sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte VII

Nestes mesmos dois dias, um outro acordo também selaria outra grande perda para nós. Através de mapas encontrados por acaso, o capitão Tino Sadiano achara uma nova rota para uma pequenina ilha vulcânica extremamente fértil. Seus moradores produziam de tudo. Era um verdadeiro celeiro. E uma grande oportunidade para qualquer bom mercador. Ainda que não fosse tão lucrativo, esse novo mercado garantia visibilidade ao Cirella com seus produtos exóticos e raros, desejados pela burguesia emergente. Na segunda noite de nossa estada, enquanto bebia com oficiais de outras embarcações, nosso capitão contou suas proezas com o Cirella, inclusive como driblara, ele mesmo, os recifes de corais, manobrando o navio. Um destes oficiais, no entanto, já havia ouvido sobre essa nossa história e fez um comentário que, ainda que indireto, era pouco elogioso ao nosso capitão. Comentou ainda que os danos que ele havia visto em nosso barco pareciam consideráveis, visto que a embarcação era relativamente pequena e o capitão não tão experiente. Tino Sadiano não se conteve ao ouvir tais palavras e começou a exaltar as qualidades de sua nau, que ela era muito superior a qualquer outra que se interpunha em suas rotas e que desafiaria qualquer um em velocidade e maestria nas manobras. Um dos oficiais na mesa, capitão de outro barco, disse-lhe em tom irônico que se não fossem as avarias no casco de nossa “pequena embarcação” ele aceitaria o desafio. Acuado frente à pilhéria nosso capitão ousou afrontar diretamente o oficial propondo a seguinte aposta. Na manhã seguinte, os dois zarpariam com seus barcos rumo a uma ilhota a um dia de distância. A primeira embarcação que contornasse a ilhota e retornasse ao cais seria a vencedora. O capitão da outra embarcação aceitou a proposta e disse ainda que se perdesse a aposta daria ao capitão Tino um mapa de um canal ao norte que levaria a uma mina de grandes riquezas. Para chegar lá era preciso navegar cuidadosamente por um pequeno rio de águas negras e, para tanto, seria necessário o tal mapa. Em troca, nosso capitão empenhou o mapa de nosso novo mercado. O vencedor levaria tudo. O perdedor deixaria o cais de mãos vazias. Tudo acertado, o capitão retornou ao Cirella atracado e mandou acordar todos os homens. As ordens eram claras: devíamos restaurar e preparar o Cirella para a manhã seguinte para zarpar na contenda.

O casco estava praticamente consertado, mas a quilha ainda precisava de reparos finais. Além disso, teríamos que virar a noite para deixar tudo pronto para a partida. Fernão, que já havia ficado de vigília na noite anterior, apresentava as olheiras de uma noite insone e mesmo ele não foi poupado. Desci à minha cabine e passei a noite sobre os mapas, estudando as correntes para tentar aproveitar ao máximo as chances que nos poderiam ser dadas pelo mar. Lá em cima eu ouvi as vozes dos homens trabalhando sob os gritos do capitão e o grasnar nervoso de Áspero. Rastani Cain enviou Frei Renalier para descobrir qual seria o barco adversário que enfrentaríamos. Quando retornou, o sacerdote parecia um pouco preocupado. O Pope Arug era um grande navio cuja tripulação era, na maioria, de homens do sul liderados por um experiente capitão chamado Arug. As informações que nosso bom frei conseguiu foram que o capitão não tinha tanta experiência quanto nós nestas águas, o que poderia nos dar uma vantagem por conhecer melhor o terreno e as armadilhas da rota. Mas o Pope Arug era visivelmente maior e mais preparado que o Cirella, além de contar com muito mais homens a bordo. A noite se passou ao som das marteladas e do preparo das velas e, na manhã seguinte, estávamos todos cansados — aqueles que ficaram de vigília, como Fernão, exaustos. Mas o Cirella estava pronto.

Com o reflexo do nascente sobre a água, os dois barcos deixaram o cais. Ao sinal as velas foram desfraldas e o vento soprando forte deu início à corrida. As primeiras horas nós fomos seguidos de perto pelo Pope Arug e a dianteira nos deixava confiantes e esperançosos. Mas, uma vez deixando as águas rasas, nosso adversário começou a ganhar velocidade e víamos a nau se aproximando em uma rota praticamente paralela a nossa. As velas latinas da nau impulsionavam a embarcação que ganhava terreno com velocidade. O Capitão ficava cada vez mais nervoso, andando de um lado para o outro, coçando repetidamente as costas da mão e outros locais os quais não me atrevo a relatar para preservar o próprio Sadiano. Menos de uma hora se passou até que o Pope Arug estivesse lado a lado com o Cirella, o casco rasgando as ondas a menos de cem metros de nós. Não demorou para que navegássemos perseguindo o leme de nosso adversário. Ao fim do dia chegamos à ilhota que marcava o ponto de retorno e perdemos de vista nosso concorrente, que já contornava a ilha. Bogus reuniu os homens para traçarmos uma estratégia para reverter nossa situação. Um estratagema igualmente ousado e arriscado. A ilha era cortada por um rio de águas salgadas que a singrava de ponta a ponta. Quando a maré enchia o mar avançava sobre o rio e era possível atravessar a ilha pelo rio. Quando a maré baixa, os bancos de areia se tornam aparentes fechando o canal. Nossa estratégia era entrar rapidamente no canal e, antes que a maré baixasse para fechar nosso caminho, atravessar a ilha saindo à frente do Pope Arug. Aproveitamos que nosso concorrente estava fora de vista para dar início a nossa estratégia.

Com a maré ainda alta não foi difícil adentrar a foz do canal, que era relativamente grande. Uma vez dentro deste rio, lançamos mão dos remos para impulsionar o barco. Era preciso fazer todo o percurso extremamente rápido, do contrário ficaríamos presos na ilha por mais um dia inteiro. Com as árvores que nos cercavam no leito do rio, os ventos perderam força, mas apoiado pela corrente, pelo pouco vento que nos restava e por nossos remos conseguimos imprimir um bom ritmo, o que nos dava esperanças novamente. Neste momento Bogus já não era um Imediato, apenas mais um marujo. Isso acontecia com freqüência e não me cabe aqui julgar se acontecia para melhor ou para pior. O fato é que realmente precisávamos de mais braços para remar, de modo que mesmo o leitor sendo um experimentado capitão, não iria censurar nosso Imediato naquela situação. O estandarte do pavão em azul e cinza ainda tremulava na noite e a única luz provinha de nossos archotes e das estrelas. Passamos a noite toda nestes esforços e a tripulação teve pouco descanso. Mesmo o Frei Renalier ajudou na propulsão do navio e, sob as ordens de nosso capitão, nosso cozinheiro veio gentilmente servir os homens que remavam para que estes não precisassem parar seu trabalho. Nas horas em que o Capitão se retirava para descansar, víamos vez por outro Áspero voando entre os remadores como se verificando a tripulação. Depois ele voltava ao seu poleiro para passados alguns minutos voar novamente pelo convés, com aquelas penas verdes espalhando migalhas de biscoitos sobre nós. Já havíamos vencido metade do rio quando um elevado de rochas se interpôs interrompendo de vez o vento. A velocidade do barco caiu vertiginosamente e a propulsão ficara apenas por conta da corrente e de nossos remos. Já víamos a foz do canal que nos daria passagem para o mar, mas as águas baixavam e, sem o vento, teríamos dificuldades em vencer os bancos de areia. Empregamos todos os homens e todas as forças para ultrapassar os rochedos e retomar os ventos enquanto o céu começava a trocar de cor, do negro para um azul escuro, prenunciando a manhã. Por sobre as árvores, Fernão, que estava no alto do mastro à procura de nosso adversário localizou o que pareciam ser as luzes da embarcação ao longe na noite. Até nosso cozinheiro passou aos remos deixando apenas o capitão, que controlava o navio e Fernão, que vigiava nossos adversários e os bancos de areia de fora.

Com muito esforço passamos os rochedos e os leves ventos começaram a encher nossas velas novamente. Apagamos nossas próprias lanternas para surpreender o Pope Arug na saída do rio e à medida que os ventos inflavam as velas, ganhávamos velocidade. A maré, porém, baixava rapidamente e o risco de ficarmos presos na ilha crescia a cada minuto. Na foz daquele rio saímos na escuridão quase lado a lado com nossos antagonistas. Eles navegavam rente à costa e estávamos perigosamente próximos deles a ponto de poder ver a cara de espanto de Arug ao ver o Cirella empinando por sobre os bancos de areia e se chacoalhando sobre as ondas que se encontravam com o rio sob seu casco. No momento em que cruzamos os bancos de areia, o vento matutino que soprava na costa golpeou as velas com tal violência que não pudemos controlar nossa embarcação que se lançava sobre nosso oponente. Manobrando o melhor que pudemos, conseguimos apenas evitar uma colisão frontal. O Cirella abalroou o casco de nosso adversário e o impacto acabou por danificar as duas embarcações. O Pope Arug, apesar do seu porte, sofreu mais com o acidente devido as carrancas gigantescas que ornamentavam o Cirella. Uma delas, em forma de uma águia grotescamente esculpida, rachou da amurada de nossa nau e cravou-se no casco de nossos adversários, causando grande estrago. Muito menos avariado que o que o barco do Capitão Arug, o Cirella foi ganhando terreno em meio as imprecações que ecoavam do Pope Arug e das comemorações do nosso convés. Só depois de alguns minutos e da euforia inicial é que nos demos por falta de Fernão, que no momento do impacto devia estar no alto do mastro. Avisamos Bogus assim que percebemos o que ocorrera e lhe dissemos que avisasse o capitão para que retornássemos e resgatássemos nosso companheiro que, imaginávamos, teria sido lançado de nosso mastro ou ao mar ou ao barco de nossos concorrentes. No entanto o capitão temia que o Cirella não agüentasse muito tempo com suas avarias e que devia levar nosso barco o quanto antes ao cais. Disse que Fernão estaria bem, uma vez que certamente os homens de Arug não deixariam um marinheiro no mar e que ele seria bem tratado até a volta, que faríamos no dia seguinte para resgatar nosso companheiro e nossos adversários.

Bogus ficou irremediavelmente irritado, dizia que era claro que a pressa de nosso capitão era em busca do prêmio e de derrotar seu adversário. Porém, ainda assim, ele não poderia ignorar as ordens do capitão sem ser acusado de começar um motim. Frei Renalier o acalmou o melhor que pôde e todos os homens se determinaram a levar o Cirella até o cais e imediatamente, com outro barco se necessário, partir para o resgate de Fernão. Com as avarias nosso retorno foi bem mais lento e durante todo o trajeto nenhum de nós dirigimos a palavra a Sadiano. Na maioria, evitávamos estar no aposento que ele. O clima era pesado e, se a palavra motim já havia passado pela cabeça de alguns, talvez já tivesse sido sussurrada por outros. Pouco antes de nossa chegada, uma tempestade se abateu sobre nós. Já víamos a costa e seguimos até ela com o Cirella fazendo água e rangendo em cada uma de suas tábuas. O mastro principal estava danificado e algumas das amarras das velas haviam se rompido. Com a amurada quebrada, várias partes do convés eram perigosas e manobrar o barco se tornou uma tarefa hercúlea. Chegando ao cais, em vez de atracarmos nos chocamos contra ele. Um dos pilares de sustentação cedeu danificando o cais e nosso casco. Com a ajuda de marinheiros e estivadores de outros barcos conseguimos nos pôr a salvos e fomos levados a algum lugar onde pudéssemos nos recompor. Aquela noite não havia mais nada a fazer por Fernão ou pelos tripulantes do Pope Arug. Apenas o capitão Tino Sadiano mantinha um brilho vivo no olhar, enquanto os outros estavam amuados. Nós chegáramos ao cais antes de nossos adversários.

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