Quando adentrei este Coliseu Tropical, achei que pisava as areias de uma arena. Quando saí, percebi que eram as areias de uma ampulheta.
Coliseu Tropical é o mais recente livro de Viegas Fernandes da Costa. Traz a mesma prosa poética comum aos trabalhos anteriores do autor, na maioria das vezes abrindo mão dos versos. A obra conta com um interessante trabalho gráfico da Editora Kotter, mas o ponto frágil fica por conta de escolhas de diagramação e soluções de tipografia que provavelmente passaram pela revisão, e “arranharam” um pouco a estética do miolo do livro. A bonita capa e o projeto gráfico compensam em parte estes — na visão deste leitor — deslizes. Mas tirando uns poucos momentos de quebra na imersão da leitura, o texto não chega a sofrer muito com isso.
O livro é uma obra sem dúvida atual e se propõe a combater (n)o seu tempo. Mas esse Coliseu que digladia com seu presente, ganha mais vida quando se entrega às reminiscências. Como no antigo palco romano, é por baixo da luta que se escondem as engrenagens e a riqueza que sustenta a arena.
A obra inicia agressiva com o tom crítico que parece guiar o livro, apontando ora os desgovernos que regem este conturbado 2021, ora as desigualdades que (já não) nos surpreendem em cada esquina, apontando chagas ou ideias incinerados sob uma lua de fogo.
Deste primeiro grupo de textos destaco justamente o tocante Lua de Fogo com as cinzas de um Pantanal ardente, e o sensível O Coveiro, que exuma a poesia do menino que sonhava “plantar pessoas na terra”. Apesar do lirismo, mesmo nestas peças o tom crítico e o olhar contemporâneo é presente. A partir da metade do livro, no entanto, ainda que o eco deste tom inicial frequentemente se faça ouvido, Coliseu Tropical tende a se voltar mais para dentro, e a obra parece crescer.
Reflexo de paisagens do Vale e do Litoral Catarinense, sótãos e velhas máquinas de escrever tomam as areias deste Coliseu, lembrando as areias que correm em uma ampulheta. “A memória”, diz o autor, “é, de algum modo, a falta que se faz presente”. E ela se faz presente em aforismos, poucos versos e na lembrança de personagens conhecidos daqueles que acompanham a obra do autor, como Ernesto ou o Onitorrinco, que aparecem “como barco insepulto ancorado na areia de um deserto que já fora mar”.
Como o homem de areia que dá título a um dos textos, é das areias que se ergue este Coliseu Tropical. Mas como o personagem, não cabe na ampulheta e vê a poesia nascida dos intestinos do mundo enquanto todos a buscavam na paisagem do horizonte. Viegas encontra poesia na paisagem da memória antes que ela, inevitavelmente, se dissolva no vazio. Como o homem de areia.
segunda-feira, 21 de junho de 2021
Areias de um Coliseu Tropical
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Orelha de Selenita

Selenita tem o prazer de ser lançado bem representado. Esse é o texto da orelha do livro, escrito por Viegas Fernandes da Costa. Chega de introdução. Sigo com as palavras de Viegas.
Selena, aquela que “rodopiava pela grama sem espantar o orvalho”, tão leve, “orbitava a vida, de saia rodada rodando o mundo”. Eis a palavra sensível de Rodrigo Oliveira, capaz de perceber Selena onde todos percebemos multidão, capaz de notar um moinho “em um tempo que já não enxerga gigantes”. Nestes dias que correm, de tantas palavras ocas, Rodrigo é Quixote que se entrega, tal qual um dos seus personagens, à sopa de verbo ainda que na pobreza de víveres, e assim sabemos, soledade, da existência de velho Genaro, apaixonado por Cida, no Cine L’Amour. Amor pornô? – indagamos. E a resposta nos surge como uma Macabéa travestida de senhor, de cinema, de saudade. “Selenita” – primeiro livro de Rodrigo Oliveira – nasce assim sob o signo do engenho e da sensibilidade. O engenho de Maira Maíra, que “mastigou mato maligno, minguando muda”, e a sensibilidade de um narrador capaz de ouvir os homens do mar, atracados na praia e na miragem.
Os 21 contos que compõem “Selenita”, distribuídos em dois “quinhões” – o primeiro, cartografia da alma; o segundo, engenharia narrativa – , apresentam-nos um autor que surpreende com seu universo temático e o requintado uso da palavra. Em alguns contos somos desafiados a um jogo, como quando perguntados a respeito do protagonista (“quem é o protagonista?”); em outros, o convite ao inusitado e ao extraordinário. Neste pêndulo, Rodrigo nos convida a conhecer a árvore de Herr Voss, acomodados sobre as possibilidades de um Fokker Dreidecker, “a estática do ar passando ligeiro por suas asas”; bem como nos remete ao já distante ano de 1920, onde os “Irmãos Van Loon” competiam pelos Países Baixos o cabo-de-guerra nas Olimpíadas. São textos mágicos estes de Herr Voss, Van Loon! Textos de uma tradição narrativa que um dia quase perdemos em meio aos tantos experimentalismos literários, mas que “Selenita” nos devolve com a força da criatividade e da fabulação. A mesma fabulação que nos coloca em suspenso aguardando as sete badaladas, ou investigando gárgulas no interior campestre de uma França que não mais cremos, mas que está lá!
Há de se fazer a travessia, Leitor, neste principado de um livro pleno! Há de se tomar “o último café de Peter”. O convite está feito, e vale a pena!
terça-feira, 9 de março de 2010
Orelha para Pequeno Álbum
Quem estiver na cidade, poderá conferir o lançamento oficial do livro no dia 11 de março, a partir das 20 horas, no Bar e Restaurante Farol, junto à Praça do Estudante. Devo estar por lá; nos encontramos.
Entre estes grandes nomes sorriem, ainda, como de fotogramas amarelados pelo tempo, figuras que resgatam memórias mais introspectivas, como em Reminiscência, de memórias expostas, gengivas nuas e sorriso ancião inocente. Com esta sensibilidade e aquela intertextualidade, este Pequeno Álbum se revela igualmente metaliterário. O autor, olhando para as figuras deste álbum, parece querer encontrar, em primeiro lugar, a si mesmo. Em Composição compõe "silêncios como quem compõe versos" e explica: "É nestes silêncios que me encontro e onde podem me encontrar como realmente sou!". Nos contos e textos de Pequeno Álbum podemos ver o escritor se dobrando sobre o próprio texto, sobre o próprio fazer literário, como no premiado Ítalo, conto de construção ímpar e riquíssima leitura. Teresa e O Velho, a Velha e o Violino apresentam ainda personagens belíssimos em narrativas sensíveis que exploram os limites desta prosa poética proposta por Viegas.
É tocante, é incômodo, é lírico. É necessário, este Pequeno Álbum. Porque nos lembra que "poesia não se pode ler (...) a poesia vivemos".
Apreciando este álbum observamos o autor, pouco a pouco, tentar desvendar-se, retomar um passado, vislumbrar um futuro, resgatar e desnudar a si mesmo e a seu próprio texto. É quase sem perceber que, ao fim do volume, nos quedamos nós mesmos desnudados e expostos ali, estampados nestas páginas.
quinta-feira, 5 de junho de 2008
Espantalhos, pedras e poemas
O tipo impreciso sobre a capa vermelha revela um pouco o que se passa nas páginas de “De espantalhos e pedras também se faz um poema”. Impressas em linotipo, as páginas do último livro de Viegas Fernandes da Costa, ainda trazem as marcas dos golpes do metal sobre o papel. A textura, prenunciada na arte da capa, camufla-se no interior sob a tinta das letras de contornos imprecisos, às vezes fugidios, como que transbordando-se do poema.
Ao folhear “De espantalhos...” vê-se no verso das páginas que ficam para trás as marcas deixadas pelos poemas já lidos. O texto anterior emerge sob o posterior. Um texto que passa, mas que fica marcado.
As cerca de 60 páginas são divididas em três momentos.
O Livro das Pedras nos apresenta um breve jardim de medusa. Onde as pedras parecem guardam memórias, expressões. Gastas pelo tempo, lembram que “as pedras também não são eternas”. A unidade temática que o autor nega à obra, aqui se revela no tema das pedras, protagonistas dos cinco poemas. Com destaque para “A Pedra” — “A pedra no meio do rio, afronta / como pedra no meio do rio, / em silêncio, o tempo e as águas”. É possível ver surgir um diálogo entre este e “A garça sobre a pedra”
“Amanhã já não serei mais esta pedra...
E meus olhos já não terão mais para onde voar.
Amanhã serei memória, talvez
Ou os tantos grãos, pequenas pedras,
Lançadas na ampulheta”.
O diálogo entre a pedra silenciosa, austera e milenar que, solitária e inevitavelmente, deixa de ser pedra para tornar-se, mesmo ela, areia lançada da ampulheta, ao redor de outras tantas pedras. Parece que da sacada de onde olha o narrador do segundo poema, pode-se ver, sob a garça (ou além dela) a pedra do primeiro.
Espantalhos no Deserto abarca uma temática mais urbana, contestadora. Os golpes do tipo, marcando o papel, parafraseando os golpes do autor através dele. Notas para “Canto Guajira”, revelando uma América Latina onde “os condores dão lugar aos abutres, como no passado, as lhamas deram lugar aos cavalos dos deuses”. “Da noite os olhos homicidas”, ganha mais dimensão quando chegamos ao “Noite Urbana” (já em Ecos de Mim, último momento da obra). De novo vemos o olhar de um poema posterior cobrir o anterior. Pontuo ainda os poemas “Espantalhos no Deserto” e “Impressões do Vale” com suas formigas, por demais, zelosas.
Finalmente em Ecos de Mim o tom torna-se mais intimista. Ecos abre com “Itinerário” — “Conheci um Cristo / santo e crucificado / nas palavras dos evangelhos”. Destaca-se ainda o doído “Cântaro das minhas náuseas” — “carrego a desventura do sonho / como meu bem mais precioso (...) fecharam-se as portas das minhas igrejas / os meus santos, descobri-os de gesso”.
“De espantalhos e pedras também se faz um poema” é um livro que se lê rápido, mas que deve ser apreciado sem pressa. Como foi impresso. Para que as marcas que marcam o papel, possam melhor marcar o leitor. Um livro de folhear, de saltar páginas, de encontrar, ao meio de uma frase, uma troca de tipo ou uma serifa inesperada. Se o autor, em “Arqueologia da Memória” sonhava em quedar-se eterno na força do verbo, em “De espantalhos...” a força do verbo chega a marcar as páginas.