sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Meus dias a bordo do Cirella - Parte II
Meu primeiro contato com o Cirella se deu cerca de um ano antes de meu embarque junto aos homens da nau. 1665 já passava da metade quando conheci pessoalmente o capitão Tino Sadiano. A notícia de que o capitão pretendia lançar-se a novas águas e tinha necessidade de um cartógrafo a bordo me chegou numa noite em uma taverna pelo ex-contramestre do Cirella. Curioso em conhecer a tal embarcação e já pensando em a quais mares ela iria se lançar, fui ao ancoradouro em um fim de tarde para falar com o capitão, o qual eu tivera o cuidado de avisar de minha chegada através de um dos estivadores que trabalhava no carregamento do navio. Fui recebido por um marinheiro sem patente, visto que os oficiais estavam em terra e aguardei até ser chamado à cabine de comando do Cirella. Lá fora o sol estava se pondo no mar calmo e uma brisa fraca soprava do oceano para a terra. No alto do mastro principal a bandeira azul e cinza adormecia pendurada pela falta de ventos mais fortes. As velas dos dois grandes mastros estavam recolhidas e apenas algumas lanternas iluminavam o convés. Através das janelas eu podia ver o bruxulear das luzes no interior da cabine, mas não ouvia som algum vindo de lá. Aguardei do lado de fora e me detive observando o convés e as carrancas de adornavam o mastro principal logo abaixo da bandeira. Na proa uma enorme carranca se projetava à frente da nau lembrando um galo levemente disforme de bico aberto e um pescoço curvo e longo que seguia à frente do navio até mergulhar nas águas sob o casco. No castelo de popa se elevava uma pequena amurada de madeira adornada por entalhes que lembravam penas da cauda de um pavão, que se estendiam por todo o castelo. Fui desperto pelo abrir da porta da cabine, ao que o marinheiro que havia me recebido fez-me sinal para entrar. Obedeci e, passando por ele, a porta se fechou atrás de mim, deixando o marujo do lado de fora. A cabine do capitão era relativamente grande para um barco daquele tamanho e era adornada por objetos visivelmente valiosos, mas dispostos de forma tal que o conjunto da decoração parecia embaralhado, bagunçado e confuso. As paredes eram adornadas por desenhos e pinturas náuticas, um espelho retangular e um quadro com a imagem do próprio capitão em trajes finos e usando um chapéu escuro que se destacava por uma longa pena verde que se projetava para cima e para trás, como é moda dos menestréis teutônicos. Próxima à parede imediatamente à frente da porta pela qual eu entrara se encontrava uma pesada mesa de madeira que guarnecia uma muito bem acabada cadeira de espaldar alto, recoberta por uma grossa manta anil sobre a qual se sentava a autoridade máxima dentro do Cirella. O capitão vestia uma nobre capa de cor escura. As calças que trajava, no entanto, não contribuíam para a imagem que eu esperava de um homem em sua posição. Por sob a mesa se percebiam as barras curtas mal cortadas que deixavam à mostra as canelas pelo vão entre a barra da calça e o cano da bota, que se mostrava baixo demais para cobrir devidamente as pernas. Botas que eram adornadas por grossas fivelas que lembravam o ouro, mas que se encontravam em estado de conservação já prejudicado, apresentando abrasões e escoriações aqui e ali. O homem tinha a barba bem feita e os olhos escuros como os cabelos. O nariz um tanto alargado, a pele escurecida pelo sol e os olhos levemente puxados lembravam os índios nativos do Novo Mundo, apesar de que eu duvide de alguma descendência daquele povo. Com o ar mais solene que pôde o capitão indicou uma cadeira à frente de sua mesa, na qual me sentei. O capitão Tino se recostou em sua cadeira, inclinando-a para trás e, pousando uma mão sobre o abdômen, começou uma explanação que levou cerca de quase vinte minutos ininterruptos, a qual não relatarei na integridade a fim de preservar o tempo que me escorre rapidamente como a água que está sendo bombeada para fora deste navio. Meu auxiliar acaba de me confirmar que o alagamento foi estancado, mas as avarias foram graves e já perdemos um homem na operação de contenção de danos. Meus companheiros parecem perder as esperanças aos poucos. Na nossa embarcação e especialmente em nosso capitão. Creio que só o que nos mantém ainda lutando, só o que temos, é uns aos outros. E se for para ser tragado pelo oceano, não poderia pensar em companhia mais louvável do que os homens com quem divido meus dias a bordo do Cirella. O tempo urge e a cera da minha vela escorrendo me lembra que as horas que me restam fazem o mesmo. Voltemos pois a história.
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Literatura - Prosa,
Rodrigo Oliveira
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