quarta-feira, 29 de abril de 2009

A Dama do Domo de Vidro

Aproveitando a onda das continuações, no final de agosto do ano passado postei aqui um conto chamado Emanuella e Leonardo. Na ocasião comentei que ele era parte integrante de uma outra narrativa, ainda que fosse um conto à parte. Bom, agora (quase um ano depois!) segue o primeiro conto, que completa (ou é completado) por aquela história.


A Dama do Domo de Vidro

A tal da diretora de arte ia chegar de Singapura lá pelas 15h. Ela e a assistente de arte que ia dar suporte na campanha. O diretor de criação queria que eu acompanhasse o atendimento até o aeroporto pra receber as princesas. Mandou ainda que levasse um buquê pra ela, como boas vindas. “Leva lá e não reclama”, ele disse brincando. “Aproveita pra fazer uma média, já que você vai duplar com ela mesmo. Com sorte, quem sabe a assistente dela não dá mole e você se dá bem? Há quanto tempo você se separou mesmo? Tá na hora de voltar pro jogo, campeão”. Até pensei em esmurrar aqueles óculos de acetato, mas só resmunguei um “dá cá” que mostrou a minha empolgação.

Antes de entrar no carro passei as flores pro atendimento:

— Ó, acho legal você levar isso. Sabe como é, uma gentileza pra moça.

— Bem pensado. Valeu.

— Curti a gravata, a propósito.

No carro, o papo não trouxe nenhuma novidade. O atendimento reclamando sobre o de sempre: porque a gente não consegue fazer um filme como o escritório de Buenos Aires? Porque a última campanha ficou tão parecida com a da W+C London? Porque a estagiária da mídia não quer dar pra mim? Da tal diretora de arte eu não sabia muita coisa. Só que tinha passado três anos numa hottop de Madrid, foi a Singapura fazer fama, e agora veio dar suporte pra campanha e ensinar os tupiniquins a fazer filme com cara de europeu.

No aeroporto, eu e o atendimento ficamos esperando com aquelas plaquinhas com o nome, até as duas aparecerem. Lá veio ela. Bonita, isso eu tive que admitir. Veio trazendo aquele corpinho espanhol e ao lado a assistente à tira-colo, como um cachorrinho. Antes de elas chegarem, virei pro atendimento:

— Você vai receber a moça assim? Ajeita a gravata. Aqui, deixa que eu seguro as flores pra você.

Assim que elas chegaram me antecipei estendendo as flores pra minha futura dupla enquanto o atendimento terminava de ajeitar a gravata roxa. Ela deve ter percebido a artimanha e recebeu as flores mais rindo do que sorrindo:

— Você deve ser o Leonardo, certo? Disseram que você vinha receber a gente.

No carro, voltando pra agência, só falamos de banalidades, pra quebrar o gelo. Ela agradeceu as flores e ficou perguntando sobre a cidade. Ficamos conversando enquanto o atendimento dirigia e a assistente observava. Na agência, Emanuella foi apresentada à equipe, conheceu a estrutura, teve o saco puxado pelo diretor de criação e ainda mais pelos sócios. De vez em quando ela me olhava no meio daquilo tudo e compartilhamos um pouco daquela encenação toda, no reservado de uns olhares.

Só no dia seguinte começamos o trabalho. O entrosamento foi rápido e a semana passou voando, com o trabalho rendendo mais do que eu esperava. Com freqüência ficamos até mais tarde na agência, mas isso já nem me incomodava muito. Aparentemente, nem a ela. As coisas só não iam melhor por causa da aliança na mão esquerda dela e porque a assistente de arte vivia grudada nela, quase que de vigia. Ao menos, se as minhas segundas intenções pareciam fora de cogitação, o trabalho ia cada vez melhor. Naquela noite, tinha decidido convidar ela pra sair e tomar um vinho, nem que pra isso eu precisasse convidar também a assistente mala pra ir junto. A assistente disse que não estava se sentindo muito bem e que era melhor elas irem direto pro hotel, de forma que a minha espanhola achou por bem acompanhar a moça e me deixar sozinho com as minhas idéias. Não sem antes deixar um olhar com um meio sorriso e um elevar de ombros que já me valeu a noite. Não fosse pela assistente doente, eu teria o meu vinho e sabe lá o que mais.

Era meia noite e pouco, um apito repetitivo e uma luz fraca interromperam o meu sono. Do lado da cama, no criado mudo de vidro, o celular vibrava barulhento. Um desenho de um envelope ilustrava a tela com um “1 mensagem recebida” piscando. Pressionei o botãozinho verde e o aparelho parou de vibrar pra me revelar a mensagem:

Boa noite. Vê se sonha com um final pra nossa campanha. Hehehe. Vai ajudar bastante”. O final da mensagem era assinado por um dois pontos seguido de um asterisco e o nome: Emanuella.

Devo ter sorrido sozinho na cama de casal. De pronto respondi: “Uma cena de beijo. Aí está um final interessante pro filme”. Terminei com um ponto e vírgula seguido de um fechar parênteses. Não era preciso assinar. E pus-me de novo a deitar, agora já sonhando com o dia seguinte e suas possibilidades. Nem bem peguei no sono o celular começou a vibrar nervoso de novo.

Hum... malandrinho. O problema desse final é que, pra saber se ele funciona, a gente precisa saber melhor o contexto”. Dessa vez ela não usou nenhum emoticon. Não esperava que ela fosse responder, mas resolvi ver aonde ia dar a história: “Então acho que é preciso criar um contexto...

Dessa vez não dormi. Fiquei olhando o teto escuro até ouvir o celular chamar novamente.

Mas aí teremos que ter personagens também... Estudar o enredo, um lugar, um plot bem amarrado pra criar essa história”. Ela jogou a bola pra mim. Mas e daí, o diretor de criação não havia dito que era hora de eu voltar pro jogo? Respondi, tentando preparar o terreno: “Essa campanha promete ser bem interessante! A gente devia mesmo pensar em criar essa história”. Dormi pensando em uma maneira de driblar o pessoal da agência e a assistente de arte para ficar a sós com Emanuella. No dia seguinte teríamos um brainstorm durante toda a tarde e logo em seguida ela iria retornar para Singapura para outra reunião e só voltaria em mais uma semana. Nesse meio tempo eu ficaria apenas com a companhia da assistente e uma campanha por fazer.

Durante o brainstorm, ela se sentou distante de mim. Mas no olhar, um quê de provocação relembrava as mensagens da noite anterior. Ao lado dela, a assistente parecia ter piorado. A cada dois minutos escondia o nariz vermelho remelento com um chumaço de lenços de papel, que tirava de uma caixinha em cima da mesa. A coitada estava um trapo. A reunião se estendeu muito mais do que todo mundo esperava, até que a assistente, que já tinha quase acabado com a caixa de lenços, resolveu que não tinha mais condições de continuar ali e decidiu voltar para o hotel mais cedo.

A reunião terminou e no meio do alvoroço Emanuella saiu correndo com o atendimento que a levaria ao aeroporto. Sem ter muito o que fazer, fui pra minha mesa arrumar as coisas para ir pra casa. No bolso, o celular começou a apitar de novo. No visor colorido, eu já sabia de quem seria a mensagem: “Talvez eu possa atrasar meu vôo. O final da história pode ser criado”. Já em seguida o celular apitou uma nova mensagem, acabando com a minha animação: “Infelizmente você não leu a tempo! Fica para a próxima”. Só então vi o horário das mensagens. Foram mandadas durante o brainstorm, no meio da tarde. Fui pra casa pensando em como processar a operadora de telefonia. Se não fosse pela demora na entrega da mensagem, àquelas horas eu já estaria de volta ao jogo.

Em casa, mordisquei um resto de queijo da geladeira e fiquei olhando o celular. Esperei alguns minutos e enfim liguei. Depois de me desculpar por não ter respondido a mensagem e explicar que só as tinha recebido atrasado, ficamos os dois, um de cada lado da linha, amaldiçoando a operadora. Falei mais para me convencer do que a ela:

— Bom, tudo bem, fica para a próxima então.

Ela lembrou prontamente que na próxima, a assistente não estaria doente e que ela, por conseqüência, não estaria sozinha. A brecha era aquela. Tudo havia conspirado a favor da situação. Tudo exceto a operadora de telefonia. Ficamos nos consolando com as possibilidades perdidas:

— O que você faria se eu desse um jeito de ficar mais algumas horas?

— Nem pensaria duas vezes. Estou com as chaves do carro na mão.

— Então acho que é o seu dia de sorte. O vôo atrasou. Pode vir me pegar.

Desliguei o celular, engoli à força o último pedaço de queijo, espremi o tubo de pasta de dentes na boca e sai correndo pro aeroporto. No caminho, uma parada na farmácia e segui viagem. Enquanto dirigia dei um jeito de tirar as camisinhas do pacote e aloquei as embalagens individuais na carteira. Quando cheguei, encontrei a minha espanhola com um sorriso maroto nos lábios, ao lado da mala de viagem. No caminho de volta à minha casa ela manteve-se sorridente, uma risada nervosa de quem surrupia alguma coisa escondido. Ela ficava bonita quando sorria nervosa. A fim de tranqüilizá-la puxei um assunto banal:

— Desculpa se demorei um pouco, mas esse horário sempre tem trânsito mesmo.

— Tudo bem. Ao menos aproveitei pra adiantar a leitura do meu livro.

—Ah, é? Tá lendo alguma coisa que eu conheço?

Ela parou por uns instantes, deu uma risadinha, e tirou da bolsa um Flaubert de capa dura azul, com um “Madame Bovary” escrito em letras douradas. Rimos juntos uma gargalhada cúmplice e divertida.

Chegando à minha casa, ela estava um pouco nervosa. Acendi as luzes e acomodei-a na sala. Ofereci uma bebida que ela felizmente não aceitou. Para variar não tinha nada que prestasse em casa. Sentamo-nos no sofá, lado a lado, bem próximos. Olhamos-nos com um “e então?” soando no ar.

— Quer criar o final daquela história? — Perguntei me aproximando um pouco mais.

Ela respondeu com um sorriso aparentemente tímido e um balançar afirmativo de cabeça. O tempo não abundava, mas o beijo foi sem pressa, desacelerado. Um roçar de lábios numa exploração cuidadosa, sem arroubos, como em um comercial comportado. As poucas horas que aproveitamos antes de partir o vôo foram preenchidas com beijos, abraços, conversas e risadas. Falamos de arte, viagens e livros. Ela disse que imaginava um redator com uma grande biblioteca na sala. Eu falei que tinha, sim, uma biblioteca, mas não estava na sala. Ficava no quarto, em uma estante ao lado da cama. A deixa era perfeita. Convidá-la para ver os livros era virtualmente levá-la para a cama. Mas apenas continuamos na sala com beijos de comercial comportado. Não a levando ao quarto naquele dia, teria mais um motivo para continuar a história. Só o faria em um próximo encontro, quando os beijos seriam menos comportados e o comercial só poderia ser veiculado depois da meia-noite.

Despedimo-nos no aeroporto e a vi partindo pro outro lado do mundo. Durante a semana nos falamos freqüentemente, com conversas às vezes provocativas, outras apenas falando sobre a campanha ou simplesmente sobre livros ou qualquer outro assunto que nos mantivesse conversando até acabar com as baterias dos celulares ou com a minha conta telefônica.

Quando ela voltou para o Brasil, não fui recebê-la no aeroporto. Encontramo-nos na agência com olhares furtivos e uma ou outra conversa mais reservada. Saímos algumas vezes para happy hours com a equipe, mas tudo o que podíamos fazer era trocar olhares e conversas discretas, um ou outro roçar por baixo das mesas ou alguma palavra ao pé do ouvido. Eu podia vê-la, mas em meio a toda a agência e da assistente, não podia tocá-la. E ver, sem poder tocar, estava se tornando cruel. Ela, percebendo, provocava ainda mais e se divertia com nossa história bovary. Duas semanas depois, ela precisou viajar e ficaria longe por quase um mês. Para que eu não sentisse sua falta, deixou uma lembrança. Na minha mesa, encontrei um desses domos de vidro, cheios de água, com uma bonequinha dentro. Balancei o enfeite e várias partículas coloridas e minúsculas se misturaram no líquido, como se estivesse nevando uma neve colorida dentro da abóboda. Fiquei olhando para a boneca dentro do domo de vidro e só depois vi o bilhete, escrito com a letra dela: “Pode ver, mas não pode tocar. Eheheheh Um beijo, Emanuella”.

Agora fico imaginando a cara dela. Recebendo, em Singapura, quase uma semana depois, o enfeite que me deixou. Só que agora, com a bonequinha exposta, sem o domo de vidro. Imagino a surpresa dela ao ver o bilhete: “Seu lugar é aqui, Ema”. Só não imagino a reação dela ao ver a passagem, só de ida, aqui para o Brasil.

Nenhum comentário: