Quando eu era bem mais novo, havia um limoeiro em minha casa. Pequeninho, mas dava uns limõezinhos. E lá ia eu, catava um limão e, não muito esperto, chupava. Era azedo. Não tinha jeito de chupar aquilo sem fazer careta. E se tinha um corte ou uma afta na boca, pior ainda. Aquilo ardia como os diabos. E o pior é que depois de tudo isso, não tinha como não repetir o processo. E eu ficava ali. Chupava o limão azedo, fazia careta, ardia, mas continuava. Excluindo-se a possibilidade de eu ter sido uma criança não muito esperta ou possíveis tendências masoquistas, é mais ou menos isso que aconteceu quando comecei a folhear Falações, livro de poemas de Marcelo Labes.
Não foi fácil ler Falações sem fazer careta. Labes destila um suco ácido e, com freqüência, azedo. E eu cá com minhas aftas e cortes, volta e meia senti arder os versos do autor. Falações se divide em quatro momentos distintos. Altenatintas abre com o solitário Até Quando e já pincela os primeiros elementos melancólicos que vêm se repetir mais tarde, e lembra, com uma escada 'reta em caracol', que “não se pode voltar atrás / quando se diz que ama”. Fiação e Tecelagem traz a acidez na leitura da vida operária “de 8 horas trabalhadas / e 16 de aflição” que termina com “casa na praia encostada / carro do ano passado / e plena realização: / artrite artrose bursite / aposentadoria e caixão”. É seguido pelo azedo Manhã, difícil de engolir como a constatação “Por que não respondes? / Meu Deus, / estás fria!”. No capítulo se destaca ainda O Barco, que atenta em letras garrafais “NUMA CIDADE VITRINE / FORA DE TOM É PECADO”, num retrato de um barco que “porque não navega / não pode ser afundado”. Este poema, ao lado de Fiação e Tecelagem, torna difícil sair de manhã e não rever suas linhas na nas ruas da cidade. Mas ainda assim, tudo parece passar voando, quase despercebido pela maioria. Como descobre Passarinho com seu final seco e despreocupado “Que foi isso? / e virou-se para o lado. / Passarinho na janela, / disse ela”. Assim fica mais fácil concordar com o narrador em Bi-bap-dera-nudara, que pede: “Acende, Maria, o pavio / e deixa a vida explodir”. O capítulo encerra escarrando suas verdades, tentando aparentemente expeli-las, livrar-se delas com Expectorante, que tenta com força “Cuspir fora saudade, lembranças. / Cuspir fora saudade, tristeza. / Cuspir e ver escorregar. / Verde”.
Em Reflexscintos destaco o lírico Canção que parece, junto com Sapiência Cartesia uma tentativa do autor, não em definir-se, mas em encontrar-se. Chamou-me a atenção o fato de que, nos dois poemas, o poeta o é, através dos outros, nunca de si mesmo. Em Canção “Eu me chamo aquilo que dizes”, “Eu me chamo o nome que vais dizer”, “Eu chamo / a tua alegria / ao repetires o som / do meu nome” e em Sapiência Cartesiana “E os que me querem saber / acabam me sendo. / Sou todos os que me sabem eu”. O poeta, procurando encontrar-se, perde-se (ou finalmente encontra-se) no leitor. O autor deixa-se arrebatar novamente pela estética crua, curta e grossa no impactante In Vitro que encerra o beijo com trinta e dois dentes quebrados. A saudade também deixa sua acidez em Ontem e Simplificante, uma saudade que arde como limão em boca machucada.
Febres traz uma série de dez poemas. O capítulo tem, evidentemente, certa unidade semântica e mesmo estética, mas esta é solta, flertando com o son sense, os poemas bastante independentes. Dentre as febres de Labes, chamo atenção para Febre#07 onde o tornar-se adulto é chato mas sem remédio, Febre#08 com o poeta em busca do grande poema, mas termina entregando-se “escreveria o grande poema / se soubesse por que”. O ótimo Febre#10 retorna com toda a acidez e inunda nossas chagas com o ardor da constatação: “Caíram-me os pêlos, / a origem insiste. / Bicho”. Febre#12 retoma o ataque ao “Produto financiado / por bandas de rock inglês / e poetas franceses / que não compreendes”.
Por fim, intransiGENTES, encerra os capítulos num apanhado da obra. para paula (assim, em minúsculo mesmo) brinca com as palavras “plantandolorosamente um canto”. O Filósofoso “Tentou viver de idéias / e morreu de fome” e acabou por “pôr para fora as verdades / que só a ele pertenciam, e mais ninguém”. Em Iminência percebe-se “Que não valia a pena / viver sob certas iminências” e nos afogamos junto com os personagens. Mas em Findados o narrador ensina: “Vós, que morrestes, o mundo, / o mundo é sempre dos vivos”. E retoma com Cíclico sobre aqueles que se deixaram afogar: “(e há uma semana enterrado, / o que terá pensado / quando o primeiro verme matutino / veio lhe perfurar a coxa)”. Ainda assim Fatalidade parece lembrar que esse mesmo afogamento é inevitável: “Causa mortis: afogamento: não parava de chorar.” Retomando estas constatações Ratos encerra rápido, dinâmico (quase musical) e ainda ácido um apanhado de verdades roídas e a presciência “Vai ter pesadelo, filhinho / e acordar com a cara inchada”.
A obra conta ainda com um ensaio de José Endoença Martins, localizando Labes dentre os poetas blumenauenses. Vale a pena ler até para descobrir novos nomes da poesia de Blumenau.
Ao espremer Falações, o leitor deve também se deparar com o mesmo sumo ácido que me chamou a atenção. E cuidado: se você também tiver algumas fissuras, a leitura pode lhe arder à boca. Se há algo de doce em Falações — e há, se dúvida — serve para aumentar o contraste com a acidez da obra. Mas se você for como eu, vai perceber que não é tão fácil largar Falações, mesmo fazendo careta. Talvez a resposta não esteja impressa no livro, mas uma pista descobri na página de rosto. Adquiri o livro do próprio autor, no lançamento, com o devido autógrafo e dedicatória. Como de costume, só li a dedicatória em casa, quando fui dar as primeiras folheadas no livro, no dia seguinte. E lá estava, na caligrafia de Labes: “Eu insisto: há que se escrever, há que se escrever mais. Vamos, então, adiante”. Talvez seja isso. Ainda que tenhamos o azedume e a acidez dos limões, é preciso escrever. É preciso ler. Afinal, como dizem por aí, se a vida nos dá a acidez dos limões, façamos, pois, limonada. Ou poesia.
terça-feira, 5 de agosto de 2008
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6 comentários:
tô louca pra ler mas tenho medo de surtar (e, agora que vejo que tu que é tu surtou, o que acontecerá com minha pobre criatura?).
Rodrigo, que texto belo! Forte como o que quis dizer para a mídia (?) e não disse. Ácido como queria ser fora dos poemas e não sou.
Agora que tipo de diálogos esperas? Eu, aqui, sentindo-me lisonjeado pela leitura e pelo texto decorrente dela, não sei se consigo entrar na discussão. Por acaso conseguimos chamar mais alguém para a roda?
De qualquer forma, muito obrigado!
Grande abraço.
eu comecei a ler convicto que ia usar o sistema de comentários apenas para dar boas risadas (afinal, o limoeiro é beeeeeeem velho, assim como... ah, ok, vc entendeu).
preciso ler a obra para poder comentar a respeito, mas olhando ela, assim meio de lado, me pareceu algumas pontadas de poesia com um sabor bastante atraente.
pra mim, poesias sabor morango e baunilha são sem gosto, não atingem fundo. quem sabe as sabor limão tenham um efeito inesperado.
Gostei do texto que fizeste sobre a obra do Labes. Sempre procurei acompanhar a produção poética do Marcelo Labes, e o que mais me entusiasma, além da qualidade dos versos que escreve, é a relação que estabelece com a própria literatura. Falações mostra bem esta relação. Há um existencialismo intrínseco aos poemas. O que me chama a atenção, também, no livro, é o diálogo intertextual que ele estabelece em muitos poemas. Labes é a tradição poética reconhecida e citada nos versos. Quantos poetas desfilam nos poemas do Labes!
Como disse na orelha, "Falações é este acontecimento literário que ainda vai dar muito o que falar".
Abraço fraterno, e até logo mais.
Viegas
Opa! Voltando! Publiquei teu texto no Falações e no Escambau, com os devidos créditos. Só agora descobri que não tenho teu email. Podes me passar? Tenho aqui algumas intenções midiáticas que deveríamos aproveitar.
Grande abraço.
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