terça-feira, 5 de maio de 2009

Prima Donna

Do alto do palco era difícil identificar os rostos da platéia. Certamente teria alguns conhecidos, sem dúvida os pais — a mãe de olhos chorosos orgulhosos— mas era-lhe impossível distinguir quais as cabeças enegrecidas pelas sombras lhe eram familiares. Sobre ela, a luz forte cintilava-lhe os cabelos louros espiralados. Um farol brilhante frente um mar de expectativas.

No silêncio que antecedia a primeira nota, permitiu — como se tivesse escolha! — à memória levar-lhe à primeira nota que lhe tocara o coração. Estava de quatro, os joelhos no azulejo, as mãos metidas na espuma, a esponja indo e vindo pelo chão. Um som agudo, poderoso, disparado por uma caixa de som em algum lugar, percorreu cômodos, corredores, adentrou a área de serviço, contornou a tábua de passar e tomou-a por trás. Pôde sentir a nota possuí-la, pondo-a de pé num susto. As notas seguintes a dardejaram quase fazendo-a tombar sobre a pilha de roupas a passar. A melodia envolvente, a potência do som, e, de repente, o silêncio completo.

Seguiu receosa em procura da origem do som. Passou pela cozinha até chegar na sala. Viu a patroa com a última edição da mais famosa revista de personalidades. Colado à capa vermelha de letras brancas, um encarte escuro, com letras douradas e uma daquelas pinturas antigas de homens de peruca e meias até os joelhos.

— Que música era aquela, Dona Marlene?

— Ah, veio nesse CD junto com a revista — disse a patroa atirando o encarte e o CD, recém tirado do aparelho de som, no sofá. — Que gritacêra, né?

— É mesmo. Que alto! Mas até que achei bonito.

— Mesmo? Quer ficar pra você?

— Pode mesmo, Dona Marlene?

— Pode sim, Carmen. Fica de presente. É muita gente gritando pro meu gosto — disse rindo.

— Puxa, ‘brigado, Dona Marlene. E pode deixar que eu já vou terminar o serviço. Depois eu ouvo isso.

— Ouço, Carmen. O certo é ouço. Ouvo não existe.

Voltou ao balde enquanto a patroa ria-se da sua ingenuidade e punha-se a par da nova gravidez da cantora-apresentadora-modelo-atriz de televisão.

O silêncio no palco se sustentava. A excitação da platéia no salão lotado, por pouco, faiscava. Como se houvesse uma eletricidade no ar. A arrepiar-lhe os pelos do braço, como a lembrança daquele dia em que chegou em casa com o CD de brinde da revista de personalidades.

Leu com certa dificuldade os nomes incomuns no verso do encarte — um até bem parecido com o dela — enquanto a música tomava conta do quarto apertado, escorrendo pelas caixinhas de som do portátil no chão, ao lado da cama. O quarto foi se enchendo pelo som que subiu pelos rodapés faltantes, pelos pés da cama, numa melodia fluida, densa, até transbordar-lhe pelos olhos. Naquele dia decidiu o que queria para si. Nos meses seguintes o quarto permaneceu alagado pelas vozes possantes e melodiosas, pelos acordes profundos, penetrantes, reverberantes. Foi à loja de usados em busca dos números passados da revista que também viessem com CDs. Procurou CDs usados dos nomes estampados no verso do encarte. Garimpou nos camelôs títulos semelhantes. E passou todas as suas noites ouvindo aquelas vozes, deixando-se inundar até que elas lhe transbordassem pela boca. Até que ela estivesse ali. No silêncio suspenso, no alto do palco, sob a luz.

Quando abriu a boca pôde ouvir a platéia prender a respiração. Até os cupins nas paredes carcomidas de madeira e as traças nas cortinas furadas de pano vulgar cessaram seu mastigar. O próprio palco de tampo de mesa sobre cavaletes arqueados parou de balançar. As cadeiras de palha trazidas emprestadas dos casebres próximos pararam de gemer. A luz sobre a cabeça iluminou o vestido reformado e fulgurou nos seus cabelos louros quebradiços e enrodilhados. E a primeira nota veio-lhe escalando a garganta, percorrendo o interior do pescoço, saltitando pela língua, apoiando-se nos dentes e, num último impulso, precipitou-lhe dos lábios. Cortou o ar uma nota e meia longe do tom, tremulou até quase chegar perto do tom desejado, e ali ficou. E foi seguida por outras notas rápidas, apaixonadas, igualmente imprecisas. A platéia atenta, a mãe às lágrimas em alguma cadeira nas sombras, o velho pai orgulhoso. O palco finalmente era dela.

Um comentário:

Anônimo disse...

Não consigo explicar em palavras o quanto me emocionei com esse texto. Meus braços ainda estão arrepiados...