segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Flores na cabeça

Flores na cabeça

Começou quase imperceptível. Apenas uma sutil vibração, breve mas insistente, percorrendo a poeira da estrada de terra cercada de flores sob o céu azul primaveril. No cenário quase bucólico, as casas de tijolos à vista à beira da rua pareciam guardar segredos silentes por trás das fugas brancas das paredes e dos gramados cercados de pétalas, canteiros e aromas de bolos de banana com farofa. Foi só muito aos poucos, a lentos passos, que a melodia se fez, de fato, audível. Um assobio que saltitava alegre nas notas de diapasão, embalando as flores numa dança discreta na brisa suave que o vento soprava com cuidado exagerado.

O assobio nascia num vão entre um par de lábios volumosos de tom café, contornados por uma barba baixa que cobria um rosto de onde espiavam olhos curiosos. A mochila nas costas jingava com o andar cadenciado ditado pelos passos errantes das botas de solado grosso e couro resistente empoeirado. A camisa listrada retribuindo as cores das flores que margeavam o caminho.

Parou à sombra de uma árvore de copa recém podada, próxima a uma casinha de tijolos aparentes e floreiras nas janelas, admirando o telhado pontiagudo. Cessou o assobio ouvindo com prazer o silêncio da rua decorada e o som da brisa nas folhas. Sentou à beira da estrada, deitou ao chão a mochila e bebeu a água fresca de um cantil de alumínio, dividindo o espaço com as borboletas das flores junto à cerca, logo ao lado.

Se perdeu na delicadeza das asas e nem percebeu a chegada da criança loura que saltitava saindo do jardim bem aparado da casa. Foi o som do riso da menina que o despertou. Mas quando a criança o viu, hesitou desconfiada, parando junto ao portãozinho de madeira.

— Oi — Foi ele quem cumprimentou, jovial.

A criança não respondeu e ficou brincando à distância, lançando-lhe um olhar de soslaio vez por outra, um tanto ressabiada. Ele riu e retornou a atenção às borboletas, que vinham lhe brincar nos braços. Tocou com a ponta do dedo as asas coloridas e viu o inseto levantar voo até pousar-lhe na cabeça. Mais uma risada infantil lhe chamou a atenção.

— Parece um laço — Divertiu-se a menina loura de vestidinho, apontando para a borboleta na cabeça do forasteiro. Ele riu com o chiste e a menina se aproximou.

— Você é um vagabundo? — perguntou a criança.

Ele se espantou, em princípio, mas logo riu mais uma vez com vontade, fazendo voar a borboleta da cabeça. Mas não. Ele era apenas um viajante.

— E o que faz um viajante?

— Viaja — respondeu sorrindo.

Colheu uma flor amarela e colocou no cabelo louro da menina.

— Pronto. Agora você também tem um laço.

Ela sorriu. Mas em seguida dirigiu um olhar preocupado para a porta da casa de tijolos aparentes e disse:

— Meu pai não vai gostar disso. Ele diz que as flores têm que enfeitar o jardim.

— As flores ficam bonitas nos jardins, sim. Mas eu acho que elas deveriam enfeitar mais as cabeças das pessoas — respondeu o rapaz com calma.

— Ora, onde já se viu flor na cabeça? Lugar de flor é na rua. Ou na frente de casa. Minha mãe até chama um tio pra deixar elas bonitas ali perto da porta.

— Mas aí as borboletas não vão querer visitar a sua cabeça. No máximo vão passar pela sua rua, mas não vão querer pousar em você.

— Hum... Meu pai nunca falou nada sobre as borboletas.

— Deixa eu adivinhar: ele não tem flores na cabeça, tem?

— Não... Ele tem em volta de casa, tem na entrada da garagem, mas na cabeça nunca colocou, não... Mas você também não tem flor na cabeça e a borboleta pousou em você!

— É que quando você põe uma flor na cabeça uma vez, um pouquinho dela fica ali pra sempre. Como se fosse um perfume. Aí as borboletas percebem e acabam pousando em você.

— Eu queria ter mais flores na cabeça. Mas aí meu pai vai brigar. Elas tem que ficar aqui fora, pra deixar a fachada mais bonita e pra todo mundo ver que as borboletas passam por aqui.

— Talvez, se mais gente colocasse flores na cabeça, a gente não precisaria de tantas flores nas fachadas. As borboletas viriam da mesma forma e o perfume estaria sempre com a gente, em todos os lugares. Com as pessoas andando por aí, as flores iriam se espalhando pelas casas, pelas ruas, pelas outras pessoas. Haveriam flores e borboletas em todas as ruas.

— Ah! — a garota falou esperançosa, levantando o dedinho para o céu como quem lembrou de algo importante ou pede a vez para falar — Vou fazer como a minha mãe, então. Ela tem um arco de cabelo cheio de flores que nunca murcham. Vou usar sempre!

— Acho que esse não vai adiantar. As flores do arco são de plástico, não são de verdade. Por isso não murcham. Elas só parecem flores, mas se você olhar de perto vai perceber que elas não tem perfume, porque são de mentira. E as borboletas não vêm em flores de mentira. Quando uma flor é de verdade, ela pode até murchar algum dia, mas acaba deixando uma sementinha que vai fazer brotar outra flor. Assim elas se renovam e mantêm sempre o perfume.

— É melhor eu voltar pra dentro. Meu pai não gosta que eu fale com vagab... — com estranhos.

— Tudo bem. Foi legal conhecer você, viu?

A menina retirou a flor do cabelo com cuidado e a colocou no bolso do vestido. O rapaz sorriu tranquilo, sabendo que um pouco dela continuaria na cabeça da criança, que logo saiu correndo na direção da casa. O jovem levantou-se, colocou às costas a mochila e seguiu o caminho pela estrada de barro com algumas borboletas no seu encalço. Saiu assobiando a melodia alegre que ia desaparecendo da vizinhança das casas de tijolo à vista e cheiro de bolo de colono. A melodia foi baixando, baixando, sumindo, sumindo, até deixar no ar apenas aquela vibração quase imperceptível, que foi dando lugar ao som do vento nas folhas e o de alguma criança levando bronca por ter arrancado uma flor do jardim.

* Update: Conforme comentário meu do dia da postagem, esse texto acabou mesmo passando por uma pequena reedição. O título, do qual eu havia reclamado, ironicamente se manteve, mas nesta versão algumas construções mudaram e alguns trechos foram ajustados. Acabou ganhando um volume de texto um pouco maior também. A motivação para a atualização foi a publicação na próxima edição do jornal Expressão Universitária, do Sinsepes.

4 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

Retornando com as postagens além do Cirella. Esse foi pro Duelo de Escritores novamente. O título ficou fraco, mas eu precisava postar a tempo. Pode ser que seja revisto, ou pode ser que eu tenha preguiça. Em breve (breve é bem relativo) retorno com uma nova postagem em versos, que surgiu num arroubo semana passada e falta lapidar.

luzia disse...

De uma simplicidade muito tocante! Consigo visualizar a menina com a flor na cabeça... e as borboletas!

Anônimo disse...

Engraçado que acabei de fazer um texto sobre flores. E esse... caramba, nunca tinha pensado nessa coisa do cheiro das flores ficar para sempre em você. Liiiiindo, demais, amei *-*

;**

Rodrigo Oliveira disse...

Agradeço aos gentis comentários. Um textinho em homenagem a uma certa cidade que traz as ruas cheias de flores mas tiaras artificiais nas cabeças pespetaladas sem borboletas.
Prosit! ;)