terça-feira, 14 de outubro de 2008

A Condição do Principado

Quando escrevi o Príncipe dos Suicidas, mais do que a própria história, o personagem me interessou. Tem algo o nele que me intriga. Acho que havia (e que ainda pode haver) algo mais, abaixo da supertfície do personagem. O texto todo foi inspirado por construções mitológicas repaginadas, mas assim, sem pesquisa e de cabeça, não consigo lembrar de nenhum correspondente ao Príncipe. Então, pra tentar entender melhor o infeliz, aproveitei o tema do Duelo de Escritores desta rodada pra revisitar aquele texto, aquele personagem. Queria desenvolver melhor a sua psique, buscando um pouco mais de dimensão e profundidade pra ele. Revisitando o texto, acho que pude resignificar alguns aspectos do Príncipe, talvez o próprio personagem. E com o novo visitante (que na verdade já aparecia discretamente no primeiro texto), mostrar um lado complementar da primeira história, tentando ainda, manter o diálogo e a importância do primeiro texto, inserindo o leitor, definitivamente na história e tentando um novo foco narrativo. Sem mais ladainhas segue o texto. Se vc quiser, pode lê-lo tb no Duelo de Escritores, sob o tema Condição, junto com o texto dos outros duelistas e votar no seu preferido até o dia 16.



A Condição do Principado

Ainda te demoraste alguns minutos naquela última frase, com o restante das folhas manuscritas na outra mão. Não a lias mais, apenas a olhavas. O conteúdo, já gravado na memória confusa: “Mas o protagonista desta história, leitor, não sou eu”. Finalmente levantaste a cabeça para a figura do velho, retratada como há pouco havias lido, escorado numa das paredes de tora da casa. Quando falaste, a voz saiu-te baixa, mas firme. Uma constatação que, estranhamente, não foi tão pesarosa quanto esperavas:

— O protagonista sou eu.

O velho, na mesma jardineira parda descrita na carta, esboçou um leve aceno afirmativo de cabeça, mas interrompeu o movimento breve para ir até o fogão de pedra no centro da sala.

— O protagonista desta história já morreu — completaste. O velho não precisou responder.

Ficaste olhando as costas entroncadas e pensaste ainda que não lhe parecia bem um príncipe. Ele lançou-te um olhar ancestral por sobre o ombro, que não pudeste suportar. Desviaste os teus, inda jovens, para a porta, esbarrando-os na enxada afiada ao lado dela.

“Às vezes o grão despenca antes do tempo e não pode ser colhido pela foice. Aí vem a mim.” A passagem lhe veio à mente como se ainda a estivesses lendo.

— Então foi isso que me aconteceu? —Perguntaste à enxada ao lado da porta. Mas foi o velho junto ao fogão que te respondeu, virando-se para ti com as mãos ocupadas por duas xícaras fumegantes de metal:

— A você e a todos que passaram por aqui antes de você. Inclusive a quem escreveu essa carta.

— Inclusive a você? — Inquiriste já com uma das xícaras quentes nas mãos. Não sorveste o líquido. Sabias que poderias esperar até que esfriasse. Já sabias que havia tempo de sobra.

O velho parou à tua frente. Olhos fixos nos teus. Mas perdidos em um tempo muito distante, vago, nublado, como a fumaça branca que lhe escalava as barbas ralas. Ele se afastou, sentou noutra cadeira a alguma distância, inclinando-se para trás, equilibrado em dois pés do móvel, apenas.

— A todos que já estiveram aqui, respondeu.

— E como foi que aconteceu? Com você, quero dizer.

Ele pensou um pouco antes de responder-te. Ao que disse:
— Já não lembro. O tempo que passamos aqui, entre a névoa, apaga o aconteceu antes. Esqueci. Você também vai esquecer. Já está acontecendo.
Ele tinha razão, percebeste. A névoa que se instalava do lado de fora da casa no meio da mata, também se instalava em tuas memórias, já diáfanas, nada mais que um vulto acinzentado.

— E antes de você, havia outro Príncipe que o recebeu?

— Não — respondeu-te o velho — eu fui o primeiro dentre nós. O primeiro dentre todos. O primeiro grão a se precipitar antes da colheita. O primeiro a se apaixonar por ela. A desejar o beijo prematuro. Eu não podia esperar. Não havia tempo. Não queria esperar. E me precipitei. Quando saí das árvores, avistei o mesmo trapiche que você encontrou. Fui até o mesmo homenzinho que lhe trouxe aqui. E, pela primeira vez, eu a vi. A pele queimada, os olhos vibrantes, os ombros nus. Eu quis ir até ela, mas o homenzinho não deixou. Disse que eu não poderia fazer a travessia. Que ainda não era hora. Eu não podia ficar ali, meu nome não estava na lista, ele dizia. Não ainda. Tudo o que me restou foi esperar. Eu procurei um lugar pra esperar, aqui entre as árvores. Esperei até não agüentar mais essa névoa. Então construí essa casa. E continuei a esperar, aqui. Sozinho. O único da nossa espécie. O primeiro. Enquanto esperava, a lembrança dela me fazia companhia. Das mãos da camponesa, dos ombros nus de pele tisnada. Da cor do vestido, do jeito de olhar. Até que percebi que já não esperava mais a travessia. Esperava apenas ver a camponesa de novo. A Dama da Colheita. Um dia o homenzinho me achou aqui. Disse que tinha chegado minha hora. Que eu já poderia fazer a travessia. Finalmente eu poderia revê-la! Quando cheguei à margem, ela me recebeu. E conversamos por um bom tempo até a chegada da balsa. Mas quando chegou o momento, percebi que apenas eu faria a travessia. Ela teria de ficar ali. Eu jamais a veria novamente. Foi quando eu tomei a decisão. De ficar, para sempre, à margem. De jamais completar a travessia. De, para sempre, caminhar entre a névoa. Só pela chance de, vez por outra, tornar a revê-la, mesmo que não possa tê-la. O homenzinho não gostou. Disse que meu nome estava na lista. Que eu tinha que cruzar. “Nenhum nome na lista pode ficar, ninguém fora dela pode cruzar”, ele repetia. Mas outros como eu viriam. Outros como nós. Suicidas. Condenados a esperar. Nomes fora da lista. Alguém deveria aguardar por eles. Eis que me tornei o Príncipe dos Suicidas. O Portador da Enxada. Aquele que recolhe os grãos que se precipitaram antes da colheita. Que coleta com a enxada aqueles que a foice não alcança. Todos aqueles que se apaixonaram por ela, mas que jamais poderão a ter. Esse é o nosso Desígnio.

— Nosso? — Ainda perguntaste preocupado, tirando o velho dos seus desvarios. Ele respondeu, com um suspiro, ainda olhando as brumas pela janela.

— Não, nosso não. Eles, e você, todos cruzarão, a seu tempo, o rio. Ninguém pode viver à margem, sem completar a travessia. Apenas eu. À margem, entre as névoas, esperando, para sempre. Essa é a Condição. A Eterna Condição. Não há nós. Não para mim. Jamais haverá.

Em silêncio, guardaste a carta que leste, de outro que já estivera onde agora estavas. E compreendeste, olhando o líquido fumegante que embaçava os olhos do Príncipe. Há tempo. Há tempo de sobra. Tempo é tudo o que tem, o Príncipe dos Suicidas.

2 comentários:

Anônimo disse...

tah, eu jah comentei lah no duelo. É um texto muito bom. Tente colocar alguma hora os dois seguidos, para a leitura se tornar uma só. Vamos ver o que acontece.

JLM disse...

olá Rodrigo

A brincadeira é pra forçar uma turminha boa que conheço na interent a praticar a escrita. Como não somos de Blumenau, hehehe, e somos preguiçosos para montar um blog específico só para isso, pegamos carona na idéia de vocês e de quebra vez por outra sai um texto ruim aqui, outro não-tão-ruim acolá.

O tapa na cara foi intencional. Se vc notar, é uma característica comum à alguns textos meus. Mas tô praticando pra largar esse vício.

1 abraço.