Hapuseneb brincava com alguns gafanhotos que tinham sobrado da infestação. Cutucava os insetos, que estavam numa gaiola de palha, com um graveto. As amas já o haviam mandado dormir. Queria despedir-se de seu pai, mas elas disseram que ele não devia ser incomodado, que tinha muitos problemas para resolver ultimamente. O herdeiro acabou se cansando dos insetos e foi dormir. No dia seguinte poderia ver o pai.
Era meia-noite quando um som rompeu o silêncio do palácio. Potoc, po-toc. Potoc, po-toc. Lento, constante, se aproximando. Potoc, po-toc. Uma tênue luz rompia a escuridão dos corredores. Como um archote que se aproximava passo a passo. Potoc, po-toc. Um suave cheiro de sangue fresco acompanhava o visitante. O som ou o odor acabaram por despertar um galgo jovem, primeiro da ninhada, presente que Hapuseneb ganhara do pai. O cão ensaiou um rosnado, mas um golpe poderoso o silenciou. Tudo o que conseguiu produzir foi um ganido baixo, antes que um segundo golpe lhe partisse as vértebras do pescoço.
O visitante se aproximou da porta onde jazia o animal. A luz se projetou nos umbrais limpos. Demorou-se admirando os batentes. Só depois entrou, devagar. Potoc, po-toc. Aproximou-se do leito. Potoc, po-toc. A luminosidade se derramou sobre a criança. Uma grande mão espalmada caiu pesada sobre a boca do infante enquanto dedos fortes comprimiam a face como um torno. Hapuseneb acordou sobressaltado, mas não pôde se mexer sob o peso que o comprimia contra a cama. Não conseguiu emitir nenhum ruído, pedir ajuda ou desvencilhar-se. Os braços magros tentavam em vão afastar as mãos do agressor. Os olhos saltados de terror se destacavam na cabeça calva e olhavam com pânico aquele que trazia a luz sobre o seu leito.
— Não há sangue nos umbrais... — Foram as únicas palavras do invasor e as últimas que Hapuseneb ouviria.
Debateu-se o quanto pôde até que um joelho pesado aterrissou abaixo do abdômen, pouco acima do sexo. Balançava as pernas e tentava com os braços se desvencilhar. O assaltante cerrou o punho esquerdo, que estava livre, recolheu o braço para tomar impulso e precipitou a mão como um aríete contra o primogênito do faraó. Os bracinhos magros nem sequer desviaram o golpe, que atingiu o tronco um pouco acima do estômago, no lado direito. A criança gemeu sob as costelas trincadas. Com a dor nem percebeu que a mão de chumbo se precipitava em outra carga, partindo as costelas que, estilhaçadas, tornaram-se pequenas lanças dentro do corpo miúdo. Uma ponta rompeu a pele e ficou espetada para fora, refletindo em vermelho e branco a pouca luz que a iluminava. Ainda com a mão direita amordaçando a vítima, o visitante tomou com a esquerda aquela ponta que se projetava de Hapuseneb e a empurrou para baixo, qual uma alavanca. O garoto gritou histérico, os olhos esbugalhados jorrando lágrimas, o corpo estropiado jorrando sangue, enquanto a mão pesada não deixava escapar mais que um choro cortado e dolorido, enquanto a costela abria caminho por pele e carne como uma adaga cega, até se chocar contra a borda dura da cama e partir-se mais uma vez. O esforço em gritar desenhava no pescoço fino da criança todas as veias e tendões, projetando a traquéia num esforço inútil para ser ouvido. O assaltante aproveitou e, com o polegar e o indicador em pinça, envolveu a traquéia do menino e pressionou com força sobre-humana. Um som estalado da cartilagem silenciou a criança e um puxão brusco rompeu o duto, dilacerando a garganta já puída. O corpo jovem caiu inerte na cama, alquebrado, vermelho, deixado no escuro enquanto a luz se afastava devagar, coxeando baixo pelos corredores do faraó. Potoc, po-toc.
3 comentários:
Um texto mais velho, postado para o Duelo, sob tema páscoa. Não é um grande texto, mas como não posto nada há algum tempo, coloquei pra deixar isso aqui um pouco mais atualizado.
Fez bem, Rodrigo. Fez muito bem.
Costadessouza marcou para quinta uma cerveja no Butiquin. Estás dentro?
Abraço.
olá!
Valeu pela visita no 2ns.
=*
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