— Floquinhôoo! Floquinho! Aqui, rapaz!
À voz da criança seguiu-se uma série de assovios altos. A menina, alarmada, mal disfarçando o nervosismo na voz, subia a rua chamando pelo cão. Subia devagar. Um pouco para poder deter os olhos com atenção a cada moita, a cada beco, a cada jardim. Um pouco para evitar chegar lá no alto sem ter encontrado o cão no caminho.
— Floquinho! — A voz já saia mais nervosa. Quem olhasse de perto veria a umidade banhando a linha dos finos cílios inferiores.
Um menino novo, da idade dela, talvez nem tanto, veio correndo, os joelhos sujos de terra, por certo por brincar n’algum quintal. Ela passou o dorso da mão nos olhos, dissipando as lágrimas ainda não nascidas e correu em direção ao rapazote.
— Bruno, você viu o Floquinho?
— Não. Ele fugiu de novo?
— U-hum. Mas dessa vez não tô conseguindo achar ele em lugar nenhum.
— Você já procurou lá embaixo na rua?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Vamos procurar de novo. Eu te ajudo. Quem sabe ele não tá escondido?
— Eu já procurei lá! — Ela respondeu meio nervosa, batendo as mãos contra as próprias coxas. — Só se ele estiver... mais pra cima — continuou, receosa.
O garoto seguiu o olhar dela rua a cima. Mais uns duzentos metros de casas de cada lado. Muros mais altos, mais baixos, casas de todos os tipos. E lá em cima, um pouco antes da rua chegar no topo da colina e voltar a descer do outro lado, a casa do Senhor Gerhardt. Ele engoliu seco e, recobrando, o entusiasmo na voz disse:
— Vem, vamos olhar por aqui. Quem sabe o Floquinho nem foi muito longe.
Puxando a garota pela manga da camisa continuaram na busca nas redondezas, olhando atrás de moitas, embaixo de carros estacionados, ao redor das casas de muros mais baixos. Perguntaram para um ou outro vizinho. Cada vez subindo mais devagar os duzentos metros, como se a subida os cansasse demasiado. Não havia muito mais crianças na vizinhança, de forma que foram apenas os dois. Subindo a rua e chamando pelo cão.
Nada. Chegaram em frente à casa do Senhor Gerhardt. Muros altos — altos para eles em todos os casos — um portão fechado de madeira com um telhadinho para proteger algum visitante em dias de chuva. Sob ele, um interfone. Os dois ficaram em silêncio. Já haviam passado por todas as outras casas da rua. A menina deu uma fungada funda, como quem se esforça para segurar o choro. O rapazinho pegou na sua mão e apertou. Ela respirou fundo e engoliu mais uma vez as lágrimas antes que elas aparecessem. O garoto olhou determinado o muro, o portão. Aproximou-se, deitou-se no chão espiando por baixo da madeira. Via apenas o começo de um calçamento de pedra e o início de um gramado. Levantou-se olhando a calçada e viu um hidrante vermelho não distante do muro. Correu saltitando até lá, seguido pela menina. Tentou ficar de pé sobre o hidrante, mas foi só com a ajuda dela que ele conseguiu se equilibrar lá em cima, enquanto ela, segurando suas pernas ali em baixo, ficava olhando pra cima há espera de qualquer notícia. O garotinho em cima do hidrante, com os braços abertos, agora podia ver todo o quintal e a fachada da casa do velho Senhor Gerhardt.
Logo depois do muro, um gramado verde bem aparado se estendia até a casa, ao lado de um caminho de pedra para o carro. No quintal se espalhava uma coleção de inúmeros anões de jardim. Cada um sobre um pequeno elevado de terra sem grama, decorando o jardim com seus barretes vermelhos, narizes grandes e roupas coloridas. A maior parte portava ferramentas de mineração: pás, picaretas, martelos. Alguns tinham sacos às costas e, à frente, longas barbas sisudas que pendiam até as barrigas. Os olhos eram grandes e foi como se fitassem o garoto assim que ele ousou pôr a cabeça por cima da linha do muro. Num gesto de impulso, o menino abaixou-se quase caindo. Em seguida recobrou-se e, olhando sobre a amurada, analisou melhor as pequenas estátuas. Engoliu em seco quando viu que, lá no meio do jardim, um dos anões não apresentava nenhuma marca de interpérie ou desgaste pelo tempo. Era como se tivesse saído da loja no dia anterior.
Olhou para baixo e viu os olhos da menina em expectativa. Tomou coragem e desceu de cima do hidrante. Fitou-a em silêncio por pouco tempo e vendo os olhos dela quase marejados disse:
— Tem um anão novo lá.
A garota não pôde mais represar o choro. As lágrimas saíam dos olhos e o peito cavalgava em soluços. O nome de Floquinho se misturava na voz embargada. O menino esperou até o choro dela diminuir e foi até o portão. Ela o segurou pelo braço, mas ele se desvencilhou olhando a garota com determinação. Foi até o portão, se esticou um pouco e apertou o interfone. A menina correu para perto dele e ficou agarrada no braço do garoto. Ela tremia um pouco mais que ele.
—“Pois não” — soou a voz com um sotaque alemão metalizado pelo aparelho.
— Seu Gerhardt? — o garoto perguntou com voz infantil.
— “Sim. Quem é?”
— É o Bruno, filho do seu João aqui da rua.
— “Ah, sim. Só um pouquinho, sim?”
Quando ouviram o outro lado desligando, os dois começaram a tremer com mais vigor. Não demorou puderam ouvir os passos se aproximando pelo caminho de pedra. Só não disparam em corrida porque as pernas bambas não permitiriam. Ao som da chave entrando no ferrolho o garoto firmou as pernas tomando coragem. A porta de madeira se abriu com um rangido. Apareceu no vão um imenso velho de bigode e cabelos brancos, vestido em uma jardineira jeans e camisa listrada de mangas arregaçadas. De rosto levemente rosado e terríveis e profundos olhos azuis.
— Siiiimmm? — A voz se estendia com o sotaque carregado.
— A... a gente só queria saber... se... o senhor não viu o Floquinho, o cachorro da Tati. Ele é branco com marrom.
— Não... Eu não vi cachorro aqui, não.
— Hum...
— Não, não. Não vi nenhum Floquinho, não.
— Ah, tá... ‘Brigado, então.
Os dois saíram descendo a rua, acelerando o passo a cada metro até que estavam correndo rua abaixo. Olhando por sobre o ombro, o garoto ainda pôde ver o velho coçando o bigode sem tirar os olhos dele. Bateu o portão e entrou para além da porta de madeira para junto dos anões de pedra.
O Senhor Gerhardt vivia no alto da rua desde sempre. Não era muito afeito a crianças e animais de estimação, pelo que diziam. Sempre xingava quando encontrava algum excremento pela calçada, pondo a culpa nas crianças que levavam ou deixavam que os animais passeassem por ali. Depois da morte da esposa, tomou gosto por colecionar anões de jardim. O primeiro da coleção era um terrível anão de olhos de pedra, barba volumosa e picareta aguçada. As crianças nunca gostaram muito do Senhor Gerhardt. Tinham medo e um certo respeito, mas nunca gostaram dele. O alemão rabugento, diziam. Falavam uns que ele era cruel e já tinha dado cabo a umas tantas bolas e brinquedos que lhe caíam no quintal. Mas a mais assustadora das histórias a respeito do alemão era a que Tati mais temia naquele momento.
Diziam as crianças das redondezas que, depois da morte da esposa, o Senhor Gerhardt tinha ficado ainda mais cruel. Não eram só os brinquedos que não retornavam depois de transpor seus muros de pedras. Diziam, algumas crianças, que mesmo os animaizinhos de estimação jamais retornavam depois de pôr as patinhas no gramado do Senhor Gerhardt. Vinícius, um menino do começo da rua, disse que a vizinha dele perdeu o coelhinho dela assim. E tinham mais histórias. Gatos, cães e até aves tinham sumido no quintal do alemão do alto da rua. E foi o Vinícius mesmo quem percebeu. Cada vez que sumia um bichinho no bairro, o jardim do Senhor Gerhardt ganhava mais um anão. Se aparecia um anão, desaparecia um animalzinho.
— Ele pegou o Floquinho!
A menina chorava copiosamente.
— Ele pegou o Floquinho e enterrou ele embaixo daquele anão!
O rapaz ao lado, abraçava as canelas e pousava o queixo pensativo sobre os joelhos. É claro que ninguém jamais tinha visto o Senhor Gerhardt fazer nada. Mas era muita coincidência que a cada vez que surgisse um novo anão, sumisse um animal de estimação. Estava lá. Era só espiar por cima do muro. Um anão a mais, um animal a menos. E o quintal do Senhor Gerhardt estava cheio de anões.
— A gente vai entrar lá.
A menina engoliu o choro e arregalou os olhos molhados. O garoto tinha falado sem tirar o queixo dos joelhos. Olhava fixo pra frente. Se virou para ela e continuou:
— Amanhã é domingo. Todo domingo o Senhor Gerhardt sai de manhã um pouquinho antes da missa e só volta lá pelo almoço. A gente entra escondido e descobre se ele pegou ou não o Floquinho.
A menina não conseguiu falar nada. Tentou balbuciar um “mas, mas, mas” mas ficou nisso. Olhou pro menino ao seu lado, abraçado nas canelas finas e seguiu o seu olhar. Estava cravado no muro de pedra no alto da rua. Tornou a olhar pra ele e se agarrou de repente no seu pescoço num abraço apertado e surpreendente. Deu um beijo estalado e rápido na bochecha do rapazinho, ao que ele se afastou com uma careta e passou a mão compulsivamente no rosto como se estivesse se limpando. A menina não ligou e concedeu-se até um pequeno sorriso.
Dia seguinte, os dois brincavam com uma bicicleta próximo à casa do alemão. O portão de madeira se abriu e a visão do pequeno exército de anões lá dentro fez os dois paralisarem. Um carro velho mas bem conservado apontou do portão. Os dois forçaram-se a continuar brincando. O carro deslizou para fora do portão. Ao volante, o motorista lançou um olhar azul e inquisidor para os dois, antes de confirmar o bigode no retrovisor e sair, deixando o portão fechar-se atrás do carro.
Assim que o carro desceu a rua, os dois partiram em sentido contrário. Encostaram a bicicleta na parte mais baixa do muro e, usando-a como escada, escalaram passando ao outro lado. Fizeram tudo muito rápido. Quando deram por si já estavam do lado de dentro, descendo pelo muro de pedras. Quando se viraram deram automaticamente um passo atrás, sentido as pedras do muro nas costas. À sua frente, no gramado, um exército de anões de jardim armados de sacos, pás e picaretas. Todos com os olhos cravados neles, com as tenebrosas barbas pendentes. Era como se estivessem em um paredão de fuzilamento. Como se a qualquer momento, a um comando, o pequeno batalhão partiria para o ataque. Mas não.
Passaram alguns minutos e os anões não foram além de vigiá-los. Como se seus olhares fossem suficientes para paralisar qualquer adversário. Para transformá-los em pedra. O pensamento provocou um arrepio no rapaz que despertou e, puxando a menininha, circundaram o jardim seguindo o caminho calçado por onde corria o carro. Na garagem aberta, ferramentas estavam atiradas em caixas de madeira e papelão. O garoto começou a revirar tudo sob o olhar curioso da menina. Finalmente achou. Não seria que possível que alguém que usasse uma jardineira não tivesse nenhum material de jardinagem. Ele sabia disso. Sua mãe tinha uma jardineira e, claro, material de jardinagem. Que volta e meia ele pegava para brincar na terra em busca de tesouros enterrados. Mas não eram tesouros que ele buscava agora em sua aventura. A menina, quando o viu com a pequena pazinha na mão esbugalhou ainda mais os olhos quase que em terror. Só não gritou porque ficou sem ação. Ele a puxou novamente pela mão e levou-a até o muro por onde tinham pulado. Virou-se, encarou os adversários de pedra, respirou fundo e deu um passo a frente. Estava agora sobre o gramado. Invadira o território inimigo. Foi até o anão mais próximo. O encarou de perto. Fez cara feia, pá em punho. Só faltou rosnar para o homenzinho de barrete vermelho. Circundou o inimigo, bufando. Forçava seu medo a se dissipar. Avançou, caminhou entre mais alguns dos outros anões. A garota apenas o olhava em surpresa, medo, expectativa e suspense. Ele foi caminhando até o anão que parecia ser o mais novo da coleção. Repetiu o ritual, desafiando o mais novo recruta do pelotão de pedra. Passou a pazinha em frente ao anão. O sol continuava a brilhar. O que para ele havia começado como uma aventura de terror tinha se transformado numa aventura épica. E ele era o herói. E venceria os anões alemães. Colocou a pazinha no bolso e agarrou o anão. A menina, perto do muro, prendeu a respiração. Tentou erguê-lo, mas não teve força. Ele saiu só um pouquinho do chão. Começou a arrastar o enfeite de jardim que vinha com dificuldade. Parou um pouco e chamou a menina para ajudá-lo. Ela apenas fez que não com a cabeça, de longe. Ele insistiu até que ela veio, receosa. Passando por entre os outros anões, evitando esbarrar em algum. Com a ajuda dela conseguiu arrastar o novo anão para longe e separá-lo do grupo. Colocou-o contra o muro e agora os dois o encaravam de frente. Ela tentando imitar a cara de mau dele. Os dois intimidando o anão. Agora eram eles que iriam fuzilar o inimigo. O garoto começou a procurar alguma coisa no anão, quase que revistando a estátua. A busca infrutífera foi interrompida pela menina lhe puxando pela manga da camisa. Seguiu o dedinho dela que apontava para o jardim e viu o monte de terra sem grama sobre o qual se erguia o anão removido. Eles se olharam. Ele sacou novamente a pazinha e foi em direção ao monte de terra. Ela ficou no meio do caminho, mais perto do muro do que do jardim. O garoto se ajoelhou na terra, olhou novamente para ela e deu o primeiro golpe com a pá sobre o solo. Não estava muito compactado. O buraco foi se abrindo sem muita dificuldade. E a expectativa crescendo. A pá atingiu algo com um barulho baixo. O garoto levantou-se num pulo. A menina, perto do muro, quase deixou escapar um grito. Ele olhou para ela. Quatro olhos esbugalhados se encontravam. Abaixou-se de novo tomando ar, meteu a pá na terra ao lado do que quer que tivesse atingido e fazendo uma alavanca com a ferramenta forçou o objeto a revelar-se, tirando-o da terra. Mal pode ver a coleirinha vermelha. O pelo branco e marrom sujo de terra saiu das profundezas do jardim fazendo o garoto dar um salto com os pelos dos bracinhos eriçados e o cabelo em pé. Deu um grito agudo e saiu correndo em direção ao muro. A menina, sem mal ver o que tinha acontecido, deu o grito de terror que estava segurando desde de que pulara o muro. O menino veio feito um raio. Meteu um pé na cabeça do anão recostado ao muro e com a ajuda das mãos conseguiu escalar o muro. A menina veio atrás, auxiliada por ele. Os dois pularam o muro, ele ralando o joelho. Montaram na bicicleta dela e desceram a rua aos berros. No bolso da calça dele, a pá vinha manchada de terra e de uma nódoa marrom escura, puxando para o vermelho.
O carro do Senhor Gerhardt veio subindo a rua depois do meio-dia. Uma pequena multidão de vizinhos tinha se formado ao redor da casa. Umas poucas crianças agarradas às saias das mães. Dois carros de polícia parados em frente. O portão arrombado. O velho estacionou o carro e, ao percebê-lo, a multidão começou a se alvoroçar. As mães puxando as crianças para si. Os pais indo na direção do veículo. Foi preciso que os policiais chegassem para que o homem pudesse sair do carro. A polícia fez uma batida pela casa e não encontrou ninguém nem nada suspeito dentro da moradia. O Senhor Gerhardt vivia sozinho. Mas sob a estátua do anão removido estava o corpo de um cão de pequeno porte, de pelos brancos e marrons, com uma coleira com o nome Floquinho gravado. Antes das duas horas da tarde o Senhor Gerhardt seguia para a delegacia no banco de trás de uma viatura. Algemado. Para trás ficou uma vizinhança horrorizada, um portão lacrado com uma faixa amarela e um quintal cheio de anões de jardim deitados ao lado de buracos escavados de onde foram retirados treze cadáveres de pequenos animais. Na manhã seguinte a polícia retornaria para continuar o trabalho.
Naquela noite, finalmente, a vizinhança pode despedir-se com propriedade de seus animais de estimação. Mães, pais e crianças passaram a noite em vigília em frente a casa no alto da rua, com velas, fazendo pedidos e orações por seus animaizinhos. Na frente do portão fechado foram depositados desenhos de cãezinhos, gatinhos, peixes, roedores e aves. A vizinhança passou a noite em frente aos muros do Senhor Gerhardt. O Senhor Gerhardt passou a noite entre as paredes de pedra da delegacia.
A vigília durou até a manhã seguinte, com as famílias se revezando em orações em frente à casa. Alguns dos pais mais afoitos estavam apenas esperando a polícia chegar para quem sabe entrar no terreno do velho Gerhardt e vingar-se sobre sua casa. Mas quando os portões foram novamente abertos pela equipe policial, ninguém do bairro se dispôs a pisar o gramado. Lá estavam, novamente de pé, todos os anões sobre os seus respectivos lugares. À frente dos pés de alguns deles, pequenas covas abertas pela polícia no dia anterior. Todos de pé, ferramentas à mão, olhos fixos à frente. Naquela noite, ninguém quis retomar a vigília.
sexta-feira, 26 de março de 2010
quarta-feira, 17 de março de 2010
Reflexões desnecessárias acerca da crítica literária e da crítica de livros.
A questão do suporte para a literatura me chama a atenção já há algum tempo. Em outra oportunidade, já tentei uma reflexão acerca do livro como fetiche e nossa relação com o seu aspecto físico, em Bibliogamia. O livro, mesmo literário, de certa forma sempre me foi mais do que texto, ainda que este seja, nesses casos, seu aspecto principal.
Há pouco tempo, tive a oportunidade de escrever a orelha do livro "Pequeno Álbum", do escritor e historiador Viegas Fernandes da Costa. Ao momento da leitura da obra e da redação da orelha, o volume estava no prelo, de modo que tive acesso apenas ao texto. Com excessão de um arquivo prévio em PDF da diagramação, só tive contato com o livro propriamente dito após sua publicação e consequentemente, após ter escrito a orelha.
Depois do texto entregue, retornei às críticas recentes que fiz de outros livros. Um detalhe me chamou a atenção. Espontaneamente, em mais de uma oportunidade, incluí na crítica relatos acerca da capa ou de elementos não verbais da obra. Refletindo sobre "De espantalhos e pedras também se faz um poema", do mesmo autor, não pude evitar deter-me sobre a escolha tipográfica da obra e sobre seu método de impressão em linotipo. De alguma forma, estes elementos me pareceram tão parte do livro, quanto o próprio texto. Detinham, em si, uma própria narrativa que dialogava com o texto verbal que continham suas páginas. Mais tarde, criticando "A Terra estava vazia e vaga", de Werner Neuert, os elementos da capa (chego a citar a capista na resenha!) retornam no final do texto dando sentido, talvez resignificando a obra. Mais uma vez uma interferência — ou complemento — do texto não verbal ao verbal. Em outras oportunidades, como em um artigo sobre "Um Largo, Sete Memórias", de Adolfo Boos Júnior, ou em Poesia Twist, em que critico "Falações", de Marcelo Labes, detive-me apenas ao texto verbal. Igualmente uma decisão espontânea, em que nunca havia parado para pensar até agora. E, diga-se, Falações, com capa de Pedro Dieter sobre obra de Justin Kauffmann, tem acabamento digno de nota, especialmente à luz das publicações não tão bem cuidadas ou não tão profissionais que correm pelo Vale.
Sobre "Pequeno Álbum", livro que conta com, além dos textos de Viegas, ilustrações da artista plástica Daiana Schvartz, detive-me apenas ao texto do autor.
Retomando esse breve histórico e as outras críticas, resenhas ou ensaios que acabei por fazer, ergue-se-me a questão: até onde vai um livro? Pensando a obra como um elemento literário, teríamos, talvez, uma redução ao texto verbal escrito, impresso nas páginas. Pensando o volume como obra de arte, numa visão mais ampla, teríamos necessariamente de considerar seus demais aspectos, capa, fotos, ilustrações...
Lembro quando peguei pela primeira vez o volume I da Divina Comédia, em que Dante nos apresentava seu Inferno. A publicação era ricamente ornamentada pelos traços de Gustave Doré. Os mesmo que eu havia visto, uns anos antes, ilustrando as páginas de Don Quixote. Só a obra de Doré — irretocável — seria o suficiente para garantir a valia de qualquer livro ou qualquer folha de celulose sobre a qual fosse impressa. Nesse caso, o que teríamos ali? Duas obras de arte, texto e ilustração, unidas formando uma terceira?
Obviamente, uma crítica literária tem seu objeto claramente definido. O texto. E em grande parte das obras — na maior, arriscaria eu — o restante do livro, mesmo enquanto obra, é secundário. Em poucos casos, no entanto, o não verbal, complementa a obra. A ressignifica. É, portanto, texto.
Mas estes são devaneios muito provavelmente desnecessários, como cita o título deste colóquio. Talvez, as questões do design e da literatura, não devam mesmo se misturar. Mas talvez, esse pensar ingênuo que apresento sirva ao menos para levantar a questão. E aguçar o olhar ao acabamento, ao suporte, ao design, ao livro como uma obra de arte e de comunicação. Nem que seja para profissionalizar (e valorizar os bons profissionais e artistas) esses aspectos. Ainda que tudo isso seja apenas um desnecessário devaneio, uma capa, um projeto gráfico, é, antes de tudo, comunicação. E comunicação é venda. É lucro. E é isso que move o mercado, não? Mesmo o de livros. Mesmo o de arte.
Há pouco tempo, tive a oportunidade de escrever a orelha do livro "Pequeno Álbum", do escritor e historiador Viegas Fernandes da Costa. Ao momento da leitura da obra e da redação da orelha, o volume estava no prelo, de modo que tive acesso apenas ao texto. Com excessão de um arquivo prévio em PDF da diagramação, só tive contato com o livro propriamente dito após sua publicação e consequentemente, após ter escrito a orelha.
Depois do texto entregue, retornei às críticas recentes que fiz de outros livros. Um detalhe me chamou a atenção. Espontaneamente, em mais de uma oportunidade, incluí na crítica relatos acerca da capa ou de elementos não verbais da obra. Refletindo sobre "De espantalhos e pedras também se faz um poema", do mesmo autor, não pude evitar deter-me sobre a escolha tipográfica da obra e sobre seu método de impressão em linotipo. De alguma forma, estes elementos me pareceram tão parte do livro, quanto o próprio texto. Detinham, em si, uma própria narrativa que dialogava com o texto verbal que continham suas páginas. Mais tarde, criticando "A Terra estava vazia e vaga", de Werner Neuert, os elementos da capa (chego a citar a capista na resenha!) retornam no final do texto dando sentido, talvez resignificando a obra. Mais uma vez uma interferência — ou complemento — do texto não verbal ao verbal. Em outras oportunidades, como em um artigo sobre "Um Largo, Sete Memórias", de Adolfo Boos Júnior, ou em Poesia Twist, em que critico "Falações", de Marcelo Labes, detive-me apenas ao texto verbal. Igualmente uma decisão espontânea, em que nunca havia parado para pensar até agora. E, diga-se, Falações, com capa de Pedro Dieter sobre obra de Justin Kauffmann, tem acabamento digno de nota, especialmente à luz das publicações não tão bem cuidadas ou não tão profissionais que correm pelo Vale.
Sobre "Pequeno Álbum", livro que conta com, além dos textos de Viegas, ilustrações da artista plástica Daiana Schvartz, detive-me apenas ao texto do autor.
Retomando esse breve histórico e as outras críticas, resenhas ou ensaios que acabei por fazer, ergue-se-me a questão: até onde vai um livro? Pensando a obra como um elemento literário, teríamos, talvez, uma redução ao texto verbal escrito, impresso nas páginas. Pensando o volume como obra de arte, numa visão mais ampla, teríamos necessariamente de considerar seus demais aspectos, capa, fotos, ilustrações...
Lembro quando peguei pela primeira vez o volume I da Divina Comédia, em que Dante nos apresentava seu Inferno. A publicação era ricamente ornamentada pelos traços de Gustave Doré. Os mesmo que eu havia visto, uns anos antes, ilustrando as páginas de Don Quixote. Só a obra de Doré — irretocável — seria o suficiente para garantir a valia de qualquer livro ou qualquer folha de celulose sobre a qual fosse impressa. Nesse caso, o que teríamos ali? Duas obras de arte, texto e ilustração, unidas formando uma terceira?
Obviamente, uma crítica literária tem seu objeto claramente definido. O texto. E em grande parte das obras — na maior, arriscaria eu — o restante do livro, mesmo enquanto obra, é secundário. Em poucos casos, no entanto, o não verbal, complementa a obra. A ressignifica. É, portanto, texto.
Mas estes são devaneios muito provavelmente desnecessários, como cita o título deste colóquio. Talvez, as questões do design e da literatura, não devam mesmo se misturar. Mas talvez, esse pensar ingênuo que apresento sirva ao menos para levantar a questão. E aguçar o olhar ao acabamento, ao suporte, ao design, ao livro como uma obra de arte e de comunicação. Nem que seja para profissionalizar (e valorizar os bons profissionais e artistas) esses aspectos. Ainda que tudo isso seja apenas um desnecessário devaneio, uma capa, um projeto gráfico, é, antes de tudo, comunicação. E comunicação é venda. É lucro. E é isso que move o mercado, não? Mesmo o de livros. Mesmo o de arte.
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Literatura
terça-feira, 9 de março de 2010
Orelha para Pequeno Álbum
Recentemente tive a oportunidade de ler e escrever a orelha de "Pequeno Álbum", terceiro livro de Viegas Fernandes da Costa. Ainda que não seja um crítica propriamente dita, nem um artigo ou resenha mais extensos e reflexivos, reproduzo aqui como um olhar sobre mais uma obra, bastante recente, produzida a partir de Blumenau.
Quem estiver na cidade, poderá conferir o lançamento oficial do livro no dia 11 de março, a partir das 20 horas, no Bar e Restaurante Farol, junto à Praça do Estudante. Devo estar por lá; nos encontramos.
Quem estiver na cidade, poderá conferir o lançamento oficial do livro no dia 11 de março, a partir das 20 horas, no Bar e Restaurante Farol, junto à Praça do Estudante. Devo estar por lá; nos encontramos.
Orelha para Pequeno Álbum
Não à toa que o primeiro texto que lemos ao nos debruçarmos sobre este Pequeno Álbum de Viegas Fernandes da Costa chama-se Poema. Não que se trate de um livro de versos. Mas é a poesia que permeia e dá corpo à prosa de Viegas. Pequeno Álbum parece trazer um tom mais intimista do que Sob a Luz do Farol e De espantalhos e pedras também se faz um poema, trabalhos anteriores do autor. Sensível, este álbum estabelece relações do texto com a própria arte, pelos olhos e palavras do escritor. Intertextual, Viegas dialoga e nos apresenta alguns daqueles que traz estampados em seu álbum: Chaplin, Tornatore, Flaubert, Quintana, Sartre, Kafka, Calvino e tantos outros que poderíamos preencher toda a orelha deste volume. Quantas memórias trazem este pequeno álbum!
Entre estes grandes nomes sorriem, ainda, como de fotogramas amarelados pelo tempo, figuras que resgatam memórias mais introspectivas, como em Reminiscência, de memórias expostas, gengivas nuas e sorriso ancião inocente. Com esta sensibilidade e aquela intertextualidade, este Pequeno Álbum se revela igualmente metaliterário. O autor, olhando para as figuras deste álbum, parece querer encontrar, em primeiro lugar, a si mesmo. Em Composição compõe "silêncios como quem compõe versos" e explica: "É nestes silêncios que me encontro e onde podem me encontrar como realmente sou!". Nos contos e textos de Pequeno Álbum podemos ver o escritor se dobrando sobre o próprio texto, sobre o próprio fazer literário, como no premiado Ítalo, conto de construção ímpar e riquíssima leitura. Teresa e O Velho, a Velha e o Violino apresentam ainda personagens belíssimos em narrativas sensíveis que exploram os limites desta prosa poética proposta por Viegas.
É tocante, é incômodo, é lírico. É necessário, este Pequeno Álbum. Porque nos lembra que "poesia não se pode ler (...) a poesia vivemos".
Apreciando este álbum observamos o autor, pouco a pouco, tentar desvendar-se, retomar um passado, vislumbrar um futuro, resgatar e desnudar a si mesmo e a seu próprio texto. É quase sem perceber que, ao fim do volume, nos quedamos nós mesmos desnudados e expostos ali, estampados nestas páginas.
Entre estes grandes nomes sorriem, ainda, como de fotogramas amarelados pelo tempo, figuras que resgatam memórias mais introspectivas, como em Reminiscência, de memórias expostas, gengivas nuas e sorriso ancião inocente. Com esta sensibilidade e aquela intertextualidade, este Pequeno Álbum se revela igualmente metaliterário. O autor, olhando para as figuras deste álbum, parece querer encontrar, em primeiro lugar, a si mesmo. Em Composição compõe "silêncios como quem compõe versos" e explica: "É nestes silêncios que me encontro e onde podem me encontrar como realmente sou!". Nos contos e textos de Pequeno Álbum podemos ver o escritor se dobrando sobre o próprio texto, sobre o próprio fazer literário, como no premiado Ítalo, conto de construção ímpar e riquíssima leitura. Teresa e O Velho, a Velha e o Violino apresentam ainda personagens belíssimos em narrativas sensíveis que exploram os limites desta prosa poética proposta por Viegas.
É tocante, é incômodo, é lírico. É necessário, este Pequeno Álbum. Porque nos lembra que "poesia não se pode ler (...) a poesia vivemos".
Apreciando este álbum observamos o autor, pouco a pouco, tentar desvendar-se, retomar um passado, vislumbrar um futuro, resgatar e desnudar a si mesmo e a seu próprio texto. É quase sem perceber que, ao fim do volume, nos quedamos nós mesmos desnudados e expostos ali, estampados nestas páginas.
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