sábado, 5 de julho de 2008

Os ricos pobres e os pobres ricos de Rubem Fonseca

Análise Comparativa dos Contos Feliz Ano Novo e O Outro, de Rubem Fonseca.

“Ó cupidez cega!
Fúria desumana,
que durante a curta existência
a muitos desgoverna,
conduz sempre à perdição!” [1]

Feliz Ano Novo e O Outro têm como premissa primária a violência urbana. Nos dois casos o autor aproveita essa premissa para retratar o contraste das diferenças sociais que ao mesmo tempo criam e são ampliadas por essa violência. O contraste das classes e o encontro – ou confronto – dessas classes é o estopim da violência.

A narrativa, nas duas obras, é em primeira pessoa. Em Feliz Ano Novo pela personagem pobre, em O Outro pela protagonista rica; ambos igualmente anônimos. Dessa forma, o empresário de O Outro pode ser qualquer um de nós (na visão do público leitor, na sua maioria pertencente a classes mais altas da sociedade), da mesma forma e o assaltante anônimo de Feliz Ano Novo pode ser (na visão destes mesmos leitores) um pobre qualquer. Há, em Feliz Ano Novo, uma profusão de nomes e apelidos, mas o narrador permanece anônimo. Pode ser qualquer um daqueles por quem as madames cruzam ou vêem de longe no dia-a-dia, qualquer um daqueles pobres nos sinais, qualquer um daqueles pobres à espreita. Bem poderia ser o pedinte de O Outro. Apesar de Feliz Ano Novo ser narrador supostamente pela ótica de seu narrador pobre, é a visão da classe dominante que é impressa na narrativa. E ela vê o pobre que “não tem dentes, é vesgo, preto”. Ela vê o pobre violento, sem honra ou moral, um bando violento e desordenado que os ameaça, como bárbaros nos portões de Roma. Ele vê um pobre que nutre o ódio contra a classe dominante. Ainda assim, esse mesmo protagonista pobre, avesso a esses ideais “burgueses”, redireciona esses mesmos preconceitos de superioridade da burguesia contra seus amigos, colocando-se superior porque tem ginásio, saber ler, escrever e fazer raiz quadrada, o que lhe dá o direito de “chutar a macumba que quiser”. Já em O Outro, o narrador é um “doutor” executivo, que é levado ao trabalho por um motorista e não precisa dar mais do que dez ou quinze passos. Aqui é ele que representa a classe dominante, com seus assistentes e secretárias. Apesar de puxar o gatilho e ser o veículo da violência mais explícita do conto, não é um personagem amoral. É, aos olhos do público que provavelmente lerá o conto, trabalhador, vítima do estresse que abala sua saúde e caridoso (ainda que não possamos dizer que as doações da personagem ao pedinte sejam fruto da caridade, igualmente, o conto não nos diz que não o é, ficando a cargo do leitor completar a lacuna. Leitor de classe alta, que se identifica com o narrador e estará, portanto, inclinado a ler, ao menos a primeira doação “espontânea”, como caridosa). Ainda que de forma menos maniqueísta, a tônica é a mesma: o medo da violência, o medo que a classe opressora nutre da classe oprimida.

Nos dois contos é o narrador o ator dos atos de violência mais emblemáticos. Sempre contra a classe antagonista. É o narrador o agente da violência. Em O Outro, o empresário que atira no homem/menino na porta de casa e, em Feliz Ano Novo, o narrador que fria e educadamente pede ao refém que se levante para disparar contra ele e desencadear a avalanche da violência. Mas ambos os narradores só libertam a sua fúria após o aparecimento de um estopim externo que coloca em contraste seus mundos ou os aproximando em demasia. Nos dois casos, o prelúdio da violência se dá quando o pobre vai à casa do rico. Essa invasão de privacidade, essa colisão de mundos aterroriza as classes mais altas. A violência não está mais apenas na cidade, não é vista só pela televisão como um voyeur. Ela é presente, invade o lar, o último bastião de defesa da classe dominante. Em O Outro é justamente essa presença do outro que gera a violência, que transforma a tolerância em intolerância, e está na descarga destruidora. Em Feliz Ano Novo essas cenas de contrastes se repetem, cada uma prenunciando a seguinte, num padrão semelhante ao sistema figurativo de Auerbach. Primeiro as lojas de artigos finos para comer e beber vendem todos os seus estoques, enquanto, vendo pela TV, o protagonista se planeja para comer restos de macumba. Dá-se aí a partida ao motor da violência. Em seguida o choque entre os banheiros: um com uma banheira de mármore, outro sem água; um todo perfumado, outro fedido. Gera-se a segunda onda de violência, quando o narrador defeca sobre a colcha da cama, retratando outro ponto comum às obras: a podridão e a sujeira da pobreza invadindo o mundo dos ricos. Em O Outro “o hálito azedo e podre de faminto” encostado bem junto ao corpo, aqui o defecar sobre a cama. Nota-se ainda no ato não só o desprezo da personagem, mas o reforço do universo imagético do banheiro, o foco às necessidades primárias – como a fome e o sexo, igualmente abordados no conto – e a destruição sem motivos. Se em princípio a violência tinha como fim o alimento (motivação para sair de casa, à caça), passou a ser roubar dinheiro e bens (ao confrontar com a casa tão diferente do conjunto habitacional onde mora o narrador) e agora já é gratuita, sem objetivo, sem trazer qualquer retorno. O próprio contraste já é suficiente para gerar a violência. O motor da violência acelera rumo a um moto contínuo, que é desencadeado quando as realidades colidem estrondosamente na cena das “moscas no açucareiro”, gerando uma resposta igualmente estrondosa. A violência tornou-se não apenas gratuita e banal, sem objetivos, mas em si mesma geradora da própria violência. O mesmo Sistema Figurativo onde cada passo prepara para um mais intenso é usado na alegoria ao erotismo e ao sexo. Primeiro a masturbação, depois o sexo negado e por fim o estupro consumado, com a vítima cedendo ao agressor. Em O Outro esse sistema não se repete com a mesma força, mas ainda assim vemos o pedinte dizer ao empresário “doutor, será que o senhor podia me ajudar?” e na mesma tarde o empresário vai ao cardiologista onde provavelmente proferiu as mesmas palavras. O tema da morte também se repete nos encontros: o quase enfarto, a mãe que está morrendo, a mãe que morreu e por fim o homicídio.

Tanto em Feliz Ano Novo como em O Outro, as descrições dos ambientes são superficiais, apenas pontuando um ou outro contraste, levando a narrativa a centrar seu foco nas personagens, nas pessoas. É nelas, mais do que nos banheiros de mármore, que estão as diferenças, os contrastes, e por conseqüência, o choque da violência.

Dado recorrente também nas duas narrativas é o emprego do dinheiro, por parte dos ricos, contra a violência (ou sua iminência) dos pobres. O rico, para proteger seu território, a si mesmo e a sua fortuna, lança mão de parte desta mesma fortuna para afastar os pobres. Não apenas na segurança das moradias, mas também no confronto pessoal. O executivo doa o dinheiro ao pedinte, não por caridade (ainda que já tenhamos comentado que isto pode depender da análise do leitor), mas para livrar-se dele, da mesma forma que Maurício tenta usar os produtos do saque e o banquete para se livrar dos invasores. No caso de O Outro, a artimanha acabou aproximando ainda mais os antagonistas, provocando o inevitável choque; em Feliz Ano Novo é o próprio motivo para o choque e o desencadear da violência.

O ciclo da violência também ocorre nas duas obras, mas de forma distinta. Em Feliz Ano Novo, no que chamei de “motor da violência” anteriormente, onde um ato violento lança patamares para o seguinte mais violento. Já em O Outro, o ciclo é mais focado na continuação e geração da violência pelo medo. A violência do pedinte amedronta o executivo que reage com violência. Aqui, esse medo, como qualquer medo, debilita os sentidos, desvirtuando a própria realidade e apresentando uma visão míope, nublada pelo medo onde um menino franzino assemelha-se a um homem forte. E o disparo, desferido contra aquele homem forte, acaba por atingir muitos meninos franzinos.

A maneira de ler a violência nos contos é também distinta. Em O Outro a tensão pré-disparo é construída durante o conto. A explosão da violência é evidente, mas de forma mais velada, sendo pressionado pelo medo até o arroubo final. Enquanto os fatos narrados encaminham o leitor à intolerância, a linguagem protege esse leitor até o momento derradeiro. Ele senta a angústia do narrador, talvez até o seu medo, mas não é vítima direta dessa violência. Já em Feliz Ano Novo, o próprio leitor se vê agredido. A linguagem crua, chula, a profusão de palavrões e detalhes escatológicos atenta diretamente contra o leitor. Ao mesmo tempo em que é agredido pelo narrador com seu ódio pelo status quo, o leitor é agredido pelo autor com sua escolha de palavras e foco nos detalhes que ressaltam essa violência. A linguagem de Rubem Fonseca nos obriga a ver a nu a violência, a ter contato com ela a cada linha. Não podemos, como em um filme, virar o rosto nas cenas fortes para não vê-las, aqui a violência permeia toda a obra, mesmo quando a cena, em si, não é violenta.

Enquanto um conto nos apresenta ricas personagens pobres, onde o próprio narrador toma o papel do pobre violento e do rico preconceituoso, e domina pela força a classe opressora, o outro nos apresenta os pobres ricos, encurralados, amedrontados, levados ao extremo. E entre ricos pobres e pobres ricos, há uma vida rica em violência, medo e contrastes.



[1] Alighieri, Dante. A Divina Comédia. Canto XII. L&PM, 2004, pg.46.

Um comentário:

andreia disse...

Vc concorda que em "O Outro" o pedinte seria o próprio executivo , pois a princípio é visto forte e de sapatos barulhentos como um empresário? Faço esta leitura. Só consegue ficar são com a ausência do pedinte....