quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A primeira pedra

Antes que o mundo acabe, atualizo isso aqui. O texto abaixo foi publicado originalmente no Jornal de Santa Catarina, do dia 14/12, em um caderno especial sobre as profecias de fim de mundo.

A primeira pedra

Não aconteceu, em nada, como ele estava esperando. Lá no alto da montanha, sentado sobre a pedra olhando o vale de cima, não viu nada demais. Não ouviu Wagner soando seu Tristão e Isolda, não houve chamas, não houve luzes. Não soaram clarins. Ouviu apenas o zumbido dos últimos insetos na moita, que o vento logo soprou para longe. Quente e denso. A última lufada. Com uma pedra apanhada do chão rabiscou sobre a rocha antes que fosse tarde demais: "Queria ter escrito um poema". Fechou os olhos pela última vez e ouviu o mundo silenciar. O vento não soprou, os insetos não zumbiram. Nada. Talvez esta fosse mesmo a forma mais apropriada. Pelos instantes que lhe restaram chegou a imaginar, naquele resto de mundo no qual se agarrava, o leito barrento do rio passando pelas capivaras. Sentiu-se frustrado por ter sido essa a sua derradeira lembrança. Tinha vivido tantas coisas, havia tanta gente que lhe era querida e era disso que se lembrara em sua última saudade? Não um amor, não um beijo, nenhuma aventura. Mas um rio barrento que volta e meia enchia, passando pelas capivaras lá distantes, no fundo do vale que ele não mais veria. O silêncio e a escuridão do último suspiro do mundo viriam acompanhadas pelo ruminar de uma capivara à beira do rio corrente. Cada mundo, chegou a pensar, termina como merece. Num ímpeto de coragem tardia abriu os olhos de repente. Fosse para preencher o último momento com uma imagem mais condizente, fosse para encarar, ao menos uma vez, o mundo de frente. Mas era tarde demais. O mundo havia acabado. Não havia nada que pudesse reconhecer. Estava acima de tudo, pairando sobre um vale que já não conhecia. Olhou intrigado ao redor como quem abre pela primeira vez os olhos. Numa rocha, a epígrafe de um novo mundo: "Queria ter escrito um poema".  Encontrou um caminho apertado por entre os galhos e desapareceu.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Tormenta


Escrito durante a última tempestade aqui na cidade, com o céu ribombando feito tambor, só pedindo por uma letra.


Tormenta

Urra trovão
Arranca  da terra o  torrão
Rasga o céu num clarão
Crava a luz nesse chão

Parte e deixa ruir!

'Ranca-torrão
Despenca e ilumina esse vão
Que separa as nuvens do chão
Risca da noite a escuridão

Risca uma rota
Um resto de rastro
Um  roto retrato
D'um rosto riscado
De um coração

Urra trovão
Abafa esse choro, trovão
Que espelha essa chuva, trovão
Que me trinca o coração.

Troveja, o raio caiu!

Agora me deixa chover...

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Tratado



O Tratado

Se há, de fato, um mal supremo senhor da danação dos homens, essa besta atende pelo nome de Lepisma saccharina. Se o leitor é, como posso supor, alguém que nutra algum terno sentimento pelos livros, deve nutrir o mesmo ódio que eu por essa aberração cuspida pelos nove infernos. Não há manhã de sol que sobreviva ao encontro com uma traça se esgueirando pelas paredes de casa. Não há alegria que não murche ao confronto com aquele casulinho pendurado na parede, de onde o verme se esgueira a caminho de hediondos atos de vandalismo.

Outro dia estava eu, repassando alguns volumes pelo simples prazer de correr os dedos sobre as lombadas perfiladas na estante quando, sem aviso, me deparo com aquele corpinho infernal se erguendo por sobre a coluna de um Dostoiévski garimpado em sebo. Olhei por sobre os livros e encontrei, no fundo da estante, vários outros casulos pendurados lá atrás. Crime e Castigo. Fui até a área de serviço e me enfiei embaixo do armário onde eu sabia que tinha guardado aquele pesticida provavelmente já vencido. Voltei ao quarto que me servia de biblioteca e escritório, fechei a porta como que para garantir que nenhuma vítima me escaparia e iniciei o ataque.

Era o meu Vietnam pessoal. Como se o Napalm cobrisse os inimigos entrincheirados. Praticamente podia ouvir os gritos de desespero, os casulos se precipitando, os pequenos demônios se contorcendo. Os olhos começaram-me a arder, não sei pelo efeito do levante químico ou pelo calor da batalha. Pela visão embaçada ainda pude ver pequenos amontados se reagrupando. Por trás de um Arte da Guerra bem surrado, uma coluna começou a avançar em minha direção. Alguns ainda nos casulos, jovens enviados à linha de frente, outros já mais experientes, com pernas várias, velozes, tenazes vorazes, com a experiência de parágrafos devorados e clássicos deglutidos.

Uma rajada dupla derrubou a vanguarda do levante, espalhando no ar o cheiro agressivo do químico. Junto ao som do spray, pareceu-me ouvir um pequeno guincho. Em um dos flancos da estante, sobre o Guerra e Paz, na ponta da lombada de capa dura e sobre o brilho dourado da borda das páginas, um traça velha e solitária abanava no ar as quatros perninhas dianteiras, as antenas balançando alvoroçadas, o corpo acinzentado um tanto levantado. Fui em sua direção com o dedo sobre o gatilho da lata, que gotejava veneno preparando um disparo fatal. Quando me aproximei encolheu-se, pude perceber o tremor percorrer cada gomo do corpo diminuto, as antenas elétricas. Quando viu que hesitei um momento, observando-a por entre a nuvem química que já pairava no ar do quarto fechado, me encarou de frente e tornou a arquear o corpo, elevando as patas dianteiras que, àquela distância, pareciam fazer um movimento para que me aproximasse. Talvez pelo inusitado da situação, mas o guinchar baixinho parecia mais audível, quase compreensível. Aproximei do rosto e pude perceber os movimentos débeis, praticamente ouvindo a tosse baixinha de um velho soldado que já combatera tempo demais. As patas finas claramente pediam minha aproximação. Colocando o ouvido próximo do inseto puder ouvir a vozinha estridente falhando. Até que aos poucos foi tornando-se inteligível, ainda que sumidoura. Um tratado. Dois generais cercados pelos corpos de seus homens: traças e livros, destroçados dos dois lados, perdas irreperáveis de um conflito que parecia não ter vencedor.

Podia sentir as gotículas do veneno vencido pairando ainda no ar com um cheiro nauseabundo, nublando-me os sentidos. No fundo da estante corpos caídos e feridos aguardando o desfecho daquele impasse. Mantinha-me irresoluto. Nenhuma traça tornaria, sob pena de uma descarga mortal da arma que ora portava, a tocar as quelíceras sobre uma página sequer daqueles volumes. Nem que para isso tivesse que descarregar uma ofensiva diretamente por sobre toda a coleção. Elas, no entanto, não tinham opção, tentava convencer-me o general. Restaria-lhes a morte, lenta, por inanição. A paz momentânea pendia por um fio mais fino que a página de um livro velho. Bastaria mais um furo apenas, um toco de celulose arrancado, que me precipitaria sobre insetos, livros, estante, até esvaziar a lata.

O inseto agitava as antenas, as patas tamborilavam nervosas sobre a lateral dourada das páginas. De repente parou. A velha traça paralizara-se. Foram as antenas que primeiramente voltaram a se mover. Devagar mas de forma precisa, como que sintonizando uma ideia que nascia ali. Celulose? Furos? Páginas? Pude perceber no ar inebriante a ansiedade no pouco que restara das falanges destroçadas. Era vibrante, ainda que débil. Parecia... esperança? Celulose, repetiu entre tosses. Não era por celulose que lutavam. Não eram as páginas ou a tinta nelas impressa que buscavam os insetos. Eram as palavras, apenas, que alimentavam aqueles corpos anelados. Palavras e nada mais. Por que insistam então sobre os livros? É lá que estavam as palavras, balbuciava a velha traça, as antenas agora lépidas no ar. Se houvesse uma maneira, se se descobrisse uma forma, deixariam de bom grado as páginas em paz para deglutir apenas as palavras. As frases, as histórias, as metáforas cultivadas a tanto a custo e guardadas por tantos anos e semeadas em tantos lugares. As palavras.

Estiquei a mão para o livro onde estava o general. Assustado, congelou no lugar. Passei para um volume mais distante, um pequeno Metamorfose ganho de uma amiga, anos atrás. Saquei o volume, abri na página determinada pelo marcador esquecido e comecei a ler em voz alta. Minha voz atingia a nuvem de veneno que pairava, criando espirais entre as gotículas suspensas. As traças se aproximaram das bordas, silenciosas mas trazendo um vibração quase frenética com elas. Foram surgindo dezenas de pares de antenas na beirada da estante, atentas a cada vocábulo, a cada imagem proferida, a cada parágrafo servido. O general, entre surpresa e alívio, juntou-se ao banquete. Empanturraram-se por umas três horas até que peguei no sono na cadeira, no quarto fechado tomado do cheiro entorpecente do inseticida que ainda inalava.

Despertei no dia seguinte com as costas doloridas pela posição desconfortável. O livro no colo aberto na última página lida. Conferi os livros na estante e não encontrei nenhum resquício do confronto. Sequer os corpos abatidos estavam lá. Os volumes não apresentavam nenhuma presença dos insetos. Ajuntei a lata de inseticida caída ao chão, sentido as costas reclamarem e a lembrança tentando ficar mais nítida, sem muito sucesso. Abri a porta e deixei o escritório. Sobre a mesa de trabalho, aberto, o livro ficou para trás. Tinha a impressão de que no dia seguinte continuaria a leitura.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Cativa




Cativa

Ei-la: minha quimera acorrentada.
Esfinge sobre a ponte, com as coleiras atadas a uma rocha.
Lá de baixo, o ruído do rio, que tão ligeiro corre, lhe abafa os ganidos.
Olha-me com meia-dúzia de receios brilhantes.
Cada olho, uma dúvida.
Não sabe se me aproximo para soltar-lhe, da rocha, os grilhões.
Ou se para empurrar a pedra ao abismo.

Tampouco o sei eu.


quarta-feira, 2 de maio de 2012

Dicionário de Personagens da Obra de José Saramago

Faz uns anos conheci a escritora e professora Salma Ferraz (já falei dela em outro post aqui no blog). Tive a oportunidade de colaborar com a última obra dela (com uns poucos verbetes apenas, verdade seja dita), o Dicionário de Personagens da Obra de José Saramago. O livro foi lançado pela EdiFurb em uma edição bacanuda e é uma boa dica para quem se interessa pelo Saramago ou quer estudar sua obra. Fica a dica, como dizem vez por outra nesses meios internéticos.

Obra de Salma Ferraz, lançada pela EdiFurb.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Homenagem ao Secretário

Singela homenagem ao nosso Secretário de Estado da Educação de Santa Catarina. Se alguém quiser musicar e/ou adaptar que faça bom uso.

Por que, Dudu?

O que 'cê foi fazer, Dudu?
Que me deixou na mão
Que me tirou o chão
O que 'cê foi fazer?
    Por quê?

O que 'cê foi fazer, Dudu?
Que me deixou sem piso
Que me deixou sem riso
O que é que eu vou dizer?
    Pra você entender?

O que 'cê foi fazer, Dudu?
Olha só o estado
Em que me deixou
(o estado)
Sem ter o que fazer
    Por quê?

Me deixou sem piso
Me deixou sem chão
Me deixou sem riso
Me deixou sem pão
Me deixou sem jeito
Me deixou sem pleito
Me deixou de graça
Me deixou sem graça
O que 'cê foi fazer!?

O que 'cê foi fazer, Dudu?
Ignorou a lei
Partiu o meu vintém
Por que foi se vender?
    Por quê?

O que 'cê foi fazer, Dudu?
Aliado a um ator
Que governa a dor
E promessa não mantém
    desdém

O que 'cê foi fazer, Dudu?

Q' me deixou sem piso
Me deixou sem chão
Me deixou sem riso
Me deixou sem pão
Me deixou sem jeito
Me deixou sem pleito
Me deixou de graça
Me deixou sem graça
O que 'cê foi fazer!?
O que 'cê foi fazer!?
O que 'cê foi fazer!?
O que 'cê foi fazer!?

O que 'cê foi fazer, Dudu?

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A Teia



A Teia

Ateia, tece
a teia.
E ateia,
à prece, o fogo.

Afaga o fogo.
Afoga o afago.

A presa,
presa,
à teia.

Ateia.
E deixa queimar.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Anjos de Barro


Anjos de Barro

As três figuras pálidas e esguias pareciam desconsoladas. Não que fosse possível ver-lhes as feições escondidas pelas máscaras de gás escuras. Sequer os olhos podiam ser vistos pelos vidros baços das escotilhas por onde supostamente deveriam enxergar. Sobre as bocas e narizes, as protuberâncias arredondadas das máscaras davam-lhes um aspecto entomológico — ao menos é o que havia dito a crítica na matéria do jornal local. Mas se as feições permaneciam ocultas, os corpos nus de pele levemente amarelada, como que desbotados, mostravam-se expressivamente lânguidos. Os membros longos pareciam carecer de força. Os traços delgados, tão frágeis quanto as figuras, numa mimese propositalmente débil das poses sacras do classicismo. Os sexos diminutos e impúberes como sem importância ou utilidade. Eram três as figuras. As duas masculinas à direita, de pé, de uma androgenia apenas quebrada pela exposição dos sexos. A da esquerda, quase ajoelhada, com a feminilidade apenas revelada pelo semidespertar das mamas ainda verdes, apontadas para fora do quadro. Eram altas, as figuras. Tinham nas extremidades do corpo um tom acinzentado de fuligem, sutil mas perceptível. Pregadas às costas curvadas, as asas finas suspendiam penas embaralhadas, sujas de um matiz amarelo-acinzentado, muitas caindo. A figura ajoelhada segurava algumas das penas na mão, como se as tivesse recolhido do chão, dando-lhes uma sepultura mais digna entre os dedos delicados. No solo alguns detritos e fuligem combinavam com o fundo cinzento de formas um tanto indefinidas. Fuligem, detritos e gases. A obra estava cercada por um passepartout branco e largo somado a uma moldura da mesma brancura minimalista, enquanto o vidro antireflexo lhe protegida das luzes altas da galeria. Abaixo dela, na parede branca, um papel cartão de dez centímetros de comprimento trazia em letras negras: “Anjos de Fukushima — Ariel Ângelo (2011)”

No recorte de jornal de mais de um ano atrás, nem todos esses detalhes podiam ser vistos com clareza. Mas estavam-lhe pintados na memória como se fossem uma têmpera milenar. Podia lembrar-se, inclusive, de várias das pinceladas. As mais significativas, as mais difíceis, as mais surpreendentes. Agora estava distante da galeria. Das matérias todas lhe restara apenas esse recorte fisgado no quadro de cortiça pendurado na parede.

Olhou distante o cavalete coberto pelo lençol claro e velho. Agora ele se encontrava mais ao centro da sala. No dia anterior havia sido retirado do canto onde estava para um lugar onde fosse visto por ele com mais frequência. Era mais uma tentativa. Quem sabe amanhã.

Acordou no dia seguinte mais disposto. O sol da manhã banhava a casinha de madeira no meio do mato, filtrado por árvores altas que desprendiam no vento folhas secas e um aroma fresco. O assoalho de madeira rangia baixinho, como se quisesse acordar alguém bem aos poucos, sem sustos. A chaleira despertou com um chiado e o café dentro do coador de pano foi banhado, retribuindo o cheiro das árvores com um perfume animador. O som dos pássaros entrou voando pela janela aberta, pintando rodamoinhos na fumaça branca do café.

Ângelo mirava por sobre a borda da caneca o lençol sob o qual o cavalete ainda dormia preguiçoso. Saiu da pequena cozinha deixando o forno à lenha crepitando umas poucas varetas. Caminhou pela sala, passou pelo cavalete como quem não quer nada e, com um gesto rápido, sacou-lhe o lençol descobrindo a tela vazia. Sem sequer olhá-la de relance, continuou seu caminho, caneca em punho, porta a fora.

O orvalho estava praticamente seco. A rodovia secundária que passava em frente à casa se perdia silenciosa na paisagem que revelava lagos ao longe, algumas plantações, uma floresta mais afastada e uma ou outra casinha aqui e ali. Junto à cerca, as flores se refestelavam ao sol macio da manhã. Estavam tão bem nutridas quanto ele. Bem podadas, regadas, adubadas. Era dia, inclusive, da aplicação do adubo. Ficou satisfeito com a lembrança. Seu Telúrio era um bom sujeito. Prepararia o mate que ele tanto gostava, trocariam uns causos e umas baforadas no fim da tarde. Seria um bom e calmo dia.

Uns quarenta minutos depois retornou à casa. Cruzou a porta e passou novamente pela tela. Desta vez parou. Por muito tempo não estivera ali. Virou-se devagar e encarou a tela branca. Procurou alguma coisa no fundo da xícara suja de resto de café. Devagar, como que para não afungentar um pássaro que canta num galho próximo mas que mal se enxerga, pegou o primeiro pincel ao alcance. Com o mesmo cuidado foi mergulhando-o na xícara, evitando tocar-lhe as beiradas. Deixou as cerdas descansarem no resto do líquido. Tirou o pincel com a atenção de um cirurgião e levou-o em direção à tela. Uma gota se agarrando às cerdas feito um ovo negro pronto a eclodir.

Triiiiiiiiiiimm!

O telefone tocou estridente. Um susto, o tremer da mão, a gota de café se espatifando no chão de madeira. A raiva. O pássaro voara. A frustração. Triiiiiiiiiiimm! Um suspiro longo antes de pousar o pincel inerte na base do cavalete. Triiiiiiiiiiimm! Correu até a pia e largou a xícara suja. Triiiiiiiiiiimm! Com passos pesados retornou à sala para calar o aparelho. Triiii — "Quem é?"

Era o agente. Queria saber como iam as coisas. Sim, sim, iam bem. Como estava o clima? Estava bom, agradável. Não-sei-quem estava com uma exposição em algum lugar, talvez quisesse dar uma olhada. Sim, sim, parecia interessante. Que bom.

Era evidente que ele estava circundando. Queria evitar uma pergunta direta, mas não sabia como. Não seria Ângelo que lhe daria a deixa. Logo o silêncio inevitável se instalou. Sem outra saída, o agente fez a pergunta, da forma mais vaga e menos agressiva que podia: "E você, conseguindo alguma coisa?"

— Alguma coisa. Bem no começo ainda, mas acho que já é alguma coisa.

Mentiu. Talvez o agente até soubesse mas isso não importava.

— Que bom. O refúgio aí no meio do mato está dando resultado, pelo visto.

A ideia havia sido dele. Coisa de agente.

— Pelo visto.

Não era uma má ideia, o lugar era até agradável. E foi bom estar sozinho, pelo menos.

— Bom, fico feliz. Vou deixar você trabalhar. Se tiver novidades ou precisar de alguma coisa, é só ligar.

Ficaram assim combinados. A tela branca no cavalete ouvira toda a conversa. Ele a olhou enquanto colocava o telefone no gancho. Aproximou-se, encarou-lhe a brancura. Mirou o pincel adormecido e saiu novamente deixando a porta da frente bater. No chão, a gota preta foi se infiltrando na madeira, se agarrando às ranhuras e se instalou entre os veios.

Horas mais tarde estava novamente frente à tela. Na mesa de apoio que puxou para perto do cavalete, a paleta permanecia inerte, mas já abrigava dois pequenos montes de tinta, ainda intocados. Os tubos recém abertos deitados ao lado. Com o pincel brincou com as cores na própria paleta. Apenas revolvendo a tinta como se averiguando a textura. Não tinha pressa. O som de um motor velho se fez ouvir à distância. De vez em quando uns estouros, e lá vinha ele, solavancando pela estrada como se acometido por um acesso de tosse. Ângelo sorriu para si. Tomou a paleta nas mãos mas continuou brincando com a tinta, olhando a tela e ouvindo o som se aproximar.

Dois estouros altos indicaram que a tobata velha dobrara a esquina da entrada do terreno e passara a porteira deixada aberta. O barulho estava bem perto, quase na porta da frente. Esperou até ouvir o último estouro e o motor silenciar. Pousou a paleta e o pincel novamente na mesa de apoio, foi ao fogão para atirar mais um pedaço de lenha ao fogo e saiu pela porta se sentindo mais leve.

"'Taaaaarde!" O cumprimento veio arrastado logo depois de uma cusparada no chão, e seguido de um sorriso de dentes amarelados e um acenar do chapéu de palha de abas largas. Ângelo se recostou no batente da porta e acenou de volta com um sorriso enquanto o velho apeava da tobata que trazia, à reboque, as sacas de adubo.

Era quase fim da tarde mas o sol permanecia forte. A pele tisnada e sulcada do velho brilhava com um suor que não escorria.

— Boa tarde, Seu Telúrio.

— Tá bão, Seu Ariel?

— Tudo bem. E com o senhor?

— Com a graça de deus. Trouxe as titica pras suas flor.

— E fica pra um mate?

— Se o senhor não deixar a água ferver dessa vez, eu fico.

Chaleira no fogo, Ângelo arrumava a erva com os dedos dentro da cuia enquanto o velho Telúrio enrolava outro tanto dentro de um cartucho de palha de milho, fitando meio curioso a tela ainda branca na sala. Com a chegada do anfitrião — cuia numa mão, garrafa térmica na outra — o velho disparou, depois de certificar a firmeza do cigarro recém-montado:

— Inda não conseguiu começar, né?

— Ainda não. É mais difícil do que parece.

— Deve de ser. O senhor tá há um tempão aqui e continua tudo numa brancura só.

A conversa continuou na varanda do lado de fora da casa. A água fazendo a cuia soltar baforadas brancas daqui, o fogo fazendo o palheiro soltar baforadas brancas de lá.

— O senhor tem razão, Seu Telúrio. Estou há um tempão aqui, né?

— Logo, logo volta o verão e isso aqui vai ficar quente de secar bosta outra vez. O senhor lembra como tava o clima quando chegou aqui?

— É verdade. Era inverno, um frio danado. O capim amanhecia todo branco.

— Agora tá verde — o velho soprou uma nuvem branca como para comparar as cores.

Ângelo suspirou um riso, tornou a encher a cuia e passou para o velho Telúrio.

— Ainda bem que a cabana já era climatizada. Tenho que lembrar de agradecer ao Hermes.

— Ele que mandou o senhor pra cá?

— É. Ele que deu a ideia. Disse que ia ser bom para espairecer. Só não disse que era tão frio no inverno. Não sei como o senhor aguenta.

— Ora, como todo mundo! — respondeu o vendedor de titica, passando o palheiro fumegante.

— Mas o senhor não sente frio, não?

— Sinto, sim, senhor. No inverno eu sinto frio. Quando tá quente eu sinto calor. Quando tem brisa, eu sinto o vento.

— Eu não... — e ficou um tempo olhando a fumaça que lhe saía dos lábios num cone nevoento — Frio ou quente, eu não sinto a menor diferença ali dentro. É como se estivesse sempre tudo igual.

— Quando a gente tá num lugar assim, só sente alguma coisa mesmo quando sai de casa.

— Pode ser, Seu Telúrio, pode ser.

— Inté porque, se o senhor tá procurando alguma coisa nova, de que adianta procurar no mesmo lugar de sempre?

— Mas eu não estou aqui desde o inverno? Não vim para um lugar diferente? Até agora não me pintou uma só ideia nova que preste, só merda!

— E o que tem de mais nisso? — Cuspiu no chão e devolveu a cuia.

Ângelo atirou o toco final do palheiro acabado no capim e tornou a encher o recipiente. O velho continuou:

— Se é só isso que o senhor tem até agora, tem que fazer brotar alguma coisa disso. Eu também já tava numa situação que só tinha me sobrado duas galinha poedeira e um quintal cheio de titica. Pois não tô eu aqui vendendo titica pro senhor e pra mais uma porção de gente? Os seus canteiro não tão mais bonito por causa dessa titica toda?

— O canteiro até está mais bonito com a titica, Seu Telúrio. Mas se a gente mexer com ela, vai feder.

— Mas se não mexer, vai secar. E daí não adianta nada. Só se mexer é que vai nascer alguma coisa. No final das conta, se não feder, não floresce nada.

Terminaram a conversa falando da aplicação do adubo nos canteiros, dos cuidados de poda e do controle de pragas. Seu Telúrio ficara de trazer algumas de suas galinhas temporariamente para que se alimentassem das pragas e de quebra já produzissem titica para que o canteiro florescesse. Assim, dividindo conversas de esterco, pétalas e beleza, assistiram a tela branca das nuvens ganhar as pinceladas rosadas do poente.

A garrafa térmica ficou leve, o sol ficou baixo e a tobata tornou a soar já no início da noite. O som do motor foi sumindo estrada abaixo, deixando no ar apenas o cheiro do adubo nos canteiros.

Meses depois, longe dali, não fazia nem frio nem calor. A brisa constante do ar condicionado mantinha o ambiente de paredes brancas a constantes vinte e dois graus. A tobata não mais se ouvia. No seu lugar um burburinho de gente falando. No lugar do mate dividido na bomba, taças de cristal e um espumante indicado por Hermes. No lugar dos canteiros floridos, eram admiradas telas nas paredes por pessoas com expressões compenetradas. No dia seguinte os jornais enalteceriam a nova exposição de Ariel Ângelo, destacando o contraste com seu último trabalho. Em "Anjos de Barro" o autor se distanciava do seu universo pós-apocalíptico e retornava a origens mais orgânicas. Os tons terrosos suplantando o cinza-amarelado de seus trabalhos anteriores. Os anjos buscavam um retorno à essência, diriam. No canto da sala, o pintor apreciava a paisagem. Rostos sorridentes, enfadados, admiradores, amigos, alguns empolgados outros mantendo uma presença protocolar. Notou com curiosidade a filha de um casal amigo, que olhava um dos anjos com perplexidade. Se afastava e se aproximava do quadro com um olhar curioso. Olhou a obra de frente, mirou de lado. Foi se aproximando da tela. O rosto levemente inclinado para cima, bem próximo das pinceladas. Ângelo riu quando a viu contorcer de repente o nariz e afastar-se rápido, com uma careta, olhando o anjo de tons terrosos perplexa. Imaginou se os jornais relatariam também, no dia seguinte, o aroma peculiar dos Anjos de Barro.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ilustra #1 - Passo a passo

Como prometido, aí vai o passo a passo da ilustra abaixo. Quem tiver umas dicas para melhor o processo, sou todo ouvidos. Como sempre, se clicar na imagem amplia. Daí, se clicar com o botão direito e em exibir imagem, dá pra ampliar ainda mais. No post de baixo tb.

Passo a passo


1. Um rough mais solto do traço, determinando as proporções e uma ideia geral da ilustra. Aqui eu dei uma roubada no jogo. Tenho ainda um problema com as proporções e, apesar de ter feito com uma foto referência pra posição, tiver que fazer umas correções colocando o traçado sobre a foto (é, eu sei). Mas em breve quero ver se rola sem precisar desse "redesenhar" sobre a imagem, mas fazer só no olho.
2. Blocando a "cor" (ainda que em PB), pra começar a dar volume.
3. Blocos de cor determinados, começo a dar as primeiras marcações de luz e sombra, desenvolvendo os volumes básicos (value, dizem os gringos). Já comecei as marcações das feições e a desenvolver um pouco mais o nariz.
4.  Boca.
5. Região dos olhos.
6. Acertando o rosto e o começando o pescoço. Aqui dá pra ver que eu tentei dar uma variada no traço, assumindo mais uma pincelada um pouco marcada. Mais adiante abandono a linguagem mantendo um mesmo estilo de acabamento em toda a ilustra. Até gosto do traçado, mas misturar ele com o acabamento mais suave ficou estranho demais.
7.  Definindo os valores do restante do corpo, trazendo o braço mais ao primeiro plano e detalhando os seios (u-lalá!)
8. Trabalhando os detalhes do cabelo. Aqui usei um pincel texturizado pra evitar ficar fazendo fio por fio. Com esse pincel criei os detalhes principais e o sentido em corriam as mechas. Depois, com um pincel mais simples me ative aos detalhes finos e fios mais soltos. Alternando os valores foram criadas as sombras mais profundas e as luzes.
9. A cor propriamente dita (com um fundo abstrato só pra dar um clima). Como os valores já estava definidos, a base da cor não foi muito complicada (variando o pincel em opacidade, e modos como color, overlay etc).
10. Refinamento da cor com uma camada extra de sombra (em multiply, se não me engano. ou algo parecido) e uma de brilho (em screen ou algo parecido).

Fui trabalho um pouco em partes usando quick masks pra isolar áreas pra agilizar o preenchimentoe proteção de áreas que eu não queria atingir. Mas pelo visto isso acabou atrapalhando um pouco o meu acabamento das "arestas" que não ficaram tão suaves como eu pretendia (dá pra ver no contorno do rosto, que ficou um meio impreciso, por exemplo).

E é isso. Agora é praticar pra melhorar. Se vc tiver alguma dica, mandaê!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Ilustra #1


Primeira tentativa de ilustração com a Wacom no Photoshop. Demorou muito mais do que o esperado, mas saiu.  Assim que der eu posto um passo-a-passo com os estágios, do rough ao final. Não só pra mostrar como foi feita, mas pra expor o processo na esperança que alguém aí possa dar umas dicas tanto qto ao processo como qto ao resultado.