sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Treze de Agosto

Olhava para o céu de agosto procurando algo entre a poluição e os vãos do viaduto sobre a cabeça. O pescoço levantado revelava uma barba mal feita e as roupas esfarrapadas tinham a cidade impregnada nas tramas. E a cidade, por sua vez, impregnava-se deles, entre os pés coloridos e pichados "veado" dos viadutos. Mas Seu Coelho não era veado. Só era pobre. Tinha o que lhe cabia na sacola de lona e as cores do viaduto.

— Olhando o quê, Seu Coelho?

Sempre lhe chamavam Seu Coelho. Nem era velho, mal passava dos quarenta. Mas a verdade é que aparentava mais, e ninguém nunca lhe perguntou sua idade.

— Lua cheia hoje. Não dá de ver por causa da fumaça, mas tá mais claro lá, ó. Lua cheia.
— E daí?
— É bonito, só. Mais bonito que o viaduto ao menos.
— Sai daí, homem, que tá ficando frio.

E Seu Coelho saiu e foi se juntar aos outros esfarrapados aos pés coloridos dos viadutos, em volta de uma sopa rala, surrupiada do abrigo cuja funcionária fez vista grossa por pena.

O farol alto de um carro projetou na parede as sombras negras dos esfarrapados. Animais acuados, alguns fugiram assustados, outros paralisaram. Os faróis baixaram, deixando só as luzes de cidade acesas. O capô trazia um felino prateado à frente. Seu Coelho, de orelhas em pé, junto aos outros homens, aguardou. A porta do motorista se abriu. Um homem magro saiu, metido num terno preto. Conferiu nas mãos uma folha de papel, olhando para os homens por cima das lentes dos óculos apoiados sobre o proeminente nariz adunco. Mirando Seu Coelho com olhos de rapina citou em uma voz gentilmente treinada:

— Senhor Jeremias Antônio Coelho.

O motorista revelava, nas mãos, para os homens curiosos, uma fotocópia da ficha do abrigo, com os dados médicos, cadastrais e uma fotografia 3X4 recente de Seu Coelho.

O homem coçou os já prateados fios da barba, adiantou-se, conferiu a ficha. De fato, era a ficha do abrigo. Levantou os olhos ao magro motorista, com o ronronar do carro ao fundo.

— Não se preocupe — disse o homem abrindo a porta traseira do automóvel — Ah! — continuou — antes que me esqueça, o abrigo pediu para entregar isso. Disseram que era para o custeio da viagem. Acho que faz parte do intercâmbio.

Seu Coelho abriu o envelope que lhe foi entregue, dentro, poucas notas de cinquenta reais. No interior do carro, o calor e o aroma de alguma massa recém assada pareciam convidativos.

— Vamos? Perguntou o homem de óculos.

Seu Coelho olhou para o céu e, entre vias de concreto e lufadas de fumaça, viu por um momento a lua espiar por trás das nuvens. Deu um suspiro profundo, quase de entrega, colocou o envelope no bolso, deu de ombros e entrou no carro. O mundo lhe passava pela cabeça.

Dentro do carro de bancos de couro, uma embalagem de uma pizzaria próxima o aguardava no banco traseiro.

O motorista olhou para trás por sobre o banco:

— A viagem não deve demorar muito, mas achei que poderia estar com fome. Peguei agora mesmo. Espero que não se importe, mas peguei um pedaço.

Seu Coelho balançou a cabeça, mas, antes que pudesse dizer "não tem problema", uma lâmina opaca subiu entre ele e a cabine do motorista. Só então percebeu que as janelas eram igualmente opacas. Uma música suave tocou enquanto o carro se pôs em movimento. Seu Coelho, lá dentro, abriu a embalagem de pizza, com uma fatia a menos, e tratou de aplacar o estômago ruidoso.

O carro rodava sem solavancos. Ao contrário da cabeça de Seu Coelho. Não sabia se deveria crer no motorista sobre o intercâmbio do abrigo. Já se imaginava atirado na entrada de outra cidade, jogado de novo no mundo para sair à procura de outro viaduto de pés pintados noutra urbe poluída para impregnar-lhe as roupas rotas. Imaginou-se, jogado na rua, já sem vida, um resto esfarrapado de gente. “Vazio de vida, mas ao menos de bucho cheio”, pensou. Deixou o pensamento pairar-lhe à mente sem medo e perguntou-se se já não estaria de todo esvaziado da vida. Já não ligava, apenas deixava-se levar, ao som da música, o embalar do couro, o sabor e o cheiro da pizza. Era o melhor momento que lhe havia aparecido há muito. Que viesse o que fosse, que ali lhe valiam os anos todos sob o concreto à caça de algo para comer. O felino prateado puxava o carro pela autoestrada guiado por uma lua cheia de agosto, que Seu Coelho não podia ver.

O som de cascalho sob as rodas e as curvas sinuosas revelaram que o motorista saíra da via principal. Seu Coelho imaginou um terreno ermo onde seu corpo descansaria coberto por ervas daninhas sem deixar saudade. Ignorou o pensamento e deixou-se invadir pela música. Recostou-se nos bancos macios e permitiu-se quase cochilar. A viagem de pouco de mais de uma hora fora o momento de maior conforto e prazer — e paz até — que havia tido nos últimos anos na rua. A mente estava calma, sublimando para um estado de sonolência, quando os freios suaves fizeram o carro parar.

Ouviu a porta do motorista se abrir. Passos do lado de fora. A porta traseira finalmente abriu para uma noite clara e iluminada por uma lua cheia brilhante num céu estrelado de poucas nuvens. O homem de óculos falou apenas "Chegamos, Senhor Jeremias".

Seu Coelho saiu do carro. Os sapatos velhos deram num chão de terra batida, cercado de um gramado bem aparado e um lago brilhante distante. A estrada se perdia numa espécie de pasto. Ao longe era possível ver a silhueta de uma cerca de madeira e ouvir o relinchar de algum cavalo. Uma casa grande, à frente, o aguardava. As paredes eram de pedra até cerca de um metro de altura. Acima disso, eram chapas de madeira nobre que se erguiam até o telhado de telhas acinzentadas. Um perdigueiro grande de cara escorrida veio cheirar-lhe as vestes. Num movimento brusco, retirou o focinho aguçado, agredido pelos restos de cidade agarrados às fibras puídas, e retornou para algum lugar atrás da construção. O motorista abriu a porta principal e fez um gesto convidando o passageiro a entrar na casa.

O assoalho rangeu em boas-vindas, dócil. Das arandelas escorria pela parede uma luz amarelada e a um canto, uma lareira crepitava confortavelmente com uma velha espingarda de caça decorando a chaminé.

— A sua estada, tenho certeza, será bastante confortável. Venha, deve haver um banho aguardando o senhor.

O motorista de nariz adunco acompanhou Seu Coelho até uma porta, que se abria para um banheiro coberto com uma parede coberta de arabescos e pastilhas de vidro ao redor do box. Do outro lado, uma banheira cheia de uma espuma fumegante aguardava.

— Fique à vontade. Chamarei alguém para... — fez uma pausa proposital — deixá-lo mais à vontade.

O homem saiu, deixando Seu Coelho só no banheiro. Um cheiro de eucalipto cobria o fedor das suas roupas. Pela estreita janela basculante, o luar espiava curioso. Não havia tranca na porta. Mas poucos pudores restavam para quem já tão pouco tinha. Seu Coelho tirou as vestes sujas, jogou-as a um canto, empilhadas, e meteu as pernas cansadas na água quente, submergindo o corpo castigado pelos anos na rua sob a espuma branca e perfumada. Recostou-se na banheira e pensou que se o jogassem morto e indigente num barranco qualquer não se importaria. Relaxou lembrando com certo humor que a espuma lembrava àquela que boiava fedida nos rios sob as pontes em que ele, também fedido, morava. Nem mesmo quando a maçaneta da porta desceu, ele saiu do seu estado de conforto. Só quando viu a mulher de branco entrar é que algum espanto lhe chegou.

Ajeitou-se o melhor que pôde, cobrindo-se com a espuma abundante. A loira devia ter uns 30 anos, tinha o cabelo liso amarrado em um coque atravessado por uma vareta de plástico, também branca. Ela olhou com um sorriso benevolente, mostrando-lhe nas mãos um roupão longo e branco, semelhante ao que ela usava. Pendurou a peça num cabide próximo sob o olhar atento de Seu Coelho. Abaixou-se para pegar o monte de roupas sujas revelando, pela fenda de seu roupão, uma perna longa e bem cuidada e um sugerido contorno de seio aparentemente nu, espiando pelo decote. Ela saiu fechando a porta atrás de si. Seu Coelho mirou o roupão pendurado, tentou relaxar na água quente e mergulhou, lavando os cabelos pastosos.

Passaram-se mais uns cinco minutos, talvez um pouco mais, até que a mulher retornou. Seu Coelho ajeitou-se na banheira, ainda sob a espuma, agora com os cabelos bem menos sebosos e sem o cheiro da cidade na pele. Ela se aproximou com passos curtos, ajoelhou-se ao lado da banheira e pegou a bucha sobre o aparador. Ensaboou o objeto, molhou-o na água e fez menção de esfregar as costas do homem.

— Não precisa. Adiantou-se Seu Coelho, preservando os pudores da moça.

Ela parou por um momento, olhou para ele, e pressionou a esponja contra o seu dorso puído. A esponja quente percorreu os ombros maltratados com suavidade, em movimentos lentos. Subiu o pescoço tisnado do sol, volta e meia retornando às águas quentes e espumosas da banheira. Seu Coelho foi deixando-se relaxar ao toque sutil da esponja, ao eventual toque das pontas alvas dos dedos longos. Dividiu com a mulher um silêncio cúmplice. Ela arregaçou a manga do roupão revelando um braço esguio e bonito. Mergulhou-o na espuma, percorrendo com a esponja cada vértebra das costas de Seu Coelho, contornando-lhe a lombar. Sob a espuma, o corpo desacostumado com um toque gentil ameaçava relembrar a virilidade que há tempo não provava.

A moça empurrou-lhe o peito delicadamente com a ponta dos dedos, para que se recostasse, molhou a esponja na água e começou a ensaboar-lhe o tórax.

Ele sorriu, apenas. Sentiu a esponja descer-lhe pelo abdômen, percorrer-lhe a lateral do tronco, esfregar-lhe a coxa. Sob a água, as mãos dos dois se encontraram. Ao toque, ela mirou-lhe os olhos pardos com os azuis dela. Sorriu — ou riu — sem pudores, mas parou o movimento. Ele, devagar, puxou-lhe a mão até sentir o toque da esponja onde queria. Ela roçou-lhe suavemente com a esponja. Levantou-se, olhou, de pé, para o homem deitado na banheira, soltou o cordão que amarrava o roupão e deixou a peça correr pelos ombros até cair no chão. Meteu as pernas longas dentro da banheira, uma depois da outra, e mergulhou a nudez nas águas quentes, contornando, por baixo da espuma, as pernas dele com as dela. Olhou por um momento para o homem a sua frente, pegou novamente a esponja e começou a ensaboar o próprio corpo, ignorando o companheiro de banheira. Seu Coelho ficou poucos minutos observando a moça de cabelos presos e corpo mergulhado na mesma água que o cercava. Com as mãos tocou-lhe as pernas lisas. Ela apenas o olhou e continuou a banhar-se. Ele se desencostou da banheira, levando as mãos às coxas da moça. Tudo para receber apenas mais um olhar, com o canto do olho. Num movimento quase brusco, com a paciência de quem vive à míngua sob os viadutos sem receber sequer um olhar de uma mulher como aquela, Seu Coelho tomou-lhe a esponja, espirrando com a violência do braço, um pouco de água para fora da banheira. O suficiente para espalhar a espuma, revelando um seio delicado coroado por uma auréola rosada e decorado com uma pequena tatuagem de um arco rebuscado ao lado de uma flecha, ornamentados por motivos tribais. Cobriu o seio da moça com a esponja, fazendo-a percorrer devagar, para baixo, o corpo arrepiado. Viu-a deitar a cabeça para trás e arquear as costas enquanto a esponja se perdia entre a espuma e as pernas da mulher.

Com um pulo, Seu Coelho projetou-se sobre a loira, transbordando a água a cada investida, transbordando emoções represadas, anos suprimidos, rugas precoces. A moça, capturada, subjugava-se às investidas brutas, à barba áspera, ao sabor das ruas que persistia na pele agora limpa. A cidade fica impregnada fundo, onde a água não alcança. Mas agora ela vinha à tona. Transbordava-lhe pelos poros, desprendia-se pelos pêlos, emergia-lhe à pele. A moça agarrou-lhe o pescoço com os braços, envolveu-lhe o lombo com as pernas e sentiu-se transbordar como a banheira. Seu Coelho continuou as investidas até que toda a cidade, toda a rua, toda a vida represada transbordasse também de si. E naufragou exausto nas águas que se acalmavam. Depois de uns dois minutos a moça levantou, em silêncio, vestiu o roupão novamente e saiu pingando pela porta sem tranca do banheiro.

Seu Coelho aguardou uns cinco minutos. Levantou-se, secou o corpo murcho, já não sabia se pela água ou pela vida, e vestiu o roupão branco com um pequeno gamo bordado no lado esquerdo do peito. Abriu, sem muita certeza, a porta do banheiro. No chão, a sua frente, ruas roupas aguardavam empilhadas e dobradas. Pegou-as, retornou ao banheiro e um minuto depois tornou a sair, vestindo as próprias vestes, cobertas com alguma nova essência que desconhecia, mas de aroma bem mais agradável. O homem magro de terno preto o aguardava na sala, em frente à lareira.

— Ah, Senhor Jeremias. — Disse sem emoção na voz ou no rosto. — Seu jantar está servido.

Acompanhou o homem a uma sala lateral onde uma refeição simples mas farta o aguardava. Seu Coelho já não perguntava nada, não esperava nada, não se importava com nada. Comeu com a pressa que se aprende na rua. Ao terminar, o mesmo homem de terno re-apareceu.

— Senhor Jeremias, acompanhe-me.

Seu Coelho obedeceu. Seguiu o homem até a sala onde este abriu a porta da rua. Seu Coelho parou por um momento. O homem de olhar de rapina fez um movimento de confirmação com a cabeça. Seu Coelho saiu pela porta e encontrou o mesmo carro que o trouxe, com a porta traseira aberta. O homem fez sinal para que entrasse no veículo. A lua alta brilhava cheia, retornando com uma lufada de vento o suspiro de Seu Coelho.

O carro serpenteou as curvas levando no ventre Seu Coelho que, lá dentro, não sabia o que pensar. Apreendeu-se imaginando que fim lhe esperava. Não creu na história do abrigo, mas tentava se tranquilizar relembrando que o que quer que o aguardasse, não poderia ser pior que retornar à rua. E de todo modo, havia valido a pena. Viveu numa noite o que não vivera sobrevivendo nos últimos anos. Ouviu com certo espanto o ruído familiar da cidade. O carro parou. Uma sirene soou não muito longe dali. A cidade, à noite, expirava ressonante e insone. A porta se abriu. Seu Coelho saiu e deu com um bairro distante, na periferia. O homem de nariz adunco cerrou a porta traseira, retornou ao posto de motorista e partiu seguindo o felino prateado que puxava o carro.

Uma hora depois, Seu Coelho chegava, a pé, junto aos pés coloridos escrito "veado" do viaduto que lhe servia por teto. Ao mesmo tempo em que, num casarão distante com um Jaguar estacionado em frente, um homem de terno negro e olhos de águia batia à porta de um quarto. Dentro do quarto a mulher loira, sentada na cama sob as caras cobertas, ajustou o robe cobrindo o seio tatuado e pôs de lado um balancete financeiro de uma filial empresarial. Retirando os óculos e colocando-os ao lado do cálice de vinho no criado-mudo, disse:

— Pode entrar.

O homem de terno abriu uma fresta na porta do quarto e polidamente perguntou:

— Senhorita Diana, estou indo me recolher. A senhorita deseja algo mais?

— Não, Tulius. Está tudo bem, obrigada. Boa noite.

— Obrigado. Boa noite, madame.

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