sexta-feira, 27 de maio de 2011

Lá vem o velho

Lá vem o velho, puxando carroça. Tem um cachorro, o velho. Ou o cão é que o tem. Pouca diferença faz, tem-os a rua. Disse-me — o velho, não o cão — que deixou a roça, a mulher que pariu o filho de outro, a enxada na terra que não era sua. Trocou a roça pela carroça que veio puxar pela cidade. Lá, ele ia em cima, a carroça puxada à cavalo. Aqui o cavalo ganha carinho da moça bonita de olho azul. Aqui, a carroça ele mesmo tem que puxar. Mas quando a lembrança roça, ele coça, e ela se vai. Como se foi a roça, como se vai o rosto, como irá o resto.

Disse-me — agora o cão, não o velho, com os olhos mais brilhantes que já vi na cara de qualquer um, de quatro ou duas patas — que não deixou nada. Nem saudades. É daqui. Nasceu debaixo d'alguma ponte, ao lado desse rio. Depois daquela curva, atrás daquele morro, sobre algum barranco ainda não levado leito adentro, manchete afora. Dividiu o concreto, a poça d'água, a luz dos faróis com mais um tanto de gente, de bicho, de bichogente. Foi levado para casa uma vez, contou. Cresceu, a menina mimada cansou. Passeio de carro, nunca mais voltou.

Encontrou o velho ganindo, todo molhado em dia de chuva. Adotou o coitadinho. Tão bonitinho! Estava que era só sorriso. Parcos dentes sorridentes entre bambos beiços balouçantes. E contou para ele as histórias das ruas. Onde arranjar um osso, onde encontrar um teto, onde escapar do mundo. Onde farejar um motivo para balançar o rabo. Lá vem o velho, puxando carroça, junto ao cachorro. Lá vai o velho, puxando carroça. Lá vai o cachorro. Aqui fico eu.

O sinal abriu, ninguém se mexeu. Algum animal fechou o cruzamento no fim de tarde. As mãos na buzina uivando pra lua querendo surgir. Carlos Gomes começa a tocar me lembrando de desligar o rádio pelos comandos ao volante. Como cansa esticar o braço até o painel! Além do mais, a mão está ocupada na buzina. A outra, no botão para levantar o vidro escuro coberto de insulfilm para esconder os meus olhos baços do cachorro e do velho que se vão puxando carroça.

*Crônica originalmente publicada no Jornal de Santa Catarina, edição de 26 de maio de 2011.


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Constatação

Blumenau está cheia de buracos. Devem ter usado picareta.

Uma vela para Balzac

O século XIX certamente não teria sido o mesmo sem ele. Provavelmente, nem o XXI. Talvez, não fosse por ele, hoje nossas esposas, noivas e namoradas não se reuniriam no sofá ao redor de um pote de brigadeiro acompanhadas de um box de The Sex and the City. Senhores, a culpa por todos aqueles gritinhos, suspiros e risadas desenfreadas em frente à TV pode ser dele. O nome do irresponsável: Honoré de Balzac. Provavelmente mais conhecido por obras como “A Mulher de Trinta Anos” e “As Ilusões Perdidas”, o francês influenciou muito mais do que a possibilidade de séries de TV sobre novaiorquinas balzaquianas (entendeu agora de onde vem a expressão?).

Do compatriota Gustave Flaubert ao nosso brazuca Machado de Assis, muita gente passou por Balzac. O cineasta francês François Truffaut elevou o escritor ao ponto da idolatria juvenil no seu “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, 1959). Lá pelas tantas, no filme, o protagonista, um garoto de doze anos chamado Doinel, cria um altar em que acende uma vela para o autor, dentro de um pequeno apartamento. Resultado de tamanha dedicação: por pouco não põe fogo na casa inteira, é repreendido pelos pais e acaba desencadeando uma série de conflitos com as instituições estabelecidas da época, seja a família, a escola ou a polícia. Mas quem sabe essa seja possivelmente a melhor maneira de homenagear a um autor que incendiou as convenções da sociedade em que viveu, revolucionou a forma como a mulher era retratada e, principalmente, expôs a hipocrisia e a fragilidade moral da Paris de sua época.

Pergunto-me o que diria do nosso Vale que, se não se pretende Paris, então Munique, Berlim. O que escreveria se descobrisse que o nosso enxaimel tem telhado de vidro? Imagino a voracidade com que retrataria a nossa ânsia de não ser o que achamos que um dia já fomos. O volume da produção só seria equiparado à quantidade de antidepressivos saídos das nossas farmácias. Difícil considerar algo diferente nesse nosso Vale em que se consome muito mais Prozac que Balzac.

Amanhã é aniversário do escritor francês. Só não sei se devemos acender uma velinha ou atear fogo a alguma ideia.

* Crônica originalmente publicada no Jornal de Santa Catarina, no dia 19 de maio de 2011.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Troca Troca

Troca Troca

Uma universidade costuma reunir gente de todas as tribos e de vários lugares. Nerds, patricinhas, metaleiros, bichos-grilos, CDFs e toda sorte de pessoas reunidas num templo de conhecimento e reflexão. E, sejamos francos, de festa e azaração. A presença nos barzinhos é tão assídua quanto nas salas de aula. Quando cursei minha graduação conheci um sujeito que me ensinou uma lição importante.

Rapaz novo, vindo de outro município, recém-instalado em Blumenau e maravilhado com as belezas da cidade. Corrijo: o garoto estava muito mais interessado na beleza das garotas da cidade. Estava abobalhado, com aquela cara de lobo de desenho animado, uivando para cada rabo-de-saia que lhe passasse às vistas.

Muito do namorador, caiu na paquera feito cachorro atrás de raposa. Tentou uma, tentou duas, tentou três. Mas chegava final da noite e o galã não tinha saído do zero a zero. Não se conformava. Semana vai, semana vem, e o sujeito não emplacava uma bitoquinha sequer. Estava desesperado, não entendia o que estava acontecendo. Era boa pinta, bom de papo, tinha uma boa grana. Mas não tinha jeito. A popularidade do cidadão continuava caindo. Para minha surpresa, ele bolou uma solução bastante inusitada: resolveu mudar de nome. Ele tinha um nome meio esquisito e jurava que por causa disso não conseguia conquistar as meninas. Pesquisou um pouco e escolheu um que estava bem na moda, vindo lá dos states. Acertou a papelada e, de nome novo, voltou à luta (ou à caça, nesse caso).

Mas não teve jeito. Nada de o cidadão conquistar os corações das garotas. Mesmo com o novo nome, não havia maneira de alguém se interessar por ele. Depois de novos e recorrentes fracassos, chegou à conclusão que o motivo de sua falta de sorte só poderiam ser os amigos. Tentamos alertá-lo. Quem sabe devesse mudar de atitude, achar um novo discurso, mudar realmente. Mas não, ele insistia em manter o mesmo discurso e as mesmas atitudes. Estava determinado. Trocaria a nossa companhia para se unir a outros amigos. E, por via das dúvidas, iria mudar de nome mais uma vez, afinal, o atual já não estava dando muito certo mesmo.

Com o rompimento, não sei que fim levou esse colega, mas uma lição ele me deixou. Se você não mudar o discurso e, principalmente a atitude, de nada vai adiantar mudar de nome ou se unir a esses ou àqueles amigos na esperança de que as pessoas se sintam atraídas por você. Pensando nisso, bem que alguns dos nossos estimados representantes também poderiam levar um papo com esse meu colega.

* Crônica originalmente publicada no Jornal de Santa Catarina, edição de 12 de maio de 2011.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Tornatore à Blumenau

Tornatore à Blumenau

O título desta crônica não faz referência a nenhum prato da Festitalia. Aqueles que lembraram do autor do clássico de 1988 devem lembrar da magia dos primeiros contatos com a sétima arte. Lembro de ter entrado meio desconfiado no interior daquele prédio antigo, entranhas de um ventre escuro repleto por filas intermináveis de cadeiras. A inclinação do piso não era tão acentuada como a das salas modernas. O som provavelmente não guardava tanta fidelidade mas isso me escapa à memória. Dos sons daquela tarde na escuridão, o mais marcante seria o da repetição constante do passar do filme pelo projetor. Sentado em uma das fileiras mais ao fundo, vi aquele som parir um facho de luz contra uma tela que se iluminou. Hoje trago mais próxima as imagens da sala, do prédio, da experiência, do que a do próprio filme a que fui assistir, do qual não lembro sequer o nome. Mas lembro do clímax daquela experiência. Lembro de, após ter sido absorvido por aquele pavilhão escuro, caminhar por um corredor pouco iluminado, com uma leve inclinação sempre descendo, descendo, descendo. Até paradoxalmente emergir à luz de uma tarde clara e iluminada sobre a calçada de uma Alameda Rio Branco sem os pavers dos dias de hoje. Aquilo foi mágico, de alguma forma. À minha frente, um prédio enxaimel de esquina e, atrás de mim, as portas abertas e as paredes altas e escuras do Cine Busch. Aquele dia volta e meia torna-me à memória. Vejo quase diariamente aquelas mesmas paredes escuras que, ainda que não possam me transportar para o seu interior e me envolver na escuridão, ainda evocam aquelas lembranças de luz e magia. O meu Cinema Paradiso particular.

Hoje recordo e relato essa história para celebrar o fim de um hiato que há muito já se estendeu. Há mais de dois meses lembro de ter lido, aqui mesmo neste espaço, uma sentença auspiciosa: “Tenho certeza de que os dois meses de jejum não serão esquecidos com facilidade”. Naquele tempo, bem antes das férias de que agora desfruta, o titular dessa coluna questionava o vazio deixado pelas reformas das salas de cinema em Blumenau. Um pouco além das oito semanas previstas, o jejum parece finalmente ter chegado ao fim. Amanhã serão abertas ao público as novas salas de projeção de Blumenau. Com o retorno das salas escuras, a paixão pelo cinema parece readquirir fôlego entre as montanhas do Vale. A cicatriz, no entanto, ainda coça. Será que os olhos do Vale se voltaram às telas ausentes a ponto de evitar um novo hiato? Ou de perceber a importância daquilo que nos foi inacessível pelo bimestre passado? Pergunto-me se o augúrio de Tenfen se confirmará.

* Esse texto foi originalmente publicado no Jornal de Santa Catarina, do dia 05 de maio de 2011.
** Maicon Tenfen, cronista titular da coluna, está curtindo as merecidas férias. Fui convidado pelo jornal para, durante esse período, escrever as crônicas das quintas-feiras. Quatro outros escritores assumirão os demais dias da semana. Ao fim do período de férias Tenfen reassumirá a coluna. Ao passo que as novas crônicas forem ao ar, vejo se posto os textos aqui, posteriormente à publicação.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Bee bee!

Ilustrinha pras meninas motorizadas.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A Sonoridade do Olhar

A Sonoridade do Olhar
Vislumbres de Esculpir a Luz - o olho e outros exílios - de m.r. mello.
por Rodrigo Oliveira


“poema nenhum, jamais, nasceu
de parto normal”
— m.r.mello in Esculpir a Luz


A luz esculpida pelo som. O reverberar do fonema, que rasga o olho como uma lâmina d’Um Cão Andaluz. Que ao mesmo tempo em que cega, vara e abre o olho. Rasga o véu e liberta o olhar. Estar cego é ter o olhar liberto. “Estar cego é estar grávido de luz”.

Esculpir a Luz, de m.r. mello detém-se sobre esse novo olhar. Ou sobre as possibilidades de novos olhares, às vezes despercebidos, como uma nota que vibra sutil, prenúncio da orquestra. Entre esses dois tons, esses dois prismas — da luz e do som, do olhar e do ouvir — descortina-se o livro de estreia do poeta curitibano.

O texto contemporâneo encerra-se, enquanto objeto, sob um discurso anacrônico. Em dias de e-book readers, tablet pcs e indústria cultural, a obra apresenta-se artesanal. As pontas dos dedos podem percorrer a capa dura recoberta pelo tecido negro serigrafado, as páginas de gramatura generosa, os acabamentos impecáveis montados manualmente, volume a volume, pela Editora Cozinha Experimental (um vídeo do processo de montagem artesanal pode ser visto aqui).

O prefácio de Mayla Goerisch, ilustradora da obra, adverte: os poemas de m.r. mello devem-se “ler, ler em voz alta”. Mais uma vez o leitor é alertado à sonoridade de Esculpir a Luz. Viremos a página e passemos ao índice. O mero vislumbrar dos nomes dos poemas lembra o descerrar de cortinas que revela a orquestra perfilada: “Chorar de rir e vice-versos para trompa e oboé”, “Rapsódia da nostalgia”, “Pianíssimo”, “Batuque indigesto sobre a nova engenharia dos versos”, para não citar outros. É a batuta do maestro ordenando um último instante de silêncio, seguido pela entrada dos primeiros instrumentos. A sinfonia começa com “Allegro tropíssimo para violoncelo, bandolim e cuíca”:

“o poeta desentoca
um violoncelo
e encontra (nas brumas do escuro-incurável-pensamento
a cura
a palavra a rima
o poema”
(p.11)

As notas aos poucos se sobrepõe, envolvendo o leitor com uma suave melodia ditada pelos fonemas cuidadosamente aliterados, pelo ritmo. O leitor se queda

“(como se uma fruta aberta em suas mãos caísse
como se comesse a primeira romã
(cada doce-rosácea semente
outra doce-rosácea
melodia”
(p.11)

E como melodia, Esculpir a Luz é envolvente. Tocante com notas de nostalgia aqui e ali. Mas tocante, acima de tudo, por ser humano.

“nenhuma tragédia é mais
ou menos humana
humanas
são todas as tragédias”
(p.17)

Em “Rapsódia da Nostalgia” esse sentimento talvez se torne mais abrangente, com uma mistura de saudosismos compartilhados e não vividos, que relembra uma juventude fugida e um crepúsculo irremediável. Recorda que “adolescência / é língua tropeçando em língua”, “e a vida um lençol de tulipas / sons e silêncios colhidos sem pressa”. “Um ócio que desossa a alma” (p. 23-24) Em contraste, augúrio de que

“então, será, já não seremos
fruto nem sumo
nem o atletismo da natureza
ou a batalha do corpo
apenas retalhos de folhas
onde estavam essas palavras
varridas como folhas que acumulam no jardim”
(p. 24)

A mesma nota ressoa em “Auto-imolação do silêncio para vinil”, que resgata madrugadas

“entre trapos e catraias
atracadas
no úmido aroma da farra”
(p.27)

Ao tom nostálgico acrescenta-se o lírico “Apologia prosaica ao lirismo bronco-dilatador”. Intimista, lembra o arco passando leve e baixinho pelas cordas dormentes de um violino:

“o meu amor tem um cheirinho verde de grama molhada
de chuva em fim de tarde na chacrinha
dos anarquistas
meio meus parentes (...)
tem cheiro de risada de criança pequena,
lembra, assim, o aroma do carinho
que eu sinto pelo meu tio lá de lonjão”
(p.43)

O poema percorre aromas vários de “coisas muitas / que eu ainda nem cheirei, o amanhã, quem sabe”. Como que reforçando a ótica de novos e inesperados olhares, quase convocando o olfato à obra, para se somar ao tato da capa em tecido e à audição constantemente provocada pelo cantarolar das sílabas de mello.

Fazendo eco às memórias e à sensibilidade, vale nota também “Estudo memorialírico para relicário pagão”, que lembra que “os velhos possuem segredos atrás das dentaduras” e convidam a enfiar a morte numa gaveta.

Em “Pianíssimo”, talvez, a proposta temática do livro se apresente de forma mais evidente:

“Estar cego é reinaugurar
nas coisas
o silêncio exato da imagem
e furtar
no interior do belo
o borbulhar da essência”
(p.47)

O metapoético “Trabalho de parto” mais uma vez retoma a força oral de Esculpir a Luz:

“parto como
quem planta
de fora pra dentro
da fúria
disforme
do fogo
que (fátuo) afia
a faca que fura
dura feito falo
a flor da palavra”
(p.65)

Esclarece: “porque poema nenhum, jamais, nasceu / de parto normal” e continua:

“e assim, no cesariano contato
com cada sanguínea palavra
vejo misturar-se ao ritmo
primal algumas vísceras
do verbo entre átrios
e artérias (...)”
(p.66)

e encerra: “e o poema oscila, excitado / como as ondas de um eletrocardiograma” (p.67).

"Trabalho de Parto" ressalta ainda outra característica do texto de m.r.mello (assim mesmo, sempre em minúsculas, à e.e. cummings). Com aparições especialmente marcantes nesse poema, mas com incisões aqui e ali por toda a obra, encontramos termos que seriam mais esperados em relatórios médicos do que em poemas:

"parto como
quem expulsa a dor
com o fórceps da
v a g i n a"
(p.65-66)

ou

"no percurso quase prosaico
do trígono fibroso
ao septo ventricular (...)"
(p.66-67)

Excertos como esses, "em que o cárdio esparge ideias pela carótida" (p.67) parecem ecoar os versos de Augusto dos Anjos. Os termos científicos que povoam os poemas de EU, do autor de Versos Íntimos, provocam certa tensão em uma leitura cheia de contrastes entre forma e conteúdo. Ainda que os poemas de m.r. mello não se atenham à métrica clássica como os de dos Anjos, Esculpir a Luz aponta experiência similar. Experiência enriquecida pelo inserir dos vocábulos científicos tanto em imagens tétricas como líricas.

O olhar sobre o fazer poético retorna em “Breve discurso em defesa da indecência”, que dialoga com o pop e o erudito, com o poema e a poesia. “Um poema”, lemos, “no mais das vezes / não vale nada”. E lembramos que as rimas (“oh, Camões!”) podem ser ricas, senão nas penas, então nas picas, “na cadência bonita da / foda”.

m.r. mello alterna constante do complexo e do erudito (do técnico, até), ao ordinário e ao vulgar. Do lírico ao prosaico, esculpindo o som e, mais do que ele, a vibração. Explorando a forma do fonema e a tessitura do poema. Testando o retinir de cada fio da trama poética como se fosse uma teia. Uma teia tecida em cordas de violino.

* O texto acima foi originalmente publicado no Sarau Eletrônico.