Disse-me — agora o cão, não o velho, com os olhos mais brilhantes que já vi na cara de qualquer um, de quatro ou duas patas — que não deixou nada. Nem saudades. É daqui. Nasceu debaixo d'alguma ponte, ao lado desse rio. Depois daquela curva, atrás daquele morro, sobre algum barranco ainda não levado leito adentro, manchete afora. Dividiu o concreto, a poça d'água, a luz dos faróis com mais um tanto de gente, de bicho, de bichogente. Foi levado para casa uma vez, contou. Cresceu, a menina mimada cansou. Passeio de carro, nunca mais voltou.
Encontrou o velho ganindo, todo molhado em dia de chuva. Adotou o coitadinho. Tão bonitinho! Estava que era só sorriso. Parcos dentes sorridentes entre bambos beiços balouçantes. E contou para ele as histórias das ruas. Onde arranjar um osso, onde encontrar um teto, onde escapar do mundo. Onde farejar um motivo para balançar o rabo. Lá vem o velho, puxando carroça, junto ao cachorro. Lá vai o velho, puxando carroça. Lá vai o cachorro. Aqui fico eu.
O sinal abriu, ninguém se mexeu. Algum animal fechou o cruzamento no fim de tarde. As mãos na buzina uivando pra lua querendo surgir. Carlos Gomes começa a tocar me lembrando de desligar o rádio pelos comandos ao volante. Como cansa esticar o braço até o painel! Além do mais, a mão está ocupada na buzina. A outra, no botão para levantar o vidro escuro coberto de insulfilm para esconder os meus olhos baços do cachorro e do velho que se vão puxando carroça.
*Crônica originalmente publicada no Jornal de Santa Catarina, edição de 26 de maio de 2011.
Um comentário:
Amigo, quero te parabenizar pelas crônicas e, em especial, por esta última. Sensível e verdadeira, parabéns!
Abraço,
Viegas.
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