quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Meus dias a bordo do Cirella - Parte Final (XII)

Não recebi nenhuma nova notícia sobre a contenção da inundação nos porões, mas parece que continuamos na mesma situação. O clima continua fechado e a chuva aumentou um pouco, mas ainda não há ventos para soprar para longe este nevoeiro que nos cerca. A temperatura continua baixa e, pela trajetória do Cirella à deriva, creio que devemos estar sob a ação de alguma corrente marítima. Nosso capitão passou por um período dando ordens quase que a esmo, até mesmo contraditórias, mas agora parece estar tentando ganhar novamente a confiança da tripulação e caminha entre os homens congratulando-os pelo trabalho, distribuindo pequenas bonificações e prometendo maior parte nos lucros. Eu mesmo tenho sido alvo freqüente destas iniciativas, mas as promessas continuam promessas, e o Cirella, ainda que sob os nossos esforços de reparação, continua à deriva. Rastani tem ficado mais tempo na cabine contabilizando nossos recursos restantes do que contribuindo para sanar os problemas e o Peregrino agora fica mais retirado do que nunca, e raramente dá as caras no convés ou junto aos marinheiros. Agora, para honrar as recentes baixas que tivemos e os companheiros que entregamos ao mar, devo retomar os meus relatos enquanto a efêmera estabilidade que nos acalenta se mantém presente.

Apesar dos ferimentos, dizia eu, continuávamos a postos encurralando os homens do Amret contra o restante de seus canhões, que miravam maliciosamente o Cirella. O impasse iluminado pelas tochas não dava sinais de ceder frente às negociações de nosso capitão com o comandante do Amret. Nós não abriríamos mão da conquista do porto e eles não aceitariam a derrota de mãos vazias. Naquela noite fora proclamado, sob as chamas inquisidoras das tochas, um acordo do qual jamais falaríamos novamente e do qual a ciência deveria ser sepultada ali, como um dos que padeceram em combate. O Amret e seus homens iriam poupar o Cirella do trágico fim e a nau inimiga não seria destruída por nossos adversários. Eles não mais ofereceriam resistência a nossa conquista do porto e nós poderíamos novamente nos pôr rumo ao nosso desejado destino. Em troca, o Capitão Tino cedera ao capitão do Amret parte da carga e das riquezas que transportávamos no Cirella e se comprometera em agraciar nossos antagonistas com a quinta parte de nossos lucros com as mercadorias do porto, mesmo os homens do Amret não tendo nenhuma participação nos trabalhos e viagens a nossa nova conquista. Um acordo que permaneceu obscuro naquele porão emprenhado pelo pó negro e por homens rubros e abatidos.

Lembro daquela aurora com um pesar ainda constante. Os raios do sol iluminaram o que restara de nossa embarcação e a fila de corpos cobertos pelos tecidos vulgares no nosso convés. Despedimo-nos de nossos companheiros silenciosamente e os deixamos aos cuidados do oceano para um sepultamento no leito daquele que fora o último campo de batalha em que eles adentraram. Passamos o restante do dia calados e tentando colocar o Cirella novamente em condições de navegar, ao menos até algum porto onde poderíamos fazer os reparos de forma mais segura. Naquele dia silencioso só se ouvia a voz de Sadiano se congratulando pela conquista e contabilizando as riquezas que iria tornar a acumular. Enquanto nós, silenciosos, contabilizávamos os danos sofridos pelo Cirella e pelos homens que por ele lutaram.

Acabo de retornar do convés. As novas que trago preencherão estas últimas linhas de mais infortúnios, como se ainda não tivesse relatado suficientes. Bogus reuniu os homens para dar a notícia. Nero sucumbiu há algumas horas. Nenhum de nós nutria muita esperança por sua recuperação, mas as histórias do velho marujo continuarão ecoando nos porões e entre os homens do Cirella.

Uma fina camada de cera separa agora a chama da mesa e o pavio negro pende torto, moribundo. Um silêncio percorre as câmaras restantes de nosso ataúde avariado, enquanto as ondas embalam o mudo Cirella. Um silêncio de luto. Não por aqueles que se foram, nem por aqueles que permanecem, mas pela chama que se extingue sepulta pela cera branca sobre o tampo amadeirado, deixando que a escuridão se apodere por completo da história do Cirella.

Um comentário:

Rodrigo Oliveira disse...

Pronto! A última parte da história do Cirella. Cada parte não chega a compor um "capítulo" porque foram selecionadas meio a esmo, copiando e colando do word tendo como medida só a quantidade de texto. Enfim, uma saga antiga, escrita já há uns bons anos que agora está aqui. Em breve retorno com outros textos mais breves novamente.