segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte XI

O céu nublado trouxe uma escuridão precoce quando o sol se pôs, e apenas dois pontos brilhantes chamejavam sobre as ondas baixas que embalavam os dois archotes a uma distância pequena demais para propiciar um descanso tranqüilo aos seus tripulantes. Sabíamos que aquela seria uma aurora violenta. O sol se ergueria vermelho do oceano e se confundiria com o nosso sangue que certamente tingiria as águas se entrássemos em um combate aberto contra o bem armado Amret. Jamais chegaríamos próximos o suficiente para abordar a embarcação inimiga à luz do dia. Se chegássemos ao alcance dos canhões adversários nosso casco não suportaria os danos e não nos seria possível engajar ao combate corpo-a-corpo. E o Cirella não possuía poderio suficiente para suplantar os canhões de bronze de nosso adversário no combate à distância. Era preciso que tomássemos a iniciativa da ofensiva na esperança de surpreender nossos inimigos, mesmo que isso significasse o risco de uma navegação às cegas na noite sombria daquelas águas desconhecidas. Preparamos nossas armas sob o convés procurando manter uma aparente rotina para o caso de estarmos sendo observados à distância pelos homens do Amret. Preparamos além das armas, vários metros de cordas e ganchos para uma abordagem ao convés inimigo. Apagamos as lanternas a bombordo deixando apenas iluminada a lateral do navio voltada ao Amret, a boreste. Encobertos pela escuridão, baixamos os botes ocultos dos olhos de nosso antagonista e os enchemos com nossos melhores combatentes e com as cordas devidamente preparadas. Os botes foram levados em silêncio e completa escuridão para próximo da nau inimiga e aguardaram o momento de agir. Os outros dentre nós que ficaram a bordo preparam o melhor possível o Cirella para uma investida noturna na esperança de que os vigias, em meio à escuridão, não percebessem nossa aproximação há tempo de preparar sua defesa ou ao menos que a precisão da artilharia inimiga fosse prejudicada. Assim que todos se colocaram a postos, apagamos todas as lanternas a bordo, envolvendo definitivamente o Cirella na escuridão da noite, e mudamos o curso para interceptar nosso adversário que reluzia solitário sobre as águas escuras e frias que aguardavam silenciosas o embate.

Entramos no alcance dos canhões inimigos e nenhum alarma aparentemente fora dado. Enquanto isso os botes, também envoltos pela noite se aproximavam sorrateiramente do casco do Amret, prontos para desovarem no convés um pequeno enxame de combatentes. Nosso subterfúgio, no entanto não fora suficiente para uma surpresa completa e logo os vigias inimigos deram pela falta de nossas lanternas ao longe e perscrutando a noite localizaram o Cirella se dirigindo a eles como um aríete obscuro. O alarma fora dado e a movimentação no convés inimigo se intensificava com a artilharia se preparando para a primeira salva, e a infantaria toda a bombordo pronta para repelir nossas amarras e tentativas de abordagem. Enquanto isso, a boreste do barco adversário, os botes começam a liberar homens que escalavam, com o auxílio das cordas, rumo ao convés inimigo. A primeira saraivada rasgou a noite com um uníssono trovejar que despejou o aço quente nas águas a nossa volta. A escuridão que nos protegia também não nos permitia ver os projéteis que nos procuravam nas trevas e a expectativa do impacto se tornava tão angustiante quanto o próprio arrematar das esferas metálicas. A segunda descarga cruzou perigosamente o inconseqüente e destemido Cirella e uns dos projéteis transpassou uma de nossas velas secundárias deixando em seu lugar um vão negro preenchido pelo céu escuro.
Antes que a próxima bateria se preparasse nossos homens haviam deixados os botes e arremeteram contra a artilharia inimiga, que surpreendida cedia sob a fumaça das pistolas, o cheiro da pólvora e as lâminas velozes. Com o caos perpetrado na nau inimiga, reacendemos as lanternas do Cirella iluminando nosso único e ultrapassado canhão de retrocarga. As recargas estavam preparadas e arma posicionada no bordo do Cirella, que já se posicionava para o tiro. Enquanto nossos homens enfrentavam o contra-ataque da infantaria do Amret no convés adversário, o Cirella cuspia esferas de ferro contra o mastro e as velas inimigas a fim de aleijar nosso antagonista. Mesmo com a artilharia severamente debilitada os canhões de bronze do Amret ainda eram uma ameaça, e à curta distância não demoraram a mostrar seu poderio. Logo o impacto do fogo inimigo avariou nossa embarcação causando estragos tanto ao Cirella como aos homens a bordo, que caíam sob os estilhaços do navio que voavam aos montes. Nossos homens debilitaram nosso inimigo o suficiente para que pudéssemos nos aproximar para a abordagem e logo as amarras voavam de um navio ao outro e as pranchas de madeira eram estendidas entre os conveses.

Investimos com o restante de nossos homens sobre o convés inimigo unindo nossas forças àquelas dos nossos companheiros que iniciaram o ataque. Àquela distância o Cirella era presa fácil para os canhões inimigos e o casco se rompia ante a ferocidade das armas. Ao Amret, com o mastro partido e deitado sobre o convés, não restava muito a não ser tentar suportar nossas forças no convés e continuar a punir nossa embarcação e os homens que nela haviam ficado tanto quanto fosse possível com o restante de sua artilharia. Ao mesmo tempo em que sobrepujávamos as forças inimigas, o Cirella se esfacelava sob uma nuvem de fumaça e poeira e ameaçava, vagarosamente, entregar suas forças e mergulhar ao leito do oceano. Nosso antigo canhão, de ferro fundido, explodiu durante um tiro, arrancando parte do bordo de nosso navio e a vida de pelo menos dois de nossos homens. No entanto, a bordo do também castigado Amret, já havíamos suplantado as forças opositoras que se entrincheiraram no convés inferior, junto à segunda linha de artilharia. Com o convés principal seguro, o Capitão Tino abordou a nau inimiga para exigir a rendição ou comandar o último ataque contra os sobreviventes. Apesar das várias baixas que tivemos e das várias que ainda teríamos devido aos ferimentos desta batalha, tínhamos na boca o gosto da vitória misturado ao do sangue. Mas os rumores sobre os ardis de nossos adversários não eram despropositados. Quando abordamos o convés inferior do Amret nos deparamos com todos os homens armados de tochas incandescentes e com toda a força da artilharia inimiga pronta e apontada contra o agonizante Cirella. Ao redor deles, barris de madeira abarrotavam o compartimento e preenchiam o ar com o cheiro da pólvora. O Cirella não suportaria outra salva a esta distância e estaria condenado caso nossos inimigos disparassem. E eles estavam prontos para sacrificar a conquista do porto, para sacrificar sua própria embarcação, para não serem derrotados. A tensão se tornava palpável e o bruxulear das tochas sobre os barris mostrava que aquela batalha não teria vencedores.

O pó negro exalava um cheiro forte no convés abarrotado. Muitos de nós estávamos feridos, mas continuávamos a postos no convés inferior junto com nossos companheiros. Nosso Imediato, Bogus Napolle, tinha a perna lacerada por uma lâmina inimiga e mancava terrivelmente. Eu mesmo, que havia acompanhado a segunda investida sobre o navio inimigo, naquele momento ainda portava o chumbo adversário no antebraço esquerdo. Admirando agora o ferimento recém cicatrizado à luz da vela que se encolhe enquanto escrevo, penso se Nero resistirá aos ferimentos que lhe foram impostos.

Nero Marquesia é um dos tripulantes mais velhos do Cirella. Quando me juntei à tripulação desta remendada embarcação não o conhecia, e o espírito reservado do marinheiro fez com que só após algum tempo no mar ele passasse e me contar as suas histórias com o sotaque marcante característico. E com o passar deste tempo eu percebia que este era um dos seus maiores passa-tempos sobre as ondas. E maior parte dos companheiros de convés também se aprazia com as histórias do velho marujo. Nas noites de calmaria, à luz de uma lanterna, os causos do velho Nero eram o divertimento da tripulação. E agora ele passa os seus dias em um leito tentando suportar aos ferimentos sofridos naquela noite belicosa. Quando nosso canhão explodiu em combate lançou ao ar estilhaços de madeira e metal que se espalharam por boa parte do convés. Nero fora atingido em diversas áreas do corpo por esses estilhaços e ao que parece por uma das câmaras de recarga lançadas pela explosão da arma. Os ferimentos o puseram inconsciente e, se não fosse pelos cuidados de Frei Renalier, possivelmente já teria sucumbido. Agora ele oscila entre períodos de consciência e inconsciência e é acometido quase que constantemente pela febre, possivelmente decorrente da inflação de um dos ferimentos. Nosso Frei se divide entre os cuidados de um cirurgião e as preces de um sacerdote, enquanto o resto de nós apenas torce para que ele resista. Infelizmente parece que nosso companheiro fará mais uso das preces do que dos ungüentos e dá sinais de que pode não agüentar nem mais uma semana nas precárias condições em que nos encontramos.

Um comentário:

Rodrigo Oliveira disse...

Quase lá. A próxima postagem será a final!