segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte IV

Era uma curiosa tripulação aquela do Cirella. Era formada por homens de diversas localidades, umas mais próximas de nosso porto, outras mais distantes. Alguns de outros países, o que era uma fonte de orgulho do capitão Tino, que se vangloriava do fato vez por outra. Dentre os marinheiros, eles variavam bastante em termos de experiência. Junto a homens cujas faces marcadas e mãos calejadas denunciavam os anos no mar, vi vários que aparentavam uma inexperiência quase infantil que, à minha primeira impressão, foram tomados por aprendizes nos ofícios a bordo de um navio. Alguns dentre a tripulação ainda se mostravam jovens valores e, apesar da aparente pouca idade, se mostravam extremante habilidosos no manejo dos cordames, ajustes das velas e nas tarefas diárias. Dentre eles ainda se destacavam homens distintos que claramente aproveitaram suas viagens para carregar e enriquecer suas mentes além dos porões dos navios em que trabalharam, e alguns cujos braços, mãos e pernas eram mais exigidos do que uma mente afiada. Uma tripulação variada e sem dúvida alguma superior em número, experiência e qualidade, às quais eu já trabalhara até então. Dentre eles não poderei me deter para apresentar todos, mas caso o mar que agora nos ameaça e o nevoeiro que agora nos cega não nos sejam complacentes, é preciso que se faça justiça e que se lembre do nome de alguns de meus companheiros. Se o tempo me permitir irei aos poucos apresentando os diversos personagens com quem convivi nesses meus três anos a bordo do Cirella. Se não me for possível, espero que estes homens sejam lembrados por aqueles que deixamos para trás, seguros em terra firme.

Além de Tino Sadiano, o capitão desta amaldiçoada embarcação, um homem aparece como seu braço direito e homem de confiança: Rastani Cain. Um homem carrancudo e diminuto, de compleição física frágil e um rosto fino coberto por uma rala barba acinzentada. O queixo adunco e os olhos fundos marcam os contornos do crânio por sob a pele do rosto. Lembro que já então o homem se mostrava frio no contato com quase todos na embarcação e, segundo diziam meus companheiros, fora dela também. Rastani e Sadiano eram parceiros de anos e isso conferia, desde então, mais poder à voz fina e esganiçada do conselheiro. Apesar disso, Rastani não passava de uma sombra de seu capitão. Como fui descobrir com o passar dos anos, o homem não estava qualificado para os exigentes trabalhos no mar, em que por vezes, é preciso ficar por diversos meses sem aportar, ou lutar contra ondas bravias, ou manobrar heroicamente em combate ou em fuga de corsários. O mar é exigente com aqueles que acolhe. O homem que pretende viver sobre as ondas precisa ser talhado para isso. Rastani Cain não é um destes homens. Quase tudo do pouco que sabe sobre a vida em um barco mercante aprendeu a bordo do Cirella. Mas isso não abala a confiança de nosso capitão em seu conselheiro. De fato, de algum modo, creio que a fortalece, deixando Rastani como o responsável pelo controle dos lucros do Cirella, controlando entrada e saída de mercadorias e valores. Com o passar do primeiro ano entre meus companheiros, aprendi a conviver com a sombra de Rastani se esgueirando pelo navio e apenas vez por outra me pegava praguejando contra ele. Na verdade, naquele primeiro ano e no início do ano seguinte, não tive muito contato com Rastani. Passava a maior parte dos meus dias junto aos marinheiros. Além destes homens o Cirella conta com marujos responsáveis pela carga e mantimentos; um cozinheiro; nosso experiente cirurgião, Frei Renalier; e o Imediato Bogus Napolle, um homem do mar, que comanda os marinheiros e responde pelo navio na falta do capitão. A embarcação não conta com apoio militar, sendo que em caso de necessidade, a própria tripulação se põe às armas, procedimento comum na marinha mercante que faz as rotas do Cirella. Felizmente não foram muitas as vezes em que se fez necessário empunhar armas a bordo, de modo que nosso bom Frei Renalier se ocupava mais com seus sermões e com as pequenas enfermidades cotidianas do que com ferimentos de batalha. No entanto, temo que nossa situação atual ainda vá dar muito trabalho ao nosso sacerdote. Se não cuidando dos enfermos, orando por nossas almas.

Nenhum comentário: