quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
domingo, 24 de novembro de 2019
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
Rabiscos
Só pra atualizar, um exercício que vinha fazendo. Rabiscos aleatórios no papel e depois procurar encontrar formas que sugiram alguma coisa. Uma versão sketchbook de procurar desenho em nuvens.
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quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Quando os morros caem
Foto do Informe Blumenau, de 2015 |
Quando os morros caem
Para Irene e Willy
(A7 E)
E B7 A7
Quando o rio chamou
E
O morro respondeu
B7 A7
Quando o rio clamou
E
O morro atendeu
B7 A7
O morro rachou
E
E o rio correu
B7 A7
Por onde nunca andou
E
Por onde escolheu
B7 A7 E7
E nada restou (nada restou), só você e eu
B7 A7 E
E nada restou (nada restou), só você e eu
E B7 A7
Meu cachorro cego
E
Rio levou
B7 A7
O meu carro velho
E
Rio carregou
B7 A7
Quando o rio correu
E
assoreou
B7 A7 E
//: Meu peito, meu chão; casa e refrão; canto e violão:\\
B7 A7 E
Peito, chão; violão
B7 A7 (A7 E)
Peito, chão
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Willy
terça-feira, 9 de julho de 2019
Flame Writing
Image: pexels.com |
Flame Writing
Write.
Write like your fingers are on fire.
Like your brain is a bursting scorching lake.
Like your heart is a blazing kiln, pumping in your chest.
Let it burn.
When all left is a pile of fuming ashes,
blow it all away,
until you find that remaining tiny ember, burning alive.
Blow it.
Blow it and throw it everything you've got,
'til the flames arise once more.
Then you write.
Write like your fingers are on fire...
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segunda-feira, 10 de junho de 2019
fin de tarde andaluz
Imagem de Grupo Navega em Nautical News Today |
fin de tarde andaluz
yo soñé
con el sol a morir
[rojo
en el guadalquivir
hecho un miura
despacio a hundir
en un poema
de sangre y dolor
la gente a la margen
lanzava suspiros
[en el agua
como si fueran rosas a la arena
como si fuera día de feria
la torre del oro a mirar
un cielo de oro a dorar
[la invidia
de los techos de alcazar
yo soñé con el sol a salir
[de tapas
con la luna a sonreír
dejando colores a engalanar
el sueño que soñé soñar
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quarta-feira, 8 de maio de 2019
O Paraízo-Paraguay de Marcelo Labes
Um legado é uma semente guardada em uma caixa de madeira.
Um olhar sobre o Paraízo-Paraguay de Marcelo Labes.
Paraízo-Paraguay chega como a obra de estreia da Caiaponte Edições, capitaneada pelo próprio autor do livro, Marcelo Labes. Nascida pelo financiamento coletivo on-line, sob a égide da contemporaneidade, resta ainda ver os próximos passos da editora, que promete ao menos mais duas obras. Quanto a esta inicial, a primeira do autor em forma de romance, a edição não deixa nada a desejar. Uma obra bem acabada, de composição elegante. A capa em tons quase sépia traz as ruínas da Igreja de Humaytá e assim já introduz o tom do livro. Um tom que, apesar da novidade da prosa mais extensa do autor, mantém ainda ecos dos versos de trabalhos anteriores de Labes. E o mesmo olhar sobre um vale úmido, cheio de memórias que se pegam às paredes (e pessoas) feito bolor.
Uma história de vergonhas de uma guerra da qual já não se lembra, de lembranças de um passado celebrado que não se viveu. Legados recriados para encobrir destroços que deixamos. O Paraízo-Paraguay de Marcelo Labes é repleto deles. Que se sobrepõem saturando as cenas e os personagens, até precipitarem-se feito chuva pelas encostas do vale, carcomendo a terra, criando valas, expondo vazios que, quando encarados, refletem na vala cheia de água o rosto de quem observa.
Paraízo-Paraguay nos conta a saga de uma família — a seu modo — desde a geração que chegou na Colônia de Blumenau não muito após a chegada dos primeiros colonizadores. Um olhar diverso do mito hegemônico da colonização germânica nas colônias do sul do Brasil. O mito, claro está, do puro e intrépido desbravador branco, batalhador, que dobra à sua vontade a natureza de uma terra selvagem, feito o Crusoé de Defoe. E como o próprio Crusoé, o ideário do colonizador europeu subjugando a nova terra e seus selvagens. Uma memória imaginada e reimaginada até virar História.
O romance exorciza, talvez, alguns destes demônios ao colocá-los à luz. O faz, primeiramente, nos levando junto aos praças forçosamente recrutados para ir combater pelo Brasil na Guerra do Paraguai, para saldar a cota de homens do administrador da Colônia. Alemães e brasileiros lado a lado. Alemães que negavam a brasilidade na qual estavam enfurnados. Como estavam, feito os brasileiros, enfurnados igualmente entre os mesmos morros, entre as mesmas plantas e animais, entre as mesmas valas na mesma terra. Saudosos de uma Alemanha d'além mar que ainda viam como sua. Uma saudade, parece, incurável; ainda que a língua alemã talvez não a possa traduzir à perfeição.
Paraízo-Paraguay escancara essas feridas e lembra das cicatrizes que escondemos entre as dobras de nossos morros. Lembra também os nosso vários flertes com o fascismo e alguns dos preços que pagamos e, certamente, nos esquecemos.
Resgata sobretudo a atração quase mística de um legado. Seja de um passado pintado glorioso no Velho Mundo, seja perambulando pelas docas da velha Itajahy atrás de redenção, ou nas buscas para lá da fronteira paraguaia. Seja enterrado no nosso próprio quintal.
Para cada legado de administrador de colônia nas ruas principais, igrejas e registros oficiais, um sem-fim de outros legados serpenteia às margens do Itajaí-Açu. É quando ele transborda que todos se misturam. E Labes soube observar — e retratar — as marcas que deixam no lodo.
sábado, 6 de abril de 2019
Para sempre rio
Foto de Angelina Wittmann |
De manhã cedinho o sol não chegava a tocar o chão da floresta, que dormia sob seu dossel de copas orvalhadas. O velho pisava macio, pés descalços, para não acordar a mata. Já desperto há algumas horas, sorria vendo o dia clarear. De um lado a montanha esticava o pescoço a quase mil metros para espiar o nascente, do outro o assobiar do rio num chamado que acostumara ouvir desde muito.
Fora há mais de meio século que o rio vira o velho pela primeira vez. Ainda um rapazote imberbe, sem rugas, trejeitos ou as histórias que agora tanto cativavam as águas. Mas fora o suficiente para o rio se enamorar.
Cada vez que as pernas magras lhe penetravam o leito, o rio se contorcia em júbilo, lambendo-lhe as panturilhas, envolvendo-lhe em seus recantos. Mas logo o visitante ouvia o chamado da mata, de algum vizinho ou do fogão de chapa a crepitar em algum lugar. E o rio saudoso ficava ali, só lágrimas a correr por aqueles vales do sul.
Veio o tempo e com o seu condão transformou o menino em velho, arbusto em árvore, semente em planta. Só o rio continuava rio. Melancólico, saudoso e fluido, sempre a assobiar quando via o velho passar. Ao velho cresceu uma barba longa e prateada, que lhe cascateava queixo abaixo feito corrente brilhante à luz do sol. O rio se enamorou ainda mais.
Uma noite, saudoso, o rio não suportou e se ergueu do leito para procurar o velho. Chegou ao terreno, espiou a casa, mas não teve coragem de entrar. Chamou e esperou, mas o velho dormia, as barbas sobre o peito entre as paredes de madeira.
A gente da cidade não gostou do que viu:
— Rio assanhado, onde já se viu!?
Trouxeram uma máquina acordando a mata e construíram um muro para dar ao rio uma lição.
— É assim que se põe um rio nos prumos — disse o prefeitinho orgulhos.
O velho, de longe, trocando olhares com as águas, que espiavam lá do canto do seu cercado, feito criança que aprontou.
Mas a saudade, quando vem em ondas, não tem mar que aplaque, não há rio que aguente. Um dia, pouco antes do velho levantar, o rio se pôs a chamar. Foi tal a comoção que até o morro desceu para ver o que ocorria. E viu um rio que já não se continha. Sem resposta, o rio achou por bem bater à porta. Mas a emoção, em vagas, se transborda. E o rio pulou o muro e correu como nunca correra. Sem ligar para o que havia em frente veio tropeçando e saltando e arrastando o que via no caminho. A vizinhança assustada correu em debandada. O vizinho, o cachorro, o velho e quem mais podia. O rio alvorotado bateu à porta com tanta força que lhe arrancou dos batentes. Espiou à janela e a despedaçou. Procurou em cada canto e não encontrou o que tanto procurava. Nem velho nem paz para um coração turbilhante. Levou ainda, como lembrança, algumas coisas para embalar a saudade, enquanto na noite chorava a falta do velho que não encontrara.
Mas o que quer que carregasse, nada supria uma paixão de infância que ainda urgia. Logo o rio se cansou e devolveu às margens tudo o que pegou. Passou as noites a correr pelo vale em busca do velho. Pensando nas barbas caudalosas como um leito para se aninhar.
O tempo passou, o rio chorou, mas não cessou de chamar. Até que um dia, de repente, sentiu o peito borbulhar.
— É o velho! É o velho quem vem lá!
O rio se ergueu e se pôs a chamar. Encontrou o velho na antiga ponte onde volta e meia o via passear. O rio, arrebatado, mal podia se conter. O velho lhe sorriu e sentou-se para conversar, as pernas pendendo da ponta, a cascata de barbas pendendo do queixo, a cara estampada com aquela vida encravada naquela senda do sul da cidade, entre morros, matas e o rio. O rio se animou caudaloso, as emoções lhe transbordando as margens.
Quem mais tarde cruzou pela ponte se assustou com um corpo de bruços embalado pelas marolas que ululavam numa canção de ninar. Apressado, o visitante saltou à água e, com a corrente pela cintura, tentou desvirar o velho. À primeira tentativa, o peso impediu a manobra, era como se algo agarrasse-se ao peito do homem tombado. Uma nova investida e o recém-chegado conseguiu desvirar o velho, caindo ele, por sua vez, sentado na água. Foi quando viu, saltando do rio, como se saído do peito do homem, uma carpa avermelhada, tão rara por aquelas bandas. Quando caiu novamente na água, o tremular da corrente lhe dava um aspecto pulsante e, mesmo ao lusco-fusco do fim do dia, era como se a sua cor emanasse uma luminosidade brilhante enquanto o peixe nadava contra a corrente, rio acima, pulsando em vermelho. Tudo ocorreu rápido e, tão logo quanto pôde, o homem já estava com o velho nos braços, agora tão leve, quase como se estivesse vazio. Lá longe, rio acima, ainda podia ver um ponto vermelho pulsando no escuro, enquanto ao seu lado centenas de pontos brancos se revelavam de ambas as margens, com flores alvas se abrindo, uma a uma, por toda a extensão do rio, exalando um aroma que cobriu todo o leito, se derramou pelas encostas e se adensou pelo vale em uma elegia perfumada.
Meses depois, ninguém soube ao certo ainda o que aconteceu. Mais tarde, se contou, foi que o rio nunca mais se ergueu e, nos seus trechos mais caudalosos, dizem, um novo arrulhar se pode ouvir, como uma segunda voz a sussurrar na língua das águas ao fim do dia. Quando isso acontece, juram, as flores brancas se abrem novamente e lançam em coro seu perfume sobre as águas, lembrando o vale que bem à tardinha ainda brilha, em algum lugar, um vermelho vivo e pulsante naquele rio.
Para o Willy, que passou por tudo, sempre rio.
Março de 2019.
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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019
Morpho
Morpho
Image by Vera Kratochvil |
Colours flapping in the sun, it came.
Lightly, as just brought by the wind,
as an idyllic and improbable idea.
It alighted right where the tree bark split
and opened its wings in blossom.
The wind stood still in awe
while bright and beauty tainted life in blue.
Bittersweetly, the creek whispered:
such hues live briefly,
not enough to paint a second december.
And yet, fair creek,
it did.
With beauty and poems,
with tomorrows
bathed in the reminiscences of bright blue wings
in a summer afternoon.
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terça-feira, 22 de janeiro de 2019
A Visita
A visita
Image: PxHere |
Ele chegou no final do verão, vindo pela janela que deixei aberta para refrescar a tarde abafada. Quando dei por mim já estava ali, instalado sobre a minha mesa com os pelos brancos e os olhos amarelados de pupilas fendidas a me afrontar. O meu primeiro impulso foi enxotá-lo como quem afugenta uma praga. Mas ele me tratou com tanta indiferença e uma régia elegância, como se aquele fosse o seu sítio mais habitual e eu o intruso, que acabei não me dando ao esforço de espantá-lo. Apenas deixei a janela aberta para que ele pudesse sair quando se cansasse de ficar ali. Não era grande, é bem verdade, mas não deixava de ser um estorvo sobre a mesa. Ainda assim, evocava uma atmosfera quase mística, de um respeito devido. Ainda que eu não soubesse que respeito eu pudesse dever àquela coisa branca e esguia. Enrolei certo tempo pelo escritório, arrumando sem atenção alguns papéis de pouca importância. Organizei alguns volumes na estante de livros, que estavam fora de ordem. Volta e meia tornava a olhar a criatura sobre a minha mesa, pálida e me encarando com o olhar amalerado feito livro antigo. Resolvi ir à cozinha e pegar algo para beber, como quem evita encarar uma tarefa enfadonha, e deixei-o sobre a mesa, esperando que a janela aberta lhe convidasse a sair ao fim da tarde. Acabei me entretendo com algum programa na televisão e me esqueci de retornar ao escritório naquele dia.
Na manhã seguinte, ao cruzar pela porta do aposento, percebi que ainda estava ali. Estava justamente se espreguiçando, com as patas dianteiras estendidas e o dorso recurvado, como se acabasse de acordar. Olhando assim, até parecia combinar com o lugar. Claro, não mudava o fato de que tê-lo ali sobre a minha mesa era um incômodo, mas aos poucos me parecia que poderia ser um incômodo suportável. Aproximei-me, notei as orelhas apontarem para trás, na minha direção. Mas ele não se deu ao trabalho de virar a cabeça. Sentei-me na cadeira e só então ele voltou-se para mim. Ficamos alguns momentos nos encarando, como se fosse uma derrota abandonar aquele posto. Um à frente do outro. Ele inteiramente branco, alvo, pálido. Imóvel exceto pela cauda, que balançava intermitente para lá e para cá. Um pêndulo contando os segundos que duravam aquele embate silencioso. Desisti de ficar ali parado esperando que isso fosse contribuir para que ele simplesmente desaparecesse da minha mesa. Tentei espantá-lo novamente, mas ele não saía do lugar. Ou, quando eu conseguia movê-lo por uns momentos da minha mesa e da minha vista, não tardava, ele aparecia de volta ali. Eu o enxotava, ia preparar algo para comer e, quando voltava, lá estava ele. Retirava-o com cuidado e colocava-o no chão, esperando que isso ajudaria. Mas não passavam muitos minutos até que eu, bastando dar as costas, o encontrasse novamente sobre a mesa, lustrando sua alvura como para deixá-la mais brilhante. Foram algumas tentativas até que eu me resignasse. Sentei na cadeira em frente à mesa e depois de encará-lo algum tempo, estabelecendo uma trégua mútua, lhe estedi a mão vagarosamente e toquei-lhe carinhosamente com a ponta do dedo a brancura macia. Um ronronar ressoou baixinho e agradável, o dedo mergulhando num mar de fibras alvas, forçando-me a admitir um reconfortante prazer. Corri as mãos acompanhando o desenho das orelhas e percorrendo o dorso delgado. Dócil não era certamente a palavra precisa para descrevê-lo, não foram poucas as marcas que me deixou nas mãos e os arranhões que ganhei nos dias em que convivemos, mas apesar disso, era uma convivência da qual, só percebi depois, sentiria falta. Talvez já sentisse, mesmo antes de ele aparecer pálida e sorrateiramente sobre a minha mesa de trabalho. Ao fim do primeiro dia daquele contato é que notei, sob o pescoço que vibrava com o ronronar de uma tempestade em miniatura, uma pequena nódoa negra. Uma ilha de sombras naquele mar de outra forma imaculado. Podia jurar, pela primeira vez que o vi, que era completamente branco. Mas certo como aqueles olhos amarelos eram insistentes, ali estava, escura como uma noite sem lua mas cheia de possibilidades, uma diminuta, solitária e negra mancha brilhante.
Passaram-se alguns dias e a nossa relação avançou a passos lentos mas constantes. Meu pequeno e incômodo inquilino crescia devagar mas visivelmente. Seus modos não mudaram muito, no entanto. À medida que crescia, os arranhões se tornavam mais dolorosos, mas também menos frequentes. Começávamos a nos entender. O negror que no início parecia tão isolado, claramente crescia com ele. Já não era uma pequena mancha sob o pescoço, mas uma marca que se espalhava pelo peito, contrastando com toda aquela alvura. Já não se podia dizer que era totalmente branco. Por algum motivo, assim eu me afeiçoava ainda mais a ele. Passamos a conviver mais tempo diariamente, ainda que eu não pudesse dedicar a maior parte das minhas horas à criatura. Mas aos poucos ele foi se esgueirando a outras áreas da minha rotina. Às vezes, enquanto preparava meu café, podia sentir-lhe roçar minhas pernas com o dorso arqueado. Quando estava no sofá, aninhava-se ao meu colo, sem sequer atrapalhar, apenas me lembrando de que estava ali. Como esperando um momento para voltar a brincar, ou talvez estivesse apenas aproveitando para descansar a pelagem alvinegra na certeza de que eu já não o iria enxotar. O curioso, mais do que essa convivência, por vezes dócil por vezes repleta de arranhões, era que a cor da pelagem definitivamente mudava a olhos vistos. Cada dia que interagia com ele podia constatar o avançar das áreas negras, como se estivessem devorando ou cobrindo as brancas. Logo era um animal malhado e não demorou para que o negror tomasse conta de toda a criatura. Na minha mesa, lustrando os pelos até que brilhassem feito ônix, o par de olhos amarelos reluzia em contraste. Ardentes e vivos; acima de tudo, vivos.
Já tinha me acostumado com a sua presença, até que um dia entrei pela porta e vi a figura negra no batente da janela, a cauda de ébano balançando em seu movimento pendular. Ele olhava o sol do fim da tarde quente, quase um ano depois de ter entrado pelo mesmo caminho. Com o corpo escuro silhuetado em contraluz, olhou para trás, os olhos como um par de sóis a mais, e saltou para fora. A mesa do escritório parecia enorme com o vão deixado por aquela ausência, apenas uma caneta abandonada de entranhas vazias tentava cobrir o espaço. O sol se abaixava em silêncio. Fui até a janela e espiei para fora. A vegetação do vizinho e os postes da rua não permitiam que eu o visse, mas a sombra de uma pessoa passando a mão em um animal ia se alongando no cimento da calçada enquanto o sol mergulhava nas montanhas do horizonte. Com uma estranha satisfação mas a sensação de que ele não retornaria, voltei-me para dentro outra vez e deixei o escritório que resplandecia com os últimos momentos de uma luz dourada. Logo chegaria a noite, como ela sempre chegava, e encontraria novamente uma janela aberta e uma mesa vazia, esperando, quem sabe, um novo visitante.
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