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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

O som da goiaba


O som da goiaba

Image: Sounds of Saxophone, by Vakho Kakulia 2010.

Não havia muito que eu chegara em casa do trabalho, quando algo bateu de repente no vidro da sacada. Breve, quase a ponto de não ser percebido. Mas o som foi suficiente para me chamar a atenção. Abri a porta de correr e ela estava ali, recém caída no chão, ainda se debatendo. Não reconheci com certeza, mas acho que era um dó.

Quando me agachei para recolhê-la um som breve soou e algo me atingiu de leve as costas. Virei-me para encontrar o que, acredito, era um lá. E lá de baixo ouvi mais uma vez o som polido do ronronar de um gato de metal. Espiei sacada abaixo e, sob a goiabeira da calçada no outro lado da rua, escondido da luz amarelada do poste, o som embalava a árvore vibrando-lhe de leve as folhas na cadência de um jazz lento improvisado. Aqui e ali escapavam umas notas por entre as galhadas, que iam cair nas sacadas dos apartamentos mais baixos, com cheiro de goiaba e som de noites de New Orleans. Com os cotovelos apoiados no batente da sacada deixei o olhar perder-se nas folhas pintadas de amarelo sob o céu que escurecia, tentando perscrutar sob os galhos o ronco melodioso do saxofone. O vento assobiou e uma folha rodopiou na calçada, dançando para o poste cuja luz arrancava faíscas douradas por entre os galhos, feito veios de ouro entre flores de goiaba.

Um carro se aproximou e parou junto ao passeio, sob o poste que servia de ribalta. A música cessou e uma garota loira toda de preto surgiu por sob as folhas da árvore. Trazia à cabeça um gorro preto à francesa, tombado de lado feito uma nota em bemol. Ao pescoço, por sob as melenas loiras, um cachecol cor-de-goiaba-madura disputava com o saxofone dourado o protagonismo de cor. A garota desapareceu no carro, que sumiu na curva do fim da rua, deixando a goiabeira silente, uma calçada vazia e uma folha inerte no chão.

Quanto a mim, herdei apenas um resto de noite embalado pelos ruídos ásperos da cidade e o par de notas que guardei como lembrança da saxofonista do cachecol cor-de-goiaba.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Um Minuto para o Cárcere


Um Minuto para o Cárcere

Três e trinta e dois da madrugada de três de março. O relógio na parede havia parado no momento exato em que o projétil de zero ponto trinta e oito polegadas lhe varara a face entre os ponteiros e se instalara entre as engrenagens por trás do mostrador de números romanos. Ávila olhava o instrumento iluminado pela única nesga de luar que driblava as cortinas pesadas. O facho pálido de luz envolvia os ponteiros com uma aura quase mágica. Três e trinta e dois, de três de março. Três do três. Não resistiu a tornar o momento mais auspicioso. Com o dedo adiantou o ponteiro maior em um minuto. Agora sim: três do três, às três e trinta e três. Satisfeito, guardou no bolso interno da jaqueta o revólver e saiu sem deixar vestígios e, como únicas testemunhas, o relógio varado na parede e o cadáver atrás de si que também guardava, no peito, outro projétil calibre trinta e oito.

Duas semanas depois, o relógio marcava no mostrador digital ao lado da cama um horário sem graça: vinte e duas e cinquenta e sete. Ávila, sonolento, não chegou a lhe dar atenção. Foi o som da porta do quarto arrombada que o despertou a tempo de ver a luz de uma lanterna tática apontada para o rosto a ofuscar-lhe a visão. Quando os olhos se acostumaram ao novo ambiente e o sono lhe abandonara por completo pode divisar os canos das armas apontadas para si, as balacravas negras e os conhecidos coletes balísticos onde lia “polícia civil” em letras brancas.

Agora, na cadeira de réu, ouvia o promotor público recriar o serviço executado em uma versão aproximada. Achou irônico o fato de ter sido condenado a tanto tempo por causa de um minuto. De um auspicioso minuto que deixara sua digital entre os ponteiros de um relógio de parede transpassado por um projétil, às três e trinta e dois da madrugada de três de março.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Anjos de Barro


Anjos de Barro

As três figuras pálidas e esguias pareciam desconsoladas. Não que fosse possível ver-lhes as feições escondidas pelas máscaras de gás escuras. Sequer os olhos podiam ser vistos pelos vidros baços das escotilhas por onde supostamente deveriam enxergar. Sobre as bocas e narizes, as protuberâncias arredondadas das máscaras davam-lhes um aspecto entomológico — ao menos é o que havia dito a crítica na matéria do jornal local. Mas se as feições permaneciam ocultas, os corpos nus de pele levemente amarelada, como que desbotados, mostravam-se expressivamente lânguidos. Os membros longos pareciam carecer de força. Os traços delgados, tão frágeis quanto as figuras, numa mimese propositalmente débil das poses sacras do classicismo. Os sexos diminutos e impúberes como sem importância ou utilidade. Eram três as figuras. As duas masculinas à direita, de pé, de uma androgenia apenas quebrada pela exposição dos sexos. A da esquerda, quase ajoelhada, com a feminilidade apenas revelada pelo semidespertar das mamas ainda verdes, apontadas para fora do quadro. Eram altas, as figuras. Tinham nas extremidades do corpo um tom acinzentado de fuligem, sutil mas perceptível. Pregadas às costas curvadas, as asas finas suspendiam penas embaralhadas, sujas de um matiz amarelo-acinzentado, muitas caindo. A figura ajoelhada segurava algumas das penas na mão, como se as tivesse recolhido do chão, dando-lhes uma sepultura mais digna entre os dedos delicados. No solo alguns detritos e fuligem combinavam com o fundo cinzento de formas um tanto indefinidas. Fuligem, detritos e gases. A obra estava cercada por um passepartout branco e largo somado a uma moldura da mesma brancura minimalista, enquanto o vidro antireflexo lhe protegida das luzes altas da galeria. Abaixo dela, na parede branca, um papel cartão de dez centímetros de comprimento trazia em letras negras: “Anjos de Fukushima — Ariel Ângelo (2011)”

No recorte de jornal de mais de um ano atrás, nem todos esses detalhes podiam ser vistos com clareza. Mas estavam-lhe pintados na memória como se fossem uma têmpera milenar. Podia lembrar-se, inclusive, de várias das pinceladas. As mais significativas, as mais difíceis, as mais surpreendentes. Agora estava distante da galeria. Das matérias todas lhe restara apenas esse recorte fisgado no quadro de cortiça pendurado na parede.

Olhou distante o cavalete coberto pelo lençol claro e velho. Agora ele se encontrava mais ao centro da sala. No dia anterior havia sido retirado do canto onde estava para um lugar onde fosse visto por ele com mais frequência. Era mais uma tentativa. Quem sabe amanhã.

Acordou no dia seguinte mais disposto. O sol da manhã banhava a casinha de madeira no meio do mato, filtrado por árvores altas que desprendiam no vento folhas secas e um aroma fresco. O assoalho de madeira rangia baixinho, como se quisesse acordar alguém bem aos poucos, sem sustos. A chaleira despertou com um chiado e o café dentro do coador de pano foi banhado, retribuindo o cheiro das árvores com um perfume animador. O som dos pássaros entrou voando pela janela aberta, pintando rodamoinhos na fumaça branca do café.

Ângelo mirava por sobre a borda da caneca o lençol sob o qual o cavalete ainda dormia preguiçoso. Saiu da pequena cozinha deixando o forno à lenha crepitando umas poucas varetas. Caminhou pela sala, passou pelo cavalete como quem não quer nada e, com um gesto rápido, sacou-lhe o lençol descobrindo a tela vazia. Sem sequer olhá-la de relance, continuou seu caminho, caneca em punho, porta a fora.

O orvalho estava praticamente seco. A rodovia secundária que passava em frente à casa se perdia silenciosa na paisagem que revelava lagos ao longe, algumas plantações, uma floresta mais afastada e uma ou outra casinha aqui e ali. Junto à cerca, as flores se refestelavam ao sol macio da manhã. Estavam tão bem nutridas quanto ele. Bem podadas, regadas, adubadas. Era dia, inclusive, da aplicação do adubo. Ficou satisfeito com a lembrança. Seu Telúrio era um bom sujeito. Prepararia o mate que ele tanto gostava, trocariam uns causos e umas baforadas no fim da tarde. Seria um bom e calmo dia.

Uns quarenta minutos depois retornou à casa. Cruzou a porta e passou novamente pela tela. Desta vez parou. Por muito tempo não estivera ali. Virou-se devagar e encarou a tela branca. Procurou alguma coisa no fundo da xícara suja de resto de café. Devagar, como que para não afungentar um pássaro que canta num galho próximo mas que mal se enxerga, pegou o primeiro pincel ao alcance. Com o mesmo cuidado foi mergulhando-o na xícara, evitando tocar-lhe as beiradas. Deixou as cerdas descansarem no resto do líquido. Tirou o pincel com a atenção de um cirurgião e levou-o em direção à tela. Uma gota se agarrando às cerdas feito um ovo negro pronto a eclodir.

Triiiiiiiiiiimm!

O telefone tocou estridente. Um susto, o tremer da mão, a gota de café se espatifando no chão de madeira. A raiva. O pássaro voara. A frustração. Triiiiiiiiiiimm! Um suspiro longo antes de pousar o pincel inerte na base do cavalete. Triiiiiiiiiiimm! Correu até a pia e largou a xícara suja. Triiiiiiiiiiimm! Com passos pesados retornou à sala para calar o aparelho. Triiii — "Quem é?"

Era o agente. Queria saber como iam as coisas. Sim, sim, iam bem. Como estava o clima? Estava bom, agradável. Não-sei-quem estava com uma exposição em algum lugar, talvez quisesse dar uma olhada. Sim, sim, parecia interessante. Que bom.

Era evidente que ele estava circundando. Queria evitar uma pergunta direta, mas não sabia como. Não seria Ângelo que lhe daria a deixa. Logo o silêncio inevitável se instalou. Sem outra saída, o agente fez a pergunta, da forma mais vaga e menos agressiva que podia: "E você, conseguindo alguma coisa?"

— Alguma coisa. Bem no começo ainda, mas acho que já é alguma coisa.

Mentiu. Talvez o agente até soubesse mas isso não importava.

— Que bom. O refúgio aí no meio do mato está dando resultado, pelo visto.

A ideia havia sido dele. Coisa de agente.

— Pelo visto.

Não era uma má ideia, o lugar era até agradável. E foi bom estar sozinho, pelo menos.

— Bom, fico feliz. Vou deixar você trabalhar. Se tiver novidades ou precisar de alguma coisa, é só ligar.

Ficaram assim combinados. A tela branca no cavalete ouvira toda a conversa. Ele a olhou enquanto colocava o telefone no gancho. Aproximou-se, encarou-lhe a brancura. Mirou o pincel adormecido e saiu novamente deixando a porta da frente bater. No chão, a gota preta foi se infiltrando na madeira, se agarrando às ranhuras e se instalou entre os veios.

Horas mais tarde estava novamente frente à tela. Na mesa de apoio que puxou para perto do cavalete, a paleta permanecia inerte, mas já abrigava dois pequenos montes de tinta, ainda intocados. Os tubos recém abertos deitados ao lado. Com o pincel brincou com as cores na própria paleta. Apenas revolvendo a tinta como se averiguando a textura. Não tinha pressa. O som de um motor velho se fez ouvir à distância. De vez em quando uns estouros, e lá vinha ele, solavancando pela estrada como se acometido por um acesso de tosse. Ângelo sorriu para si. Tomou a paleta nas mãos mas continuou brincando com a tinta, olhando a tela e ouvindo o som se aproximar.

Dois estouros altos indicaram que a tobata velha dobrara a esquina da entrada do terreno e passara a porteira deixada aberta. O barulho estava bem perto, quase na porta da frente. Esperou até ouvir o último estouro e o motor silenciar. Pousou a paleta e o pincel novamente na mesa de apoio, foi ao fogão para atirar mais um pedaço de lenha ao fogo e saiu pela porta se sentindo mais leve.

"'Taaaaarde!" O cumprimento veio arrastado logo depois de uma cusparada no chão, e seguido de um sorriso de dentes amarelados e um acenar do chapéu de palha de abas largas. Ângelo se recostou no batente da porta e acenou de volta com um sorriso enquanto o velho apeava da tobata que trazia, à reboque, as sacas de adubo.

Era quase fim da tarde mas o sol permanecia forte. A pele tisnada e sulcada do velho brilhava com um suor que não escorria.

— Boa tarde, Seu Telúrio.

— Tá bão, Seu Ariel?

— Tudo bem. E com o senhor?

— Com a graça de deus. Trouxe as titica pras suas flor.

— E fica pra um mate?

— Se o senhor não deixar a água ferver dessa vez, eu fico.

Chaleira no fogo, Ângelo arrumava a erva com os dedos dentro da cuia enquanto o velho Telúrio enrolava outro tanto dentro de um cartucho de palha de milho, fitando meio curioso a tela ainda branca na sala. Com a chegada do anfitrião — cuia numa mão, garrafa térmica na outra — o velho disparou, depois de certificar a firmeza do cigarro recém-montado:

— Inda não conseguiu começar, né?

— Ainda não. É mais difícil do que parece.

— Deve de ser. O senhor tá há um tempão aqui e continua tudo numa brancura só.

A conversa continuou na varanda do lado de fora da casa. A água fazendo a cuia soltar baforadas brancas daqui, o fogo fazendo o palheiro soltar baforadas brancas de lá.

— O senhor tem razão, Seu Telúrio. Estou há um tempão aqui, né?

— Logo, logo volta o verão e isso aqui vai ficar quente de secar bosta outra vez. O senhor lembra como tava o clima quando chegou aqui?

— É verdade. Era inverno, um frio danado. O capim amanhecia todo branco.

— Agora tá verde — o velho soprou uma nuvem branca como para comparar as cores.

Ângelo suspirou um riso, tornou a encher a cuia e passou para o velho Telúrio.

— Ainda bem que a cabana já era climatizada. Tenho que lembrar de agradecer ao Hermes.

— Ele que mandou o senhor pra cá?

— É. Ele que deu a ideia. Disse que ia ser bom para espairecer. Só não disse que era tão frio no inverno. Não sei como o senhor aguenta.

— Ora, como todo mundo! — respondeu o vendedor de titica, passando o palheiro fumegante.

— Mas o senhor não sente frio, não?

— Sinto, sim, senhor. No inverno eu sinto frio. Quando tá quente eu sinto calor. Quando tem brisa, eu sinto o vento.

— Eu não... — e ficou um tempo olhando a fumaça que lhe saía dos lábios num cone nevoento — Frio ou quente, eu não sinto a menor diferença ali dentro. É como se estivesse sempre tudo igual.

— Quando a gente tá num lugar assim, só sente alguma coisa mesmo quando sai de casa.

— Pode ser, Seu Telúrio, pode ser.

— Inté porque, se o senhor tá procurando alguma coisa nova, de que adianta procurar no mesmo lugar de sempre?

— Mas eu não estou aqui desde o inverno? Não vim para um lugar diferente? Até agora não me pintou uma só ideia nova que preste, só merda!

— E o que tem de mais nisso? — Cuspiu no chão e devolveu a cuia.

Ângelo atirou o toco final do palheiro acabado no capim e tornou a encher o recipiente. O velho continuou:

— Se é só isso que o senhor tem até agora, tem que fazer brotar alguma coisa disso. Eu também já tava numa situação que só tinha me sobrado duas galinha poedeira e um quintal cheio de titica. Pois não tô eu aqui vendendo titica pro senhor e pra mais uma porção de gente? Os seus canteiro não tão mais bonito por causa dessa titica toda?

— O canteiro até está mais bonito com a titica, Seu Telúrio. Mas se a gente mexer com ela, vai feder.

— Mas se não mexer, vai secar. E daí não adianta nada. Só se mexer é que vai nascer alguma coisa. No final das conta, se não feder, não floresce nada.

Terminaram a conversa falando da aplicação do adubo nos canteiros, dos cuidados de poda e do controle de pragas. Seu Telúrio ficara de trazer algumas de suas galinhas temporariamente para que se alimentassem das pragas e de quebra já produzissem titica para que o canteiro florescesse. Assim, dividindo conversas de esterco, pétalas e beleza, assistiram a tela branca das nuvens ganhar as pinceladas rosadas do poente.

A garrafa térmica ficou leve, o sol ficou baixo e a tobata tornou a soar já no início da noite. O som do motor foi sumindo estrada abaixo, deixando no ar apenas o cheiro do adubo nos canteiros.

Meses depois, longe dali, não fazia nem frio nem calor. A brisa constante do ar condicionado mantinha o ambiente de paredes brancas a constantes vinte e dois graus. A tobata não mais se ouvia. No seu lugar um burburinho de gente falando. No lugar do mate dividido na bomba, taças de cristal e um espumante indicado por Hermes. No lugar dos canteiros floridos, eram admiradas telas nas paredes por pessoas com expressões compenetradas. No dia seguinte os jornais enalteceriam a nova exposição de Ariel Ângelo, destacando o contraste com seu último trabalho. Em "Anjos de Barro" o autor se distanciava do seu universo pós-apocalíptico e retornava a origens mais orgânicas. Os tons terrosos suplantando o cinza-amarelado de seus trabalhos anteriores. Os anjos buscavam um retorno à essência, diriam. No canto da sala, o pintor apreciava a paisagem. Rostos sorridentes, enfadados, admiradores, amigos, alguns empolgados outros mantendo uma presença protocolar. Notou com curiosidade a filha de um casal amigo, que olhava um dos anjos com perplexidade. Se afastava e se aproximava do quadro com um olhar curioso. Olhou a obra de frente, mirou de lado. Foi se aproximando da tela. O rosto levemente inclinado para cima, bem próximo das pinceladas. Ângelo riu quando a viu contorcer de repente o nariz e afastar-se rápido, com uma careta, olhando o anjo de tons terrosos perplexa. Imaginou se os jornais relatariam também, no dia seguinte, o aroma peculiar dos Anjos de Barro.

domingo, 27 de julho de 2008

A Páscoa do Faraó

Hapuseneb brincava com alguns gafanhotos que tinham sobrado da infestação. Cutucava os insetos, que estavam numa gaiola de palha, com um graveto. As amas já o haviam mandado dormir. Queria despedir-se de seu pai, mas elas disseram que ele não devia ser incomodado, que tinha muitos problemas para resolver ultimamente. O herdeiro acabou se cansando dos insetos e foi dormir. No dia seguinte poderia ver o pai.


Era meia-noite quando um som rompeu o silêncio do palácio. Potoc, po-toc. Potoc, po-toc. Lento, constante, se aproximando. Potoc, po-toc. Uma tênue luz rompia a escuridão dos corredores. Como um archote que se aproximava passo a passo. Potoc, po-toc. Um suave cheiro de sangue fresco acompanhava o visitante. O som ou o odor acabaram por despertar um galgo jovem, primeiro da ninhada, presente que Hapuseneb ganhara do pai. O cão ensaiou um rosnado, mas um golpe poderoso o silenciou. Tudo o que conseguiu produzir foi um ganido baixo, antes que um segundo golpe lhe partisse as vértebras do pescoço.


O visitante se aproximou da porta onde jazia o animal. A luz se projetou nos umbrais limpos. Demorou-se admirando os batentes. Só depois entrou, devagar. Potoc, po-toc. Aproximou-se do leito. Potoc, po-toc. A luminosidade se derramou sobre a criança. Uma grande mão espalmada caiu pesada sobre a boca do infante enquanto dedos fortes comprimiam a face como um torno. Hapuseneb acordou sobressaltado, mas não pôde se mexer sob o peso que o comprimia contra a cama. Não conseguiu emitir nenhum ruído, pedir ajuda ou desvencilhar-se. Os braços magros tentavam em vão afastar as mãos do agressor. Os olhos saltados de terror se destacavam na cabeça calva e olhavam com pânico aquele que trazia a luz sobre o seu leito.


— Não há sangue nos umbrais... — Foram as únicas palavras do invasor e as últimas que Hapuseneb ouviria.


Debateu-se o quanto pôde até que um joelho pesado aterrissou abaixo do abdômen, pouco acima do sexo. Balançava as pernas e tentava com os braços se desvencilhar. O assaltante cerrou o punho esquerdo, que estava livre, recolheu o braço para tomar impulso e precipitou a mão como um aríete contra o primogênito do faraó. Os bracinhos magros nem sequer desviaram o golpe, que atingiu o tronco um pouco acima do estômago, no lado direito. A criança gemeu sob as costelas trincadas. Com a dor nem percebeu que a mão de chumbo se precipitava em outra carga, partindo as costelas que, estilhaçadas, tornaram-se pequenas lanças dentro do corpo miúdo. Uma ponta rompeu a pele e ficou espetada para fora, refletindo em vermelho e branco a pouca luz que a iluminava. Ainda com a mão direita amordaçando a vítima, o visitante tomou com a esquerda aquela ponta que se projetava de Hapuseneb e a empurrou para baixo, qual uma alavanca. O garoto gritou histérico, os olhos esbugalhados jorrando lágrimas, o corpo estropiado jorrando sangue, enquanto a mão pesada não deixava escapar mais que um choro cortado e dolorido, enquanto a costela abria caminho por pele e carne como uma adaga cega, até se chocar contra a borda dura da cama e partir-se mais uma vez. O esforço em gritar desenhava no pescoço fino da criança todas as veias e tendões, projetando a traquéia num esforço inútil para ser ouvido. O assaltante aproveitou e, com o polegar e o indicador em pinça, envolveu a traquéia do menino e pressionou com força sobre-humana. Um som estalado da cartilagem silenciou a criança e um puxão brusco rompeu o duto, dilacerando a garganta já puída. O corpo jovem caiu inerte na cama, alquebrado, vermelho, deixado no escuro enquanto a luz se afastava devagar, coxeando baixo pelos corredores do faraó. Potoc, po-toc.