Um legado é uma semente guardada em uma caixa de madeira.
Um olhar sobre o Paraízo-Paraguay de Marcelo Labes.
Paraízo-Paraguay chega como a obra de estreia da Caiaponte Edições, capitaneada pelo próprio autor do livro, Marcelo Labes. Nascida pelo financiamento coletivo on-line, sob a égide da contemporaneidade, resta ainda ver os próximos passos da editora, que promete ao menos mais duas obras. Quanto a esta inicial, a primeira do autor em forma de romance, a edição não deixa nada a desejar. Uma obra bem acabada, de composição elegante. A capa em tons quase sépia traz as ruínas da Igreja de Humaytá e assim já introduz o tom do livro. Um tom que, apesar da novidade da prosa mais extensa do autor, mantém ainda ecos dos versos de trabalhos anteriores de Labes. E o mesmo olhar sobre um vale úmido, cheio de memórias que se pegam às paredes (e pessoas) feito bolor.
Uma história de vergonhas de uma guerra da qual já não se lembra, de lembranças de um passado celebrado que não se viveu. Legados recriados para encobrir destroços que deixamos. O Paraízo-Paraguay de Marcelo Labes é repleto deles. Que se sobrepõem saturando as cenas e os personagens, até precipitarem-se feito chuva pelas encostas do vale, carcomendo a terra, criando valas, expondo vazios que, quando encarados, refletem na vala cheia de água o rosto de quem observa.
Paraízo-Paraguay nos conta a saga de uma família — a seu modo — desde a geração que chegou na Colônia de Blumenau não muito após a chegada dos primeiros colonizadores. Um olhar diverso do mito hegemônico da colonização germânica nas colônias do sul do Brasil. O mito, claro está, do puro e intrépido desbravador branco, batalhador, que dobra à sua vontade a natureza de uma terra selvagem, feito o Crusoé de Defoe. E como o próprio Crusoé, o ideário do colonizador europeu subjugando a nova terra e seus selvagens. Uma memória imaginada e reimaginada até virar História.
O romance exorciza, talvez, alguns destes demônios ao colocá-los à luz. O faz, primeiramente, nos levando junto aos praças forçosamente recrutados para ir combater pelo Brasil na Guerra do Paraguai, para saldar a cota de homens do administrador da Colônia. Alemães e brasileiros lado a lado. Alemães que negavam a brasilidade na qual estavam enfurnados. Como estavam, feito os brasileiros, enfurnados igualmente entre os mesmos morros, entre as mesmas plantas e animais, entre as mesmas valas na mesma terra. Saudosos de uma Alemanha d'além mar que ainda viam como sua. Uma saudade, parece, incurável; ainda que a língua alemã talvez não a possa traduzir à perfeição.
Paraízo-Paraguay escancara essas feridas e lembra das cicatrizes que escondemos entre as dobras de nossos morros. Lembra também os nosso vários flertes com o fascismo e alguns dos preços que pagamos e, certamente, nos esquecemos.
Resgata sobretudo a atração quase mística de um legado. Seja de um passado pintado glorioso no Velho Mundo, seja perambulando pelas docas da velha Itajahy atrás de redenção, ou nas buscas para lá da fronteira paraguaia. Seja enterrado no nosso próprio quintal.
Para cada legado de administrador de colônia nas ruas principais, igrejas e registros oficiais, um sem-fim de outros legados serpenteia às margens do Itajaí-Açu. É quando ele transborda que todos se misturam. E Labes soube observar — e retratar — as marcas que deixam no lodo.
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