Como o Peregrino ficava em sua saleta nos porões do Cirella, a tripulação não lhe dedicou muita atenção a princípio. À medida que parávamos nos portos, percebemos que Tino se dedicava cada vez mais à venda das ervas do Peregrino em detrimento das mercadorias do Cirella. E os lucros de tais vendas ficavam restritos ao Capitão, seu conselheiro e, obviamente, ao ruivo com voz de criança. A tripulação apenas ganhava seu percentual das especiarias normalmente negociadas pelo Cirella, que diminuíram aos poucos, uma vez que os espaços nos porões da embarcação foram sendo tomados pelas plantas. Aos poucos, o nosso novo tripulante começou a se infiltrar no dia-a-dia do Cirella. Em pouco tempo havia se tornado conselheiro de Tino Sadiano, acima mesmo de Bogus Napolle, o Imediato do navio. Apenas Rastani Cain estava acima dele na embarcação. Com astúcia e promessas de enormes recompensas foi envenenando a mente já frágil e perturbada de nosso capitão a ponto de convencê-lo de que sua sala na ponte de comando do Cirella não era necessária para ele. Seria melhor se ele passasse seus dias mais próximo dos marujos, entre eles, de forma a melhor vigiar e perceber qualquer movimentação que pudesse oferecer risco ao seu comando. E, já que o Capitão estaria junto aos homens e sua sala na ponte de comando ficaria vazia e ociosa, o Peregrino se disponibilizou a ocupar o lugar. Tudo, é claro, para melhor estudar suas ervas e controlar os negócios, visando maiores lucros para ele e para o Capitão. Com o consentimento do comandante máximo da embarcação, o Peregrino passa agora seus dias não mais nos porões do navio, mas sim na cabine de comando.
Acabo de voltar do convés. Ouvi gritos dos homens chamando por ajuda. A água que já havia tomado um dos compartimentos inferiores voltou a se alastrar em nossos porões. Felizmente conseguimos conter a inundação a tempo, mas com isso isolamos o compartimento anterior e não podemos mais bombear a água para fora do navio. Perdemos boa parte da carga nesse ínterim e algumas sacas das ervas que carregamos. Com a chuva que volta a cair esperamos conseguir água potável o suficiente para nos mantermos por mais tempo. Quanto aos mantimentos que nos restam, decidimos começar a racionar, pois não sabemos quanto tempo ficaremos nesta situação. O Capitão pareceu preocupado com o estado de seu navio e mandou levar o dinheiro guardado e seus itens mais valiosos para a parte mais segura do Cirella, que ainda não foi afetada pelos estragos. Penso que se talvez nos livrássemos de parte do ouro ou das ervas nos porões deixaríamos a nau mais leve e poderíamos tentar manobrá-la com mais facilidade ou ao menos o suficiente para conseguir fazer os reparos de emergência. Mas estou certo de que nosso capitão não aceitara tal proposta. Devo retomar agora minha história dos últimos eventos antes que a água volte a nos colocar em perigo e interrompa definitivamente essas breves e desditosas memórias.
Com os porões emprenhados pelas ervas e o Capitão se dedicando cada vez mais ao comércio destas mercadorias, deixando quase que de lado os negócios do Cirella, velejamos por vários mares e cruzamos dezenas de fronteiras. A cada porto parecia que Tino e o Peregrino ficavam mais abastados enquanto o Cirella cada vez mais carente de cuidados, tendo apenas a tripulação olhando por ele. Mas uma esperança surgiu, em um mercado de um porto continental. Rastani Cain negociava os lucros com um dos comerciantes, e este lhe contara uma notícia que poderia colocar novamente o Cirella nas grandes rotas comerciais.
Quase a totalidade das cargas que chegavam àquela localidade era proveniente de um único e distante porto. As embarcações que até então traziam de lá as mercadorias iriam se lançar ao outro lado do mundo, deixando a rota livre para novos barcos. Com a grande demanda de carga exigida, não seriam muitos os barcos que teriam condições de comercializar estes produtos. Eram necessárias grandes dimensões para armazenar carga o suficiente para as viagens e uma grande equipe para conduzir o barco pelas águas bravias que permeavam a rota. A oportunidade despertou o interesse de Sadiano, que via a possibilidade de grandes lucros, e da tripulação que vislumbrava grandes viagens e aventuras. A notícia arrebatou a costa como o vento das monções e logo várias embarcações estavam se preparando para zarpar rumo ao longínquo porto e suas promessas de riquezas. Entre elas, o Cirella.
Nas semanas que se seguiram, todas as embarcações se colocaram em uma corrida rumo ao novo porto. Sabíamos que a maioria daqueles que zarparam jamais chegariam até lá. Mas era preciso não só que lá chegássemos, mas que o fizéssemos antes de nossos concorrentes. Foram semanas de disputas ferrenhas e não raro a corrida se transformava em combate, tingindo o mar de sangue para o deleite dos peixes que seguiam as naus. Para aquelas rotas o Cirella não era um barco a se desprezar e seu porte nos salvou algumas vezes de embates mais diretos, especialmente com embarcações menores ou de tripulação menos numerosa, uma vez que mesmo não sendo militares, nossos homens se faziam às armas quando preciso quase com a mesma intensidade com que se faziam ao mar em busca de aventuras. Nas últimas semanas fomos tomando distância das embarcações menores que iam ficando para trás ou sendo abatidas pelas naus maiores. Felizmente o Cirella sofrera poucas avarias nesses embates, e assim nos víamos em condições favoráveis para a conquista do porto. Nas últimas semanas só havíamos avistado três naus além da nossa. Uma delas pouco conhecíamos, mas identificamos pela bandeira que era uma embarcação originária das terras às quais objetivávamos. Assim, mesmo sendo um pouco menor do que suas concorrentes, conhecia bem as rotas daquela região e nos seguia de perto. Chegaram inclusive a atingir a distância de combate, mas com uma manobra rápida, aproveitando a mudança do vento, alteramos a rota do Cirella e cortamos a frente de nossos adversários. Para um navio de porte maior isso não seria problema, mas para nosso diminuto concorrente, as ondas provocadas por nossa passagem foram o suficiente para desestabilizar o barco, enquanto nós, aproveitando a mudança repentina dos ventos tomávamos distância.
Restavam então apenas dois adversários. Atrás de nós vinha o Amret. Ao contrário da embarcação que já havíamos deixado para trás, este era um concorrente maior que o Cirella e melhor armado. Mantínhamos uma distância segura do navio mas nem por um momento deixamos de vê-lo em nosso encalço. Enquanto isso seguíamos em busca do Reef, que havia despontado a nossa frente sem deixar sinais. A grande embarcação era a maior de nossos mares. Com uma tripulação quase duas vezes maior que a nossa e um barco de porte muito mais avantajado, seria preciso muito esforço para que alcançássemos o Reef a tempo, e ainda assim teríamos de derrotá-lo em combate, um feito que não era impossível, mas tampouco simples. E sem dúvidas não sairíamos ilesos de um confronto tanto contra o Amret quanto contra o Reef. Quem dirá enfrentar a ambos. Sob a pressão constante do Amret às nossas costas e sem sinal do Reef à nossa frente, o clima no Cirella ficava cada vez mais tenso. O capitão esbravejava ordens e estipulava metas em milhas a serem percorridas a cada dia. E a cada dia a diferenças entre ele e a tripulação cresciam. Várias vezes farpas foram trocadas diretamente entre o capitão e alguns dos tripulantes. Sob pressão em nosso próprio navio e sob àquela imposta pela sombra de nossos adversários, os sussurros de motins recomeçavam. Alguns dos homens desejosos de abandonar o Cirella, outros cercados de dúvidas. Mas finalmente avistamos o Reef no horizonte. A imagem do adversário inflamou os marinheiros e a distância entre nós começou a diminuir rapidamente. Apesar disso, seguindo nosso rastro branco no oceano vinha a proa do Amret, como um perdigueiro farejando a presa. A distância entre nosso navio e o Reef diminuía rápido demais e não tardou para que estivéssemos perto o suficiente para identificar o motivo. O mar possui um senso de humor negro e irônico. E agora estava novamente pregando mais uma de suas ardilosas surpresas em nosso azarado adversário. O Reef havia encalhado, ironicamente, em um recife de corais, não oferecendo mais nenhum risco para nós. Um fim apropriado para aquele que trazia pintado no casco o nome do algoz. O Cirella e o Amret, de calado menor que o Reef, não tiveram problemas para passar sobre os corais e seguiram rumo ao porto. Não conseguimos manter por muitos dias a distância que nos separava de nosso perseguidor e logo o Amret se aproximava perigosamente. O embate era iminente, teríamos de rechaçar a embarcação adversária para chegar ao porto em segurança. Teríamos de abordar e derrotar o Amret. E teríamos de fazê-lo em breve.
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
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2 comentários:
Calma...
Mais uma ou duas postagens termina. Faltam só 4 paginas de word. :)
Olá
Tem um doido aí sorteando os dois livros do Dexter, aquele serial killer que mata serial killers. Pra saber como particpar, clique aqui.
1 abraço
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