quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte IX

Ali mesmo alguns dos homens, incluindo o abalado Fernão, se despediram de seus companheiros e desapareceram entre as ruelas do porto para nunca mais voltarem ao Cirella. Alguns foram contratados por outras embarcações, outros juntaram seus parcos investimentos para comprar pequenos barcos mascates para rotas menos lucrativas e menos arriscadas, e ainda alguns desistiram de vez da vida no mar, buscando novos empregos que não exigissem a incerteza do mar agitado, as constantes mudanças entre calmarias e tempestades e as inevitáveis batalhas que travam aqueles que vivem sobre um convés. Ficamos em terra por vários meses e poucos de nós se dirigiam ao capitão com a naturalidade que faziam antes de nossa última viagem. A avareza e a cobiça tomaram Sadiano e mesmo alguns dos marinheiros que tomaram parte na última viagem não receberam sua parte nos lucros. Mesmo assim Sadiano precisava de sua tripulação para retornar ao mar em busca de mais riquezas. Mas seu barco estava praticamente destruído e sua reputação completamente abalada. O Capitão Tino precisava de um artifício que convencesse seus comandados a embarcar novamente. Apesar das perdas recentes, o capitão não teve outra escolha a não ser arriscar. Foi em busca de grandes comerciantes e, empenhando sua palavra e futuras riquezas, conseguiu dinheiro para uma nova embarcação. O Cirella II.

Uma nau duas vezes maior que o barco anterior. O casco azul escuro ostentava as cores da bandeira do pavão que tremulava sobre um grande mastro ornamentado por esculturas de longas plumas em todo o seu comprimento. Na proa, uma águia se pronunciava de asas abertas, com as garras envoltas em plantas e ervas esculpidas no próprio casco. O castelo de popa se elevada muito acima das pequenas construções portuárias e o leme era dourado, lembrando a todos a rota que perseguia nosso capitão. Os grandes porões do novo Cirella acomodavam mais que o dobro de carga de nossa antiga embarcação e acima do convés, as enormes velas cinzentas aguardavam ordens para zarpar. As famosas carrancas do Cirella continuavam a adornar a nau, mas agora em número bem menor e de menores proporções. A bandeira da embarcação tremulava no topo do mastro e, agora, abaixo do escudo cinza com o pavão azul, um listel com a inscrição Aurum Omnia Vincit rezava o credo de Tino Sadiano.

O estratagema surtiu efeito. Os homens que estavam em dúvida quanto a sua permanência vislumbraram uma esperança na imponência do novo Cirella e mais uma vez se uniram sob o pavilhão azul e cinza de Tino Sadiano. Uniu-se ainda a nossa tripulação Oséas Sisar. Um velho ex-marujo, que vivera quase todos os seus anos no mar e agora passava a maior parte do tempo junto ao cais olhando as ondas e contando histórias para os novos marinheiros. A função do Velho Oséas seria então intermediar a delicada situação entre a equipe e o capitão, além de com sua experiência, indicar mudanças na maneira como o Capitão comandava o navio, estocagem de mercadorias, assessorando de modo geral Tino. Para suprir os homens que haviam abandonado o Cirella, foram contratados mais alguns marinheiros e depois de tudo acertado e vários meses em terra, nos fizemos mais uma vez ao mar. O Cirella, agora muito maior, partiu em um amanhecer nublado onde o sol espiava aqui e ali por entre as nuvens. A maioria dos homens estava feliz de voltar ao mar, sentir o vento salgado no rosto e o balanço das ondas, de se lançar em uma nova viagem. Mas ainda assim tinham a expressão nublada como o dia de nossa partida. Evidentemente, a confiança da tripulação ainda não havia sido reconquistada. Os dias foram passando e o Velho Oséas andava por todo o navio, conversava com a tripulação e contava suas histórias de aventuras as mais diversas. A tripulação, já desconfiada com todos os acontecimentos, demorou um pouco para acolhê-lo, mas depois todos já estavam torcendo para que o velho marinheiro realmente conseguisse desempenhar as suas funções da melhor maneira. Uma das primeiras melhorias sugeridas por Oséas Sisar foi quanto aos rumos e modo de navegação. Era de praxe sob o comando de nosso capitão que, uma vez definido nosso objetivo e traçadas as rotas ideais para chegar até ele, essas rotas fossem com freqüência mudadas, quase que a esmo ou aleatoriamente. Por isso era comum levarmos muito mais mantimentos do que o necessário para a viagem, devido ao tempo extra que perdíamos nestes desvios.
Igualmente, era deveras trabalhoso manter os registros de bordo precisos, uma vez que, aparentemente sem prerrogativa ou objetivo, Sadiano nos levava a mares e rotas desconhecidas que nada tinham com nossos objetivos inicias. Objetivos esses que também eram mudados com a mesma facilidade com que mudam os ventos. A sugestão de Oséas foi de que uma vez definidas as rotas, com base nos estudos cartográficos, dos ventos, astros e marés, essas rotas se mantivessem inalteradas tanto quanto possível. Com alguma resistência de sua parte e pressão por parte da tripulação, Tino acabou acatando as sugestões de Sisar e, por algum tempo, o Cirella navegou veloz pelo oceano, nos permitindo atingir novos portos. Infelizmente as mudanças não foram duradouras e em pouco tempo estávamos novamente errantes pelas ondas.

Assim os meses se passaram, de porto em porto, com Oséas fazendo as mudanças no Cirella e o Capitão Tino comprometendo estas mudanças. A credibilidade de nosso capitão voltava a cair e sua sede por riquezas a aumentar. E quanto mais ela aumentava, mais ele se distanciava de sua tripulação. Mesmo Bogus fora deixado de lado e tratado como mais um dos marujos. Logo a desconfiança se instalou a bordo do navio e o capitão, junto ao seu conselheiro Rastani, começava a demonstrar sinais de paranóias e neuroses. Era como se fossem assombrados por fantasmas que eles mesmos criaram. E com o tempo esses fantasmas se tornaram reais. Suas dúvidas o tornaram recluso e taciturno, seu ouro o tornara arrogante e avaro, seus medos o tornaram agressivo. Não demorou para começar a ver nos conselhos do Velho Oséas ameaças de sabotagem ao seu navio. E não demorou para que o pobre e velho marujo fosse dispensado numa ilha qualquer acusado de traição. A ponte se tornara o seu reduto, de onde, pelas frestas das escotilhas ficava espionando os marinheiros em seus afazeres e horas de folga. Incentivado por Rastani, espalhava rumores pelo navio, colocando os marinheiros uns contra os outros na esperança, creio eu, de enfraquecê-los e evitar um motim. Com freqüência os marinheiros recebiam apenas parte de seus pagamentos pelas viagens, sendo o restante pago muito depois. Os marinheiros, em mares tão longe de casa, não tinham outra opção a não ser aceitar e aguardar. O Capitão acusava baixos lucros, mas enquanto os marinheiros aguardavam seus dividendos, a cabine de Tino Sadiano era ornamentada cada vez mais e não lhe faltavam vinhos ou carnes em suas refeições. Nesse período Áspero com freqüência voava pelo convés e depois à cabide do Capitão. De vez em quando Rastani passava pelo convés acompanhando o trabalho com olhos atentos e os lábios mudos. À noite, podíamos jurar ouvir passos furtivos e olhares dissimulados nas sombras. O Cirella estava sob vigia.

Dessa forma chegamos ao início do inverno a uma península para reabastecer-nos de provisões. O povoado era grande e sua economia se concentrava no comércio de ervas para os mais variados propósitos. Passamos apenas um ou dois dias em terra, se bem me lembro, mas esse tempo foi suficiente para o Capitão levar mais um tripulante a bordo. Um comerciante de ervas que Sadiano conhecera naquela ilha. Um homem baixo de cabelos ruivos e olhos pequeninos que vestia quase sempre roupas verdes e tinha uma voz quase infantil. Usava adereços diversos em torno dos pulsos, pescoço e nos cabelos, e trazia sempre consigo um estojo com as ervas que comercializava. Os ornamentos chamaram a atenção do Capitão, que via no pequeno homem uma grande oportunidade para vender nossas especiarias. Tino abordou o pequenino que se apresentou com sua vozinha fina apenas como Peregrino, e disse que vivia caminhando e vendendo suas ervas por onde fosse. Tinha mesmo, segundo disse, vários mascates que vendiam seus produtos por ele e que ele ganhava assim muito dinheiro. Nosso capitão disse que entendia perfeitamente, uma vez que também tinha vários marinheiros que trabalhavam no grande Cirella para seu próprio benefício. O pequeno Peregrino retrucou, dizendo que de forma alguma se tratava da mesma coisa. Segundo ele, os mascates que vendiam suas ervas não eram seus contratados. Eles lucravam diretamente com suas negociações, sendo que apenas enviavam parte dos lucros ao Peregrino, que cultivava as ervas em locais ermos longe do alcance de todos. Dessa maneira, segundo o herborista mercador, ganhava volumosas recompensas, assim como seus mascates. Seduzido pelos ornamentos, pelos argumentos e pela promessa de grandes lucros do Peregrino, nosso capitão, em vez de vender nossas especiarias, abarrotou os porões do Cirella com as ervas compradas do herborista e lhe concedeu livre tráfego em sua embarcação para levar suas ervas aos mais distantes portos. Assim, quando deixamos a península, boa parte da capacidade do Cirella fora comprometida com o espaço nos porões reservados para os novos negócios de Tino Sadiano, e uma pequena saleta foi improvisada nos porões de nossa nau para acomodar o novo tripulante. Enquanto isso Rastani fazia as contas dos possíveis futuros lucros.

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