segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte V

Com ventos tão favoráveis e com todos os meus instrumentos à mão, não me foi difícil manter o Cirella na rota, mesmo em águas desconhecidas. As noites estreladas facilitavam o uso do sextante e constância dos ventos foi tanta que não nos foi preciso nem mesmo navegar à bolina uma única vez. Nesse ritmo chegamos facilmente ao nosso primeiro destino, no qual seria decidido meu futuro em relação ao Cirella. Contornamos a ilha até uma enseada de águas calmas onde lançamos âncora. Dada às ordens para preparar o desembarque para o dia seguinte, pois atingimos a enseada já após o pôr-do-sol, fui chamado à presença do Capitão. Fui até a ponte onde o encontrei junto ao leme olhando para os luzeiros na costa. O capitão Tino me cumprimentou pelo trabalho realizado até então, mas me alertou que maiores desafios ainda estavam por ser enfrentados. Disse-me que falaria com Bogus a meu respeito e a respeito de meu trabalho nesta primeira viagem com a tripulação e que, junto com o Imediato, decidiria pela minha permanência ou não abordo do Cirella. Conversamos ainda alguns minutos e me despedi de meu capitão indo ajudar os demais a preparar o desembarque. A viagem havia sido tranqüila e acho que por isso eu acreditava que não teria motivos para que eu não continuasse junto aos meus novos companheiros. Ainda assim, confesso que a expectativa da decisão já sondava minha mente há alguns dias e adormeci esperando que a nova manhã trouxesse boas novidades.

Na manhã seguinte descemos os botes e fomos à terra depois de quase um mês no mar. O arquipélago era formado por três ilhas principais e mais algumas muito menores. A principal cidade era localizada às margens da enseada, uma vez que o arquipélago vivia quase que exclusivamente do comércio com barcos mercantes. Os grãos que compraríamos eram em parte trazidos por outros navios e em parte cultivados em uma das outras duas ilhas maiores. Da terceira ilha partiam os pescadores e baleeiros, dos quais esperávamos comprar boas quantidades de óleo a um preço justo. O primeiro dia em terra foi gasto com contatos nos mercados a procura de boas oportunidades de negócios. “Oportunidades, homens! Oportunidades!” bradava o capitão com olhos ávidos aos mercadores. Enquanto o capitão se concentrava na busca de oportunidades na cidade, um pequeno destacamento foi à outra ilha para negociar os barris de óleo. Frei Renalier foi em busca de um boticário conhecido seu para renovar seus estoques de alabastro, ainda que aquele arquipélago não pudesse muito oferecer neste quesito. Eu ajudei os marinheiros arranjando para que tudo estivesse preparado para as negociações e o carregamento e, depois, junto com o Imediato Bogus Napolle, fomos à estalagem mais próxima para conferir que distrações a cidade oferecia aos que nela aportavam. Rastani ficara a bordo contando e recontando as estimativas dos lucros.

Na própria estalagem nos reunimos para beber. Era a primeira vez que me reunia com os homens apenas para beber e matar tempo. Acho que foi ali que percebi que me daria bem com aquela tripulação. Já me sentia à vontade, talvez por causa dos copos de vinho que teimam em chegar, e me divertia com eles. Foi-me grata a surpresa de ver Bogus entre os homens. Ali ele era apenas Bogus. E não o Imediato Bogus Napolle, segundo em comando no Navio Mercante Cirella. Era um de nós. Claro, o gosto pelo mar lhe corria nas veias e, embalado pelas ondas do vinho e lembranças do mar, nos contava histórias de quando cruzara os mares até chegar ao porto do Cirella. O jeito ranzinza e a voz abafada se confundiam com um contador de histórias que era na verdade um homem do mar. Se sentia à vontade entre os marujos. Daí a receptividade com que eles seguiam seu comando. Provavelmente acima mesmo de nosso capitão. Ficamos algumas horas sendo regados pelo vinho e por histórias. O vinho, apesar de correr farto em nossa mesa, não parecia suficiente para aplacar a sede de todos. Especialmente de Fernão. Um sujeito típico das ondas. Provavelmente nativo de alguma costa meridional, ele tinha os traços de anos no mar, mesmo sendo um dos mais jovens dentre nós. A barba espessa encobria uma pequena cicatriz no queixo e meia dúzia de brincos reluziam na orelha esquerda, fazendo companhia a um dente de ouro que espiava para fora da boca quando ele sorria. E Fernão sempre sorria. Diziam os companheiros que certa vez enfrentaram uma tormenta que ameaçava virar o Cirella. Quando foram amainar, a vela principal não se recolheu, presa no alto do mastro. Com uma faca entre os dentes Fernão galgou o mastro sob chuva e ventos, em meio às ondas, e conseguiu cortar as amarradas para fazer descer a vela. Depois sentou-se lá no alto, com um dos braços agarrado ao mastro e o outro acenando com a faca para a tempestade. Gritava e cantava alguma das músicas barulhentas de seu povo, enquanto os marinheiros recolhiam a vela e lhe chamavam para a segurança do convés. Mas só após terminar a canção o jovem marujo, segurando a faca entre os dentes novamente, se fez mastro abaixo. Nos últimos metros, a embarcação foi sacudida por uma onda e ele golpeado no rosto pelo próprio mastro. Ganhara o dente de ouro para suplantar o que havia perdido neste golpe.

Já embriagado me despedi de meus companheiros e fui me recolher em um dos quartos da estalagem já preparados para nós, enquanto Fernão começava a subir numa das mesas para dançar.

No outro dia lembro de ter sido acordado por uma dor de cabeça logo de manhã. Juntei-me aos homens e fomos ao mercado onde as negociações estavam sendo feitas. O capitão Tino, assessorado por Rastani, checava as mercadorias de um dos comerciantes locais. Gesticulava exageradamente e imprimia um ar excessivamente solene ao seu discurso. Às vezes parecia mesmo que se esquecia do seu interlocutor. O mercador intervia em intervalos de alguns minutos entre uma fala e outra, mas passava a maior parte do tempo apenas ouvindo nosso capitão. Apesar de a distância me proibir de ouvir o que era dito, era clara a desenvoltura de nosso líder. Alguém que tanto tempo discorre sobre cinco sacas de cevada deve realmente conhecer seu ofício.

No período da tarde, após negociarmos várias outras mercadorias, retornaram os homens com o óleo da outra ilha. Barris e mais barris eram carregadas em uma pequena carroça puxada por um burro. O carregamento foi levado aos botes e depois enviado ao Cirella. Ficamos naquelas ilhas por quatro dias e nem o capitão Tino, nem Bogus haviam me chamado para dar uma resposta a cerca de meu destino. Começava a me preocupar, afinal precisava de uma resposta para providenciar um barco para retornar ao continente, caso fosse decidido que eu não seguiria com o Cirella. Achei por bem apenas aguardar uma resposta, afinal, neste um mês não pude me inteirar de todos os procedimentos do barco e a demora podia ser perfeitamente normal. Ao final do quarto dia ajudei no carregamento das últimas cargas e passei aos meus estudos com meus mapas e instrumentos, avaliando a melhor rota para que o Cirella seguisse para seus destinos, independente da minha presença ou não. Mais a noite o Capitão juntou os homens e disse que partiríamos com os primeiros raios da aurora. Ainda, nada a meu respeito. Dormimos todos abordo para garantir que não haveria nenhum imprevisto. Pelo visto eu ficaria mesmo com meus novos companheiros. Pelo visto eu fazia parte da tripulação do Cirella.

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