Um grito esganiçado acordou os homens aos sustos na manhã de nossa partida. Primeiro pensei que fosse o grito irritante de Rastani dando algum toque de alvorada desafinado, mas logo percebi que se tratava do grasnar de alguma ave. No momento atribuí ao sono, mas podia jurar que a tal ave gritava “oportunidades, grah, oportunidades”. Só quando me fiz ao convés com os homens é que fomos descobrir o motivo da algazarra. O grasnar era do novo animal de estimação que o Capitão havia conseguido naquela ilha (parece que trocara o bicho por meio garrafão de azeite). Era um papagaio magricela de penas verdes eriçadas, que corria de um lado para o outro em um poleiro instalado no convés. Pelas penas eriçadas que lhe davam um aspecto “espinhado”, e pelas migalhas de biscoitos que viviam em sua penugem, o pequeno grasnador foi apelidado pela tripulação de Áspero. Por vezes o papagaio parecia desaparecer da vista de todos, passando quase despercebido. E quando você se virava lá estava ele, com o pescoço magro esticado e os olhos curiosos vendo o que você estava fazendo. Chegou a correr um boato, mais tarde entre os marujos, que o capitão treinara a ave para vigiar a tripulação e lhe contar o que via. De minha parte não sei se creio em boatos, mas no mar não se descarta nenhuma história, pois algum dia ela pode voltar com a maré. Mas por fim, Áspero acabou de certo modo divertindo a tripulação. Quando alguém se aproximava da ave ela ficava visivelmente estressada. Começava a andar nervosamente de um lado para o outro em seu poleiro e, quando falavam diretamente a ele, o papagaio começava a dar pequenos grasnados. Os marinheiros divertiam-se falando rispidamente à ave, que parecia entrar em pânico e gritar palavras desconexas andando de um lado para o outro com as penas eriçadas e tremendo. Apesar da crueldade, realmente era uma cena deveras engraçada. Até hoje a ave vive em seu poleiro no convés e acompanha a nós, os condenados do Cirella, em nossa bem menos engraçada situação.
Há cerca de vinte minutos fui informado que entre nossas avarias perdemos a âncora e o leme está extremamente danificado. Alguns dos homens estão checando a situação e estamos torcendo para que haja alguma maneira de consertá-lo com o equipamento que temos a bordo. Por hora estamos totalmente à deriva, com o casco fragilmente remendado a bombordo e perdemos parte de nossa carga. O clima está esfriando e me pergunto se já não estamos sendo levados muito ao sul pelas correntes. Parte de meus equipamentos também se avariaram e o céu continua encoberto nesta águas desconhecidas. Com os mapas e os instrumentos que me restam posso apenas fazer suposições muito mal aproximadas de nossa localização. Ainda assim deixarei as anotações anexas a este diário para o caso que alguém o localizar e realizar uma busca por sobreviventes. O Cirella apenas bóia com seu casco inclinado, mas creio que temos mantimentos suficientes para nos mantermos ainda por um bom tempo nesta situação. A tripulação tenta se manter unida e firme, mas já é possível ver que alguns de nós começamos a fraquejar e dar sinais de perder as esperanças. Se o Cirella algum dia voltar a navegar suavemente pelas ondas ou a aportar em algum cais, creio que dificilmente todos ainda estejamos a bordo. Alguns já se foram. Vários deixaram a embarcação pelos portos por que passamos, outros não suportaram as agruras de nossas desventuras e outros poucos o mar recebeu. Não sei ao certo o que nos levou ao nosso atual e calamitoso estado. Creio que seria infiel à verdade se citasse apenas um motivo como responsável. Várias situações foram se somando até nos trazerem aqui. Já faz algumas horas que não tenho notícias de nosso capitão. A sua ausência vem como um alívio ao resto da tripulação, e ajuda a cada um de nós a recuperarmos um pouco de nossas forças e nos colocarmos novamente em condições de buscarmos uma solução para nossa delicada situação.
Voltando ao meu relato, não sei ao certo quando as coisas mudaram tão violentamente de rumo. Acho que aos poucos tudo foi mudando, as excentricidades de nosso capitão se acentuando, mas, como os fatos se desenvolviam lentamente, acho que nenhum de nós percebemos até que fosse tarde demais. Os primeiros sinais, creio eu, surgiram já ao final de 1666. Até então as manias do Capitão Tino haviam se limitado a colocar os homens para esculpir suas famosas carrancas cada vez maiores, adornando o barco com mais destas estátuas de madeira. Não havíamos perdido nenhum homem em combate ou por doenças e desde que eu ocupava meu posto a tripulação só crescera. Mas naquele final de ano tivemos nossas primeiras baixas como equipe. As ordens do Capitão começaram a destoar naquela época. Ele transmitia suas ordens ao seu Imediato, que as levava à equipe e, quando esta estava em plena atividade, o Capitão surgia dando novas ordens. Era evidente o descontentamento de Bogus nessas horas, mas ele acatava as novas ordens e a equipe era obrigada a redobrar seus esforços para cumprir a tarefa. Igualmente por mais de uma vez navegamos por rotas menos seguras ou desnecessariamente longas por motivo do capitão mudar meus traçados de navegação. Não que eu fosse avesso à intromissão de outros, com freqüência discutia as melhores rotas debruçado sobre os mapas com Bogus e o capitão, mas quando essas mudanças surgiam repetidamente era bastante complicado manter os registros do Cirella corretos e nosso barco no rumo adequado. Além do que o Capitão já me quebrara um compasso e um sextante tentando traçar rotas. A nossa primeira baixa foi justamente no final daquele ano. Saíamos de um canal desviando dos bancos de areia. Ainda era cedo, pouco depois da aurora. Mais adiante avistamos uma cadeia de corais perigosamente em nosso caminho. Minha sugestão era navegarmos a bolina contornando os corais para evitar manobrar entre eles, uma vez que eu temia que o calado do Cirella fosse demasiado profundo para uma passagem direta. O Capitão, no entanto, queria ganhar tempo e aproveitar os ventos para cruzar por entre os corais. E a sua vontade prevaleceu. Sob o comando de Bogus aproamos em direção dos corais e toda a tripulação se preparou para a empresa. Ouvíamos os gritos desesperados de Áspero que parecia prever o pior. Frei Renalier preparou seus aparelhos e praguejou baixinho contra Tino Sadiano, depois se benzendo para se redimir. À medida que nos aproximávamos dos corais a dificuldade de manter o rumo do Cirella aumentava. Os caminhos eram estreitos e o casco rangia ao toque sob a água. Era um jogo de azar. E as apostas não estavam favoráveis. Um bingo dourado sob o sol daquela manhã. Um bingo que iríamos perder. Era uma questão de tempo e não demorou a acontecer. A quilha do Cirella chocou-se aos corais danificando o casco e atirando ao mar um dos marinheiros. Felizmente o mar calmo facilitou o resgate de nosso companheiro e os danos não foram excessivamente grandes. Mesmo assim tivemos que parar no próximo porto para reparos adequados. O marinheiro foi avaliado pelo nosso bom frei e, fora algumas escoriações, não sofreu maiores ferimentos. O Capitão ainda teve a infelicidade de apelidar nosso companheiro de “Caimar”, pelo incidente. Nosso companheiro não achou a mesma graça no apelido que nosso capitão lhe dera e, acusando-o de descaso, deixou o Cirella naquele mesmo porto. No mesmo par de dias que ficamos a reparar nosso navio, Caimar, como apelidou o capitão, acertou seus serviços em uma nau muito maior que estava ancorada ali. Um grupo de boticários e alquimistas que comercializam uma fórmula acinzentada que produziam em uma aprazível ilha no atlântico. Depois daquele episódio nosso companheiro jamais tornara a embarcar no Cirella.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
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