A visita
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Ele chegou no final do verão, vindo pela janela que deixei aberta para refrescar a tarde abafada. Quando dei por mim já estava ali, instalado sobre a minha mesa com os pelos brancos e os olhos amarelados de pupilas fendidas a me afrontar. O meu primeiro impulso foi enxotá-lo como quem afugenta uma praga. Mas ele me tratou com tanta indiferença e uma régia elegância, como se aquele fosse o seu sítio mais habitual e eu o intruso, que acabei não me dando ao esforço de espantá-lo. Apenas deixei a janela aberta para que ele pudesse sair quando se cansasse de ficar ali. Não era grande, é bem verdade, mas não deixava de ser um estorvo sobre a mesa. Ainda assim, evocava uma atmosfera quase mística, de um respeito devido. Ainda que eu não soubesse que respeito eu pudesse dever àquela coisa branca e esguia. Enrolei certo tempo pelo escritório, arrumando sem atenção alguns papéis de pouca importância. Organizei alguns volumes na estante de livros, que estavam fora de ordem. Volta e meia tornava a olhar a criatura sobre a minha mesa, pálida e me encarando com o olhar amalerado feito livro antigo. Resolvi ir à cozinha e pegar algo para beber, como quem evita encarar uma tarefa enfadonha, e deixei-o sobre a mesa, esperando que a janela aberta lhe convidasse a sair ao fim da tarde. Acabei me entretendo com algum programa na televisão e me esqueci de retornar ao escritório naquele dia.
Na manhã seguinte, ao cruzar pela porta do aposento, percebi que ainda estava ali. Estava justamente se espreguiçando, com as patas dianteiras estendidas e o dorso recurvado, como se acabasse de acordar. Olhando assim, até parecia combinar com o lugar. Claro, não mudava o fato de que tê-lo ali sobre a minha mesa era um incômodo, mas aos poucos me parecia que poderia ser um incômodo suportável. Aproximei-me, notei as orelhas apontarem para trás, na minha direção. Mas ele não se deu ao trabalho de virar a cabeça. Sentei-me na cadeira e só então ele voltou-se para mim. Ficamos alguns momentos nos encarando, como se fosse uma derrota abandonar aquele posto. Um à frente do outro. Ele inteiramente branco, alvo, pálido. Imóvel exceto pela cauda, que balançava intermitente para lá e para cá. Um pêndulo contando os segundos que duravam aquele embate silencioso. Desisti de ficar ali parado esperando que isso fosse contribuir para que ele simplesmente desaparecesse da minha mesa. Tentei espantá-lo novamente, mas ele não saía do lugar. Ou, quando eu conseguia movê-lo por uns momentos da minha mesa e da minha vista, não tardava, ele aparecia de volta ali. Eu o enxotava, ia preparar algo para comer e, quando voltava, lá estava ele. Retirava-o com cuidado e colocava-o no chão, esperando que isso ajudaria. Mas não passavam muitos minutos até que eu, bastando dar as costas, o encontrasse novamente sobre a mesa, lustrando sua alvura como para deixá-la mais brilhante. Foram algumas tentativas até que eu me resignasse. Sentei na cadeira em frente à mesa e depois de encará-lo algum tempo, estabelecendo uma trégua mútua, lhe estedi a mão vagarosamente e toquei-lhe carinhosamente com a ponta do dedo a brancura macia. Um ronronar ressoou baixinho e agradável, o dedo mergulhando num mar de fibras alvas, forçando-me a admitir um reconfortante prazer. Corri as mãos acompanhando o desenho das orelhas e percorrendo o dorso delgado. Dócil não era certamente a palavra precisa para descrevê-lo, não foram poucas as marcas que me deixou nas mãos e os arranhões que ganhei nos dias em que convivemos, mas apesar disso, era uma convivência da qual, só percebi depois, sentiria falta. Talvez já sentisse, mesmo antes de ele aparecer pálida e sorrateiramente sobre a minha mesa de trabalho. Ao fim do primeiro dia daquele contato é que notei, sob o pescoço que vibrava com o ronronar de uma tempestade em miniatura, uma pequena nódoa negra. Uma ilha de sombras naquele mar de outra forma imaculado. Podia jurar, pela primeira vez que o vi, que era completamente branco. Mas certo como aqueles olhos amarelos eram insistentes, ali estava, escura como uma noite sem lua mas cheia de possibilidades, uma diminuta, solitária e negra mancha brilhante.
Passaram-se alguns dias e a nossa relação avançou a passos lentos mas constantes. Meu pequeno e incômodo inquilino crescia devagar mas visivelmente. Seus modos não mudaram muito, no entanto. À medida que crescia, os arranhões se tornavam mais dolorosos, mas também menos frequentes. Começávamos a nos entender. O negror que no início parecia tão isolado, claramente crescia com ele. Já não era uma pequena mancha sob o pescoço, mas uma marca que se espalhava pelo peito, contrastando com toda aquela alvura. Já não se podia dizer que era totalmente branco. Por algum motivo, assim eu me afeiçoava ainda mais a ele. Passamos a conviver mais tempo diariamente, ainda que eu não pudesse dedicar a maior parte das minhas horas à criatura. Mas aos poucos ele foi se esgueirando a outras áreas da minha rotina. Às vezes, enquanto preparava meu café, podia sentir-lhe roçar minhas pernas com o dorso arqueado. Quando estava no sofá, aninhava-se ao meu colo, sem sequer atrapalhar, apenas me lembrando de que estava ali. Como esperando um momento para voltar a brincar, ou talvez estivesse apenas aproveitando para descansar a pelagem alvinegra na certeza de que eu já não o iria enxotar. O curioso, mais do que essa convivência, por vezes dócil por vezes repleta de arranhões, era que a cor da pelagem definitivamente mudava a olhos vistos. Cada dia que interagia com ele podia constatar o avançar das áreas negras, como se estivessem devorando ou cobrindo as brancas. Logo era um animal malhado e não demorou para que o negror tomasse conta de toda a criatura. Na minha mesa, lustrando os pelos até que brilhassem feito ônix, o par de olhos amarelos reluzia em contraste. Ardentes e vivos; acima de tudo, vivos.
Já tinha me acostumado com a sua presença, até que um dia entrei pela porta e vi a figura negra no batente da janela, a cauda de ébano balançando em seu movimento pendular. Ele olhava o sol do fim da tarde quente, quase um ano depois de ter entrado pelo mesmo caminho. Com o corpo escuro silhuetado em contraluz, olhou para trás, os olhos como um par de sóis a mais, e saltou para fora. A mesa do escritório parecia enorme com o vão deixado por aquela ausência, apenas uma caneta abandonada de entranhas vazias tentava cobrir o espaço. O sol se abaixava em silêncio. Fui até a janela e espiei para fora. A vegetação do vizinho e os postes da rua não permitiam que eu o visse, mas a sombra de uma pessoa passando a mão em um animal ia se alongando no cimento da calçada enquanto o sol mergulhava nas montanhas do horizonte. Com uma estranha satisfação mas a sensação de que ele não retornaria, voltei-me para dentro outra vez e deixei o escritório que resplandecia com os últimos momentos de uma luz dourada. Logo chegaria a noite, como ela sempre chegava, e encontraria novamente uma janela aberta e uma mesa vazia, esperando, quem sabe, um novo visitante.
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