Sebastian deslizava entre as sombras dos oito graus de temperatura da noite parisiense. O vento gelado trazia o burburinho de uma Paris borbulhante como espumantes em taças de cristal, que logo mais brindariam o novo ano. O capote marrom grosseiro, protegia o corpo do frio enquanto as luvas sem ponta, de lã surrada, tentavam cobrir os dedos. Uma boina velha e acinzentada como a cidade cobria a cabeça e um cachecol xadrez escondia a barba de subúrbio francês. No escuro, por trás de arbustos ásperos como o olhar dos transeuntes com quem cruzava diariamente, agarrou-se à grade de ferro ornamentada com folhas e ramos de metal retorcido. Escalou sem dificuldade e lançou-se ao jardim bem cuidado. Encoberto pelas plantas, alcançou a janela aberta. Num salto, deixou para trás o frio e moribundo dezembro.
Lá dentro, um chama esquálida equilibrava-se no alto de um candelabro de prata ao lado da janela, iluminando o quarto feminino que abrigava a vanguarda da decoração do século XIX. O casaco de peles sobre uma cadeira, a tapeçaria rebuscada, os babados das cortinas, a grande penteadeira com o espelho emoldurado. Sebastian, destoando daquele quadro, não se preocupava em ser discreto. Àquelas horas, o quarto permaneceria vazio enquanto os salões de baile estariam lotados de damas e cavalheiros, música e risada, todos aguardando o último suspiro do ano moribundo, o último descendente do século XIX. Sobre a cama de cabeceira entalhada, a colcha delicada acolhia algumas almofadas. Sob uma delas, uma ponta de couro marrom espiava o intruso. Sebastian removeu a almofada revelando um pequeno volume de couro com as iniciais V.W. grafadas na capa. Uma rosa seca marcava uma das páginas. Com uma delicadeza que contrastava com os dedos rudes, o invasor removeu a rosa pousando-a com cuidado sobre uma das almofadas e abriu o pequeno caderno. No alto da página, a data revelava o dia anterior com um “30 de dezembro de 1900” na grafia delicada de mulher. Abaixo, a primeira frase destoava da delicadeza da grafia: “Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris”. A frase capturou o suburbano mais do que a prataria do quarto. Aproximou-se com o diário da vela e quedou-se curioso à leitura.
“Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris. Não foi de mazela no corpo que padeceu meu pai. Foi de uma ferida na alma, mal cicatrizada e cutucada. Ele que deu tanto a vocês. Que trouxe para cá aqueles olhos envolventes, a língua astuta. Ele que lhes mostrou a beleza, que lhes desvendou um novo mundo. E é assim que Paris retribui. Mas quem sou eu, não é? Agora não passo de uma mulher sem importância para vocês. Ah! Mas vocês já aplaudiram Uma mulher sem importância, não é? Cyril estava certo. Paris não o merecia. Nenhum de vocês. Chegará o dia em que vocês irão atrás dele. Mas quando o encontrarem, em alguma praça, vão receber de volta o mesmo olhar pétreo que dedicaram a ele nestes últimos anos. Mas dessa vez é ele quem os olhará de cima. Ah, Paris! Aproveite amanhã que amanhã é o último dia. O último suspiro de um século que já terminou há um mês. Pois foi há trinta dias que morreu o século XIX. E vocês, que amanhã estarão uivando em vestidos de baile pelo século que se vai, vão todos com ele. Todos vocês se vão. E você também se vai, Paris. E não há retrato que lhe impeça o envelhecer. E quando o século se for, meu pai vai lembrar de vocês e vai cantar feito rouxinol. Ele cantará enquanto todos vocês se forem. Vocês e o maldito Queensbery. Todos vocês que lhe roubaram a dignidade, a saúde, o próprio nome! Vocês que o enfurnaram num casebre. Numa cela! Ah, Paris. As suas vaidades de vapor e fumaça escondem as suas manipulações. O retrato não é de um homem. O retrato é seu, Paris. E estás presa a ele como a um cárcere. Um cárcere muito mais duradouro que Reading, um cárcere sem balada, sem canção. Ah, Paris. Meu pai disse que não existe livro moral ou amoral. Agora que ele se foi, eu percebo. É pena que o mesmo não valha para uma cidade. Já morreu o século XIX. E o seu retrato, Paris, foi rasgado.”
Sebastian recolocou a rosa com cuidado na página marcada. Escondeu novamente o caderno sob a almofada e dirigiu-se novamente à janela. Sentiu no rosto o vento frio soprar as últimas horas do século XIX, fazendo a chama quase despencar do candelabro de prata. Olhou a cidade além das grades. Os casacos de pele, os coches, a fumaça das piteiras. Ao longe o vapor de uma nova invenção que ele mal entendia soava barulhento. Olhou de longe a almofada que escondia o caderno, tornou a olhar para a cidade. Baixou os olhos e suspirou o ar frio com esforço. Soprou a chama que se agarrava ao pavio, tomou o candelabro partiu de volta à cidade.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
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2 comentários:
Acabei de postar esse lá no Duelo de Escritores. Como não tenho atualizado demais isso aqui, vou postar aqui tb. Não gostei do título, mas como o prazo está acabando, vai ficar assim mesmo.
Como eu já comentei no Duelo, achei o texto do diário fantástico. Mesmo assim, o que ganhou o meu voto nessa rodada foi a forma com que você descreveu, logo no inicio do conto, a jornada de Sebastian pelo frio da noite, em direção à casa. Me senti transportado para o local da cena.
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