Não sei quanto tempo nos resta. A água já tomou um dos compartimentos inferiores e os homens lutam para impedir que ela se alastre enquanto o avariado Cirella balança à deriva nessas águas desconhecidas. A noite escura como eu jamais vi e o denso nevoeiro que nos cobre há quase uma semana impedem-me de reportar a localização precisa deste cárcere flutuante. Receio pela sanidade do capitão Tino e creio que o diário de bordo do Cirella já não faça justiça aos passos que nos trouxeram até aqui. Portanto transcrevo apressadamente os eventos que culminaram nesta malfadada e fria hora na esperança de que aqueles que, por ventura ou acaso, encontrarem estas palavras façam justiça à memória das almas que se encerram nesta sombria embarcação. Se por acaso não me for possível terminar estes relatos antes do fim, despeço-me já de meu leitor. Adeus. A chama consome a vela e devo logo começar minha história.
— Roderico Ferolli. Cartógrafo e navegador do Cirella.
Três anos se completarão desde que me juntei à tripulação do Cirella. Porém, mesmo antes daquela época já havia ouvido falar do barco mercante, ainda que muito superficialmente. Apesar de não se comparar em tamanho ou em viagens com os barcos das principais rotas e que traziam as melhores mercadorias, o Cirella estava naquela época entre as maiores e principais embarcações da região. Em todos os casos, consideravelmente maior do que o barco mascate no qual eu trabalhara no par de anos anterior. Pelo seu porte, a embarcação do capitão Tino Sadiano também podia se lançar em rotas mais vantajosas e aportar em paragens onde negociam-se as mercadorias por valores mais rentáveis. O Cirella também era conhecido pelas carrancas que exibia na proa e nos mastros. Esculpidas em madeira em tamanhos desproporcionalmente grandes para a nau, as peças empregavam uma aparência quase cômica à embarcação, sendo inclusive, motivo de piadas entre alguns dos marinheiros de outras embarcações, estivadores e trabalhadores que viviam às voltas nos portos próximos. Diziam, porém, que as carrancas eram motivo de orgulho especial para o capitão, a despeito da aparência estapafúrdia de algumas das esculturas. Quanto ao capitão do Cirella, também pouco o conhecia, exceto por alguns boatos sussurrados entre as docas e estalagens próximas ao porto. Contava-se que o capitão havia se lançado à vida ao mar há não muitos anos e que neste pouco tempo havia conseguido algum sucesso que o colocava entre os principais navios daquelas águas, alguns com capitães vários anos mais experientes. Naquela época, enquanto ainda era segundo em comando em uma embarcação mascate, eu soubera que o temperamento do meu futuro capitão já lhe trouxera alguns pequenos atritos com capitães de outras embarcações e em alguns portos. Porém, como soube, nenhum de maior importância. Exceto por um que agora me vem à memória. Contava-se que antes de comandar o Cirella o capitão Tino trabalhava como marinheiro em outra embarcação com vários outros homens na mesma posição. Alguns dos quais, também se tornaram capitães de seus próprios navios, alguns mercantes, outros baleeiros, outros de guerra. Dentre estes estava o atual capitão do baleeiro O Caçador, Earl Dymath. Contam os marujos destas bandas, que durante a vigília do então marinheiro Tino Sadiano, este acordava frequentemente os companheiros aos gritos por avistar algo entre as ondas, apenas para depois verificar-se que de nada se tratava. Àqueles pelos quais ouvi a história, não sabiam dizer se esses avisos falsos eram propositais ou apenas confusões do então marujo. O que se conta é que, cansado dos constantes avisos infundados, Dymath fora tirar satisfações com Tino e que logo se engalfinharam em um combate de violência tal que o atual capitão do O Caçador fez-se ao mar, e foi preciso um grande esforço para que ele não se perdesse entre as ondas. Desde então esta história corre de porto em porto, de embarcação em embarcação e, ao que parece, a inimizade perdura entre ambos os capitães desde então. Mas verdade seja dita, boatos e histórias tendem a crescer ao som do mar e as bocas não são tão confiáveis como os olhos, especialmente as dos marinheiros. Portanto deixemos de lado as histórias colhidas por estes ouvidos, e passemos àquelas vislumbradas por estes olhos.
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