quinta-feira, 5 de junho de 2008

Espantalhos, pedras e poemas

O tipo impreciso sobre a capa vermelha revela um pouco o que se passa nas páginas de “De espantalhos e pedras também se faz um poema”. Impressas em linotipo, as páginas do último livro de Viegas Fernandes da Costa, ainda trazem as marcas dos golpes do metal sobre o papel. A textura, prenunciada na arte da capa, camufla-se no interior sob a tinta das letras de contornos imprecisos, às vezes fugidios, como que transbordando-se do poema.

Ao folhear “De espantalhos...” vê-se no verso das páginas que ficam para trás as marcas deixadas pelos poemas já lidos. O texto anterior emerge sob o posterior. Um texto que passa, mas que fica marcado.

As cerca de 60 páginas são divididas em três momentos.

O Livro das Pedras nos apresenta um breve jardim de medusa. Onde as pedras parecem guardam memórias, expressões. Gastas pelo tempo, lembram que “as pedras também não são eternas”. A unidade temática que o autor nega à obra, aqui se revela no tema das pedras, protagonistas dos cinco poemas. Com destaque para “A Pedra” — “A pedra no meio do rio, afronta / como pedra no meio do rio, / em silêncio, o tempo e as águas”. É possível ver surgir um diálogo entre este e “A garça sobre a pedra”

“Amanhã já não serei mais esta pedra...

E meus olhos já não terão mais para onde voar.

Amanhã serei memória, talvez

Ou os tantos grãos, pequenas pedras,

Lançadas na ampulheta”.

O diálogo entre a pedra silenciosa, austera e milenar que, solitária e inevitavelmente, deixa de ser pedra para tornar-se, mesmo ela, areia lançada da ampulheta, ao redor de outras tantas pedras. Parece que da sacada de onde olha o narrador do segundo poema, pode-se ver, sob a garça (ou além dela) a pedra do primeiro.

Espantalhos no Deserto abarca uma temática mais urbana, contestadora. Os golpes do tipo, marcando o papel, parafraseando os golpes do autor através dele. Notas para “Canto Guajira”, revelando uma América Latina onde “os condores dão lugar aos abutres, como no passado, as lhamas deram lugar aos cavalos dos deuses”. “Da noite os olhos homicidas”, ganha mais dimensão quando chegamos ao “Noite Urbana” (já em Ecos de Mim, último momento da obra). De novo vemos o olhar de um poema posterior cobrir o anterior. Pontuo ainda os poemas “Espantalhos no Deserto” e “Impressões do Vale” com suas formigas, por demais, zelosas.

Finalmente em Ecos de Mim o tom torna-se mais intimista. Ecos abre com “Itinerário” — “Conheci um Cristo / santo e crucificado / nas palavras dos evangelhos”. Destaca-se ainda o doído “Cântaro das minhas náuseas” — “carrego a desventura do sonho / como meu bem mais precioso (...) fecharam-se as portas das minhas igrejas / os meus santos, descobri-os de gesso”.

“De espantalhos e pedras também se faz um poema” é um livro que se lê rápido, mas que deve ser apreciado sem pressa. Como foi impresso. Para que as marcas que marcam o papel, possam melhor marcar o leitor. Um livro de folhear, de saltar páginas, de encontrar, ao meio de uma frase, uma troca de tipo ou uma serifa inesperada. Se o autor, em “Arqueologia da Memória” sonhava em quedar-se eterno na força do verbo, em “De espantalhos...” a força do verbo chega a marcar as páginas.

6 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

Pra quem se interessou pelo livro, tem outra crítica dele, anterior à minha, no Falações do Labes(http://www.falacoes.blogspot.com/). Fica inclusive o recado, vale dar uma passada lá. Pra quem quiser conferir, tá aqui o blog do autor de "De espantalhos...": http://viegasdacosta.blogspot.com/

Anônimo disse...

Rodrigo, gosto muito de ler resenhas e artigos que comentem
obras. Parabéns por este texto que
fala da obra de Viegas!
Gostei muito.
Abraço da Fatima de Laguna.

Marcelo Labes disse...

Rodrigo, sinto que sim, que o diálogo já começou. Ou melhor: as falas, essas já haviam começado há muito tempo. Se agora se cruzam, então chegamos no momento tão esperado disso que podemos literatura blumenauense.
Na verdade, não penso mais dessa forma, embora não tenha encontrado uma denominação agradável. Houve sim, e sabemos disso, uma literatura daqui , mas já não é mais tempo e não há mais textos que permitam essa reflexão.

Onde mesmo queria chegar? Ah sim. Obrigado pelo texto. Expostos, entrespostos, essas vozes podem chegar a ser ouvidas. E respondidas. E a discussão acabará por tomar conta.

Que bom. Já era tempo.

Abraço.

Labes

viegas disse...

é muito gratificante saber nossa obra lida e debatida. Li o teu texto,Rodrigo, bem como o do Labes, e ambos estabelecem um diálogo e enriquecem o "De espantalhos... ". Talvez a maior carência que temos na literatura do Vale não seja a de bons textos, porque estes existem sim, mas de textos que pensem estes textos, de leituras que enriqueçam a palavra primeira. O importante é sabermos que, ainda que timidamente, estes espaços vão sendo ampliados. Quando fiz a entrevista com o Endoença para o Sarau percebi que na década de 80 havia sim um debate literário aqui na região, e que este debate perdeu-se, um pouco. Ficou o Endoença como um Quixote, mas praticamente sozinho. Quem sabe podemos resgatar isso, e avançar. Será bom, será muito bom para os que escrevemos por aqui, e para os que lemos o daqui.
Abraço forte e fraterno,
Viegas

Ana Russi disse...

Que ótimo, alguém de frases inteiras e idéias completas.
Gostei muito do seu blog, Rodrigo, é um veículo de divulgação bom-intencionado. Poderia divulgá-lo na rádio, como referência crítica à arte local?
Um abraço.

Ana Paula

Schali Loureiro disse...

Olá Rodrigo, vim devolver a visita e tive uma feliz surpresas ao me deparar com seus textos.
Gostei muiitooo! Parabéns.
Tbm devo voltar! Beijo!