn. Org. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis. Editora Vozes. 2004.

MARTINS, José Endoença. Writing short stories: a course on creative writing. Uniandrade: Curitiba, PR. Disponível em http://www.joseendoencamartins.pro.br. Acessado em 30 de janeiro de 2008.

SARAMAGO, José. Todos os Nomes. São Paulo. Companhia das Letras. 1997.

________________ Ensaio sobre a cegueira. São Paulo. Companhia das Letras. 1995.

________________ O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo. Companhia das Letras. 1991.

________________ O conto da Ilha Desconhecida. São Paulo. Companhia das Letras. 1998.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Edições de Ouro, Coleção Universidade.



[1] Writing short stories: a course on creative writing.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Espantalhos, pedras e poemas

O tipo impreciso sobre a capa vermelha revela um pouco o que se passa nas páginas de “De espantalhos e pedras também se faz um poema”. Impressas em linotipo, as páginas do último livro de Viegas Fernandes da Costa, ainda trazem as marcas dos golpes do metal sobre o papel. A textura, prenunciada na arte da capa, camufla-se no interior sob a tinta das letras de contornos imprecisos, às vezes fugidios, como que transbordando-se do poema.

Ao folhear “De espantalhos...” vê-se no verso das páginas que ficam para trás as marcas deixadas pelos poemas já lidos. O texto anterior emerge sob o posterior. Um texto que passa, mas que fica marcado.

As cerca de 60 páginas são divididas em três momentos.

O Livro das Pedras nos apresenta um breve jardim de medusa. Onde as pedras parecem guardam memórias, expressões. Gastas pelo tempo, lembram que “as pedras também não são eternas”. A unidade temática que o autor nega à obra, aqui se revela no tema das pedras, protagonistas dos cinco poemas. Com destaque para “A Pedra” — “A pedra no meio do rio, afronta / como pedra no meio do rio, / em silêncio, o tempo e as águas”. É possível ver surgir um diálogo entre este e “A garça sobre a pedra”

“Amanhã já não serei mais esta pedra...

E meus olhos já não terão mais para onde voar.

Amanhã serei memória, talvez

Ou os tantos grãos, pequenas pedras,

Lançadas na ampulheta”.

O diálogo entre a pedra silenciosa, austera e milenar que, solitária e inevitavelmente, deixa de ser pedra para tornar-se, mesmo ela, areia lançada da ampulheta, ao redor de outras tantas pedras. Parece que da sacada de onde olha o narrador do segundo poema, pode-se ver, sob a garça (ou além dela) a pedra do primeiro.

Espantalhos no Deserto abarca uma temática mais urbana, contestadora. Os golpes do tipo, marcando o papel, parafraseando os golpes do autor através dele. Notas para “Canto Guajira”, revelando uma América Latina onde “os condores dão lugar aos abutres, como no passado, as lhamas deram lugar aos cavalos dos deuses”. “Da noite os olhos homicidas”, ganha mais dimensão quando chegamos ao “Noite Urbana” (já em Ecos de Mim, último momento da obra). De novo vemos o olhar de um poema posterior cobrir o anterior. Pontuo ainda os poemas “Espantalhos no Deserto” e “Impressões do Vale” com suas formigas, por demais, zelosas.

Finalmente em Ecos de Mim o tom torna-se mais intimista. Ecos abre com “Itinerário” — “Conheci um Cristo / santo e crucificado / nas palavras dos evangelhos”. Destaca-se ainda o doído “Cântaro das minhas náuseas” — “carrego a desventura do sonho / como meu bem mais precioso (...) fecharam-se as portas das minhas igrejas / os meus santos, descobri-os de gesso”.

“De espantalhos e pedras também se faz um poema” é um livro que se lê rápido, mas que deve ser apreciado sem pressa. Como foi impresso. Para que as marcas que marcam o papel, possam melhor marcar o leitor. Um livro de folhear, de saltar páginas, de encontrar, ao meio de uma frase, uma troca de tipo ou uma serifa inesperada. Se o autor, em “Arqueologia da Memória” sonhava em quedar-se eterno na força do verbo, em “De espantalhos...” a força do verbo chega a marcar as páginas.