terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Tratado



O Tratado

Se há, de fato, um mal supremo senhor da danação dos homens, essa besta atende pelo nome de Lepisma saccharina. Se o leitor é, como posso supor, alguém que nutra algum terno sentimento pelos livros, deve nutrir o mesmo ódio que eu por essa aberração cuspida pelos nove infernos. Não há manhã de sol que sobreviva ao encontro com uma traça se esgueirando pelas paredes de casa. Não há alegria que não murche ao confronto com aquele casulinho pendurado na parede, de onde o verme se esgueira a caminho de hediondos atos de vandalismo.

Outro dia estava eu, repassando alguns volumes pelo simples prazer de correr os dedos sobre as lombadas perfiladas na estante quando, sem aviso, me deparo com aquele corpinho infernal se erguendo por sobre a coluna de um Dostoiévski garimpado em sebo. Olhei por sobre os livros e encontrei, no fundo da estante, vários outros casulos pendurados lá atrás. Crime e Castigo. Fui até a área de serviço e me enfiei embaixo do armário onde eu sabia que tinha guardado aquele pesticida provavelmente já vencido. Voltei ao quarto que me servia de biblioteca e escritório, fechei a porta como que para garantir que nenhuma vítima me escaparia e iniciei o ataque.

Era o meu Vietnam pessoal. Como se o Napalm cobrisse os inimigos entrincheirados. Praticamente podia ouvir os gritos de desespero, os casulos se precipitando, os pequenos demônios se contorcendo. Os olhos começaram-me a arder, não sei pelo efeito do levante químico ou pelo calor da batalha. Pela visão embaçada ainda pude ver pequenos amontados se reagrupando. Por trás de um Arte da Guerra bem surrado, uma coluna começou a avançar em minha direção. Alguns ainda nos casulos, jovens enviados à linha de frente, outros já mais experientes, com pernas várias, velozes, tenazes vorazes, com a experiência de parágrafos devorados e clássicos deglutidos.

Uma rajada dupla derrubou a vanguarda do levante, espalhando no ar o cheiro agressivo do químico. Junto ao som do spray, pareceu-me ouvir um pequeno guincho. Em um dos flancos da estante, sobre o Guerra e Paz, na ponta da lombada de capa dura e sobre o brilho dourado da borda das páginas, um traça velha e solitária abanava no ar as quatros perninhas dianteiras, as antenas balançando alvoroçadas, o corpo acinzentado um tanto levantado. Fui em sua direção com o dedo sobre o gatilho da lata, que gotejava veneno preparando um disparo fatal. Quando me aproximei encolheu-se, pude perceber o tremor percorrer cada gomo do corpo diminuto, as antenas elétricas. Quando viu que hesitei um momento, observando-a por entre a nuvem química que já pairava no ar do quarto fechado, me encarou de frente e tornou a arquear o corpo, elevando as patas dianteiras que, àquela distância, pareciam fazer um movimento para que me aproximasse. Talvez pelo inusitado da situação, mas o guinchar baixinho parecia mais audível, quase compreensível. Aproximei do rosto e pude perceber os movimentos débeis, praticamente ouvindo a tosse baixinha de um velho soldado que já combatera tempo demais. As patas finas claramente pediam minha aproximação. Colocando o ouvido próximo do inseto puder ouvir a vozinha estridente falhando. Até que aos poucos foi tornando-se inteligível, ainda que sumidoura. Um tratado. Dois generais cercados pelos corpos de seus homens: traças e livros, destroçados dos dois lados, perdas irreperáveis de um conflito que parecia não ter vencedor.

Podia sentir as gotículas do veneno vencido pairando ainda no ar com um cheiro nauseabundo, nublando-me os sentidos. No fundo da estante corpos caídos e feridos aguardando o desfecho daquele impasse. Mantinha-me irresoluto. Nenhuma traça tornaria, sob pena de uma descarga mortal da arma que ora portava, a tocar as quelíceras sobre uma página sequer daqueles volumes. Nem que para isso tivesse que descarregar uma ofensiva diretamente por sobre toda a coleção. Elas, no entanto, não tinham opção, tentava convencer-me o general. Restaria-lhes a morte, lenta, por inanição. A paz momentânea pendia por um fio mais fino que a página de um livro velho. Bastaria mais um furo apenas, um toco de celulose arrancado, que me precipitaria sobre insetos, livros, estante, até esvaziar a lata.

O inseto agitava as antenas, as patas tamborilavam nervosas sobre a lateral dourada das páginas. De repente parou. A velha traça paralizara-se. Foram as antenas que primeiramente voltaram a se mover. Devagar mas de forma precisa, como que sintonizando uma ideia que nascia ali. Celulose? Furos? Páginas? Pude perceber no ar inebriante a ansiedade no pouco que restara das falanges destroçadas. Era vibrante, ainda que débil. Parecia... esperança? Celulose, repetiu entre tosses. Não era por celulose que lutavam. Não eram as páginas ou a tinta nelas impressa que buscavam os insetos. Eram as palavras, apenas, que alimentavam aqueles corpos anelados. Palavras e nada mais. Por que insistam então sobre os livros? É lá que estavam as palavras, balbuciava a velha traça, as antenas agora lépidas no ar. Se houvesse uma maneira, se se descobrisse uma forma, deixariam de bom grado as páginas em paz para deglutir apenas as palavras. As frases, as histórias, as metáforas cultivadas a tanto a custo e guardadas por tantos anos e semeadas em tantos lugares. As palavras.

Estiquei a mão para o livro onde estava o general. Assustado, congelou no lugar. Passei para um volume mais distante, um pequeno Metamorfose ganho de uma amiga, anos atrás. Saquei o volume, abri na página determinada pelo marcador esquecido e comecei a ler em voz alta. Minha voz atingia a nuvem de veneno que pairava, criando espirais entre as gotículas suspensas. As traças se aproximaram das bordas, silenciosas mas trazendo um vibração quase frenética com elas. Foram surgindo dezenas de pares de antenas na beirada da estante, atentas a cada vocábulo, a cada imagem proferida, a cada parágrafo servido. O general, entre surpresa e alívio, juntou-se ao banquete. Empanturraram-se por umas três horas até que peguei no sono na cadeira, no quarto fechado tomado do cheiro entorpecente do inseticida que ainda inalava.

Despertei no dia seguinte com as costas doloridas pela posição desconfortável. O livro no colo aberto na última página lida. Conferi os livros na estante e não encontrei nenhum resquício do confronto. Sequer os corpos abatidos estavam lá. Os volumes não apresentavam nenhuma presença dos insetos. Ajuntei a lata de inseticida caída ao chão, sentido as costas reclamarem e a lembrança tentando ficar mais nítida, sem muito sucesso. Abri a porta e deixei o escritório. Sobre a mesa de trabalho, aberto, o livro ficou para trás. Tinha a impressão de que no dia seguinte continuaria a leitura.

3 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

Abandonei este texto já faz tempo, mas estava jogado numa pasta do Docs. Deixo por aqui pra quem sabe liberar espaço pra um outro na cabeça, esperemos mais interessante.

FábioRicardo disse...

acho que usasse pesticida demais.

Muito bom, bom mesmo.

Luzia disse...

Poxa, era esse o texto que você me falava, adorei, dá para sentir a respiração da traça! Pensei o tempo todo em Metamorfose, e tbm em Firmin.
"alimentar-se de palavras" é sempre uma ótima metáfora!