Percorreu a última letra com menos pressa. A bola metálica da esferográfica rolando sobre o papel com um ruído inaudível, deixando para trás um rastro azul, uma letra e, finalmente, um ponto. Embainhou com calma a caneta no porta-canetas inox. Releu com atenção a página. Amassou a folha até que se tornasse uma bola compacta de celulose e alguma tinta desperdiçada. Atirou-a, pela janela aberta, contra o fim de tarde mal cheiroso que o vento trazia do rio. No contraluz, silhuetas de hotéis luxuosos e centros empresariais milionários se erguiam do amontoado de casebres rotos e baixos espalhados ao redor. Ali, a distância entre a miséria e a riqueza se media em andares. Se se esforçasse, poderia ver um daiquiri sendo mexido no ofurô de uma das sacadas distantes. Muito mais abaixo, no rés do chão, uma poça servia de refresco para uma criança barriguda ou um cachorro magro. É tudo lixo, tudo é podre.
Já tinha atirado mais páginas pelas janelas do que colocado na rasa pilha sobre a mesa, quando um ruído abaixo da janela dispersou-lhe os pensamentos. Debruçado no parapeito pôde ver, dois andares abaixo, duas crianças, pouco menos que adolescentes, a revirar o seu lixo. A primeira estava abrindo as folhas, transformando as bolas de papel novamente em folhas mais ou menos planas. A outra as empilhava umas sobre as outras. Pôde jurar que um resto de sol tinha brilhado sobre os meninos, numa luz muito fraca para ser percebida por alguém além dele. Um dos garotos olhou para cima e, ao vê-lo, assustou-se. Juntou as folhas e partiu correndo, no que foi seguido imediatamente pelo outro.
Ele ficou observando até os garotos sumirem por entre os casebres escurecidos pela hora. Demorou-se na janela, ruminando algo que lhe nascia junto com a noite. Retornou à mesa, tomou mais uma folha em branco, desembainhou a caneta e fez a esfera metálica na ponta do artefato correr veloz pelo papel, cuspindo letras, palavras, personagens, amarrados por um fio azul que seguia a bola prateada de uma nova história. Escreveu três páginas de um conto breve de aventuras ribeirinhas juvenis. Amassou as folhas em uma bola frouxa de papel e tornou a abri-las. Apoiando-as sobre a mesa, passou-lhes a mão por cima duas vezes, para suavizar os vincos. Desceu com o conto nas mãos, entrou no beco ao lado do prédio e, bem abaixo de sua janela, pousou as folhas abertas sobre um caixote de madeira, calçando com uma carcaça quebrada de celular descartado. Subiu ao apartamento e escreveu mais algumas páginas. Desta vez, colocadas sobre a pilha de folhas escritas em sua mesa. Jantou satisfeito olhando pela janela a cidade escura onde, em algum lugar, havia alguém para quem escrever.
O cheiro do rio chegando pela janela denunciava o horário. Foi ao beiral e ficou espiando ao canto, escondido. Os dois vultos jovens não tardaram a aparecer, esgueirando-se rentes ao prédio. Um dos garotos começou a remexer o lixo quando o outro lhe chamou a atenção. Tomou as folhas, percorrendo rapidamente de cima a baixo, os olhos saltando rapidamente pelas linhas preenchidas à caneta. Os garotos se olharam com um início de sorriso trocado e logo olharam para cima, de repente. Da janela ele não pôde perceber se eles o haviam visto. Mas viu-os partirem correndo em seguida, com risos trocados e, se ele não se confundira, um pequeno e discreto saltitar de alegria. Respirou fundo o ar úmido de aroma duvidoso e retornou à escrita, colocando a esfera metálica na ponta da caneta para trabalhar novamente.
Mais um conto breve, de quatro páginas. Uma continuação do anterior, repetindo personagens em novas aventuras. Numa vida ribeirinha e difícil, mas cheia de esperança, descobrindo um caminho para além das dificuldades. Dessa vez não amassou as folhas. Desceu novamente à viela ao lado do prédio e pousou-as de novo sobre o mesmo caixote. Cobriu-as com a mesma carcaça de celular abandonado. A alvura das laudas perfeitas com as letras de azul vivo destoava do lixo triste, mas ele achava que isso já não assustaria os seus novos leitores.
Subiu devagar os degraus até o seu quarto, imaginando em que condições aqueles textos estariam sendo lidos. Surpreendeu-se com a mente percorrendo as vielas à procura de um abrigo onde folhas amassadas de uma história juvenil entretinham um par de crianças que ainda se permitiam sonhar além daquela planície, do rio, dos casebres e das torres luxuosas dos hotéis inacessíveis.
Entrou no quarto e debruçou-se novamente na janela aberta, olhando aquele marrom acumulado de madeira descartada e zinco velho que forma uma massa de casas e vidas e papelão empilhado. Do meio daquele emaranhado de vidas amontoadas, cresciam resplandecentes as paredes envidraçadas dos hotéis. Como se os primeiros fossem o adubo que, enterrado, alimentava o crescimento dos segundos. Nas paredes envidraçadas, o reflexo da podridão. Como a lembrar-lhes de quem eram. A esfregar-lhes nas fuças o cheiro que tinham. Enquanto, lá no alto da torre espelhada, as janelas eram só reflexo de sol, céu e nuvens.
Da sua janela olhava a planície com aquele cenário com o qual se acostumara, como tinha se acostumado ao cheiro forte do rio nos fins de tarde quentes. Baixou os olhos para o lixo na viela ao lado do prédio, onde viu as páginas do conto contrastarem brancas contra os rejeitos. E percebeu-se no segundo andar.
Foi como se uma lufada forte do vento fedido o tivesse golpeado. Desequilibrou-se levemente, a cabeça tonteou como quem se levanta rápido demais. Agarrou-se ao batente até recuperar a estabilidade. Levantou o olhar de novo para planície. Viu os casebres tristes e encontrou, refletido nos vidros de um dos grandes hotéis, o seu prédio. Na parede refletida cravejada de janelas, em uma delas, muito distante, pequena demais, um homem olhava-o de volta. Àquela distância, sem feições. Mas irremediavelmente familiar. Travou uma guerra com o homem refletido, que o fitava severo, como uma aparição que insiste em assombrar o assombrado. Encarou o antagonista distante por vários minutos, na esperança que ele desistisse ou se cansasse. Mas era irredutível, o homem reflexo. Não pôde suportar o confronto por muito tempo. Acabou por baixar o olhar às casas podres, às cercanias, à viela ao lado do seu prédio e, finalmente, ao lixo onde repousavam as folhas alvas marcadas de tinta azul.
Deu as costas à janela num movimento brusco, sentou-se à mesa de madeira e, com um acenar violento do braço, limpou-a de tudo que a cobria. Tomou o bloco de folhas brancas, resgatou a caneta que havia caído no chão, já fora do porta-canetas, arrancou a tampa com os dentes e a cuspiu longe. Baixou a cabeça sobre a primeira lauda, pousou a ponta da caneta na primeira linha e, com um leve impulso, pôs a esfera metálica em movimento, deixando para trás um rastro de azul pastoso. A esfera acelerou sozinha e foi ganhando velocidade. Deixando para trás letras, palavras, parágrafos. Personagens e histórias e críticas e idéias e sonhos impossíveis. Deixando para trás uma pasta azulada de pedaços de autor esmagados por uma minúscula esfera metálica que não cessava de rodar. Não percebeu o cheiro ribeirinho que vinha se esgueirando pelo ar, escalando as paredes do prédio e espiando pela janela aberta. Não percebeu a escuridão que o acompanhava ao encalço, esticando os dedos por sobre a planície, cobrindo os casebres, esgueirando-se pelas paredes, apartamento a dentro. Deu, instintivamente, um tapa no botão da luminária que havia se equilibrado na ponta da mesa, elevando uma redoma de luz que impediu a entrada da noite nas páginas que iam se preenchendo rapidamente. Não viu quando a noite recuou da sua janela para englobar o resto do mundo. Nem reparou nas poucas estrelas refletidas nas torres espelhadas e nas águas dos ofurôs das sacadas distantes. O tubo azul dentro da caneta ia diminuindo de tamanho enquanto as folhas se empilhavam ao lado, prenhas de algum gozo azulado que vertera o autor. Prenhas de um gozo estéril.
Não notou a luz amarelada que se ergueu do rio e escalou suas margens, se esgueirando por entre os casebres e se refletindo, já azulada, nas fachadas de vidros acordando. Não pensou se a viela ao lado do prédio havia recebido a visita de duas crianças na noite anterior, como não pensou se a luz acordara o homem refletido na janela distante na parede de vidro. Apenas olhava a folha branca se maquiando de azul e a mão dormente seguindo os movimentos constantes da caneta que obedecia às vontades de uma bola de metal rolando sobre o papel, a tinta e a luz já desnecessária da lâmpada fluorescente sobre a mesa.
De repente a esfera parou. A caneta estancou. A mão relaxou. Os olhos cansados acompanharam a última folha ser levada até o topo da pilha. Largou a caneta, desligou a luminária e, finalmente, levantou a cabeça para ver um dia amanhecendo pela janela aberta. Arrastou-se até a cama e deixou-se cair sobre as cobertas e num sono raso de sonhos vacilantes.
Acordou ao fim da tarde. Retornou à sala e ficou, da porta, admirando a pilha de folhas sobre a mesa. Preparou um café e deixou que o cheiro da bebida tomasse o apartamento, antes que o cheiro do rio o fizesse. Xícara em mãos, ficou de pé ao lado da mesa. Alternando o olhar entre as folhas escritas e a janela aberta. Pousou a xícara na mesa, abriu uma das gavetas e tomou um barbante com o qual envolveu as folhas amarrando-as em um fardo. Foi à janela, olhou para baixo e viu apenas lixo, com a carcaça de celular inútil diretamente sobre o caixote de madeira. Conferiu as horas, calçou um par de sapatos velhos e terminou o café. Pegou o fardo de folhas, saiu pela porta do apartamento e deu duas voltas na chave pelo lado de fora. Desceu as escadas até o térreo, saiu pela porta principal e entrou na viela lateral. Deixou o fardo sobre o caixote com o resto de celular em cima. Deixou a viela, atravessou a rua, afastou-se mais alguns metros e pôs-se a esperar, encostado em um muro forrado de cartazes sujos com imagens serigrafadas de jogadores de futebol.
Decidira deixar a torre de marfim. Não seria digno escrever, lá de cima, sobre ali embaixo. Era preciso estar lá. Onde a história era feita, onde a história era lida, onde os personagens se encontravam com os leitores. O cheiro do rio chegou lembrando-lhe das horas. O sol era agora só um reflexo alaranjado nas fachadas de vidro do alto dos prédios. Ali embaixo, a noite já chegava aos poucos. Não tardou, o cheiro do rio trouxe o que prenunciava. Os dois garotos entraram na viela correndo, agitados. Àquela distância poderia supor, felizes. Uns dois minutos passaram até que eles saíram, ainda mais agitados, com o volumoso fardo nas mãos e com sorrisos desenhados nos dentes protuberantes. Saíram saltitando, lépidos, com o mais recente volume de suas histórias. Muito maior que os anteriores.
Mantendo uma distância segura para não ser percebido, seguiu os dois jovens, disfarçando o melhor que podia sem perder os dois de vista. Percorreu ruas feias e estreitas, desviou dos olhares desconfiados, até que viu, de longe, os garotos se esgueirarem por uma portinhola estreita para dentro de um barraco muito pequeno para ser considerado mesmo um casebre. Passou vários minutos ponderando se deveria intervir, se deveria ter com os leitores antes da leitura. Se deveria esperar para retornar mais tarde para conversar só depois que a história tivesse sido lida. E se eles não gostassem da história? Talvez nem tivessem entendido as histórias desde o começo. Talvez pedissem para os pais lerem para os pôr a dormir. Talvez, ao contrário, tinham de ler escondidos, escapando à vista dos pais. Que diria, ao chegar? Não sabia como se apresentar. “Olá, eu sou fulano, sou eu que escrevi essa história. Vocês gostaram?”. “Como vai? Boa noite, gostaram da história? Eu tenho mais algumas, posso trazer”. Sem tomar decisão alguma, como se os minutos o empurrassem, como nos fazem os minutos fez por outra, a nos levar de cá para lá e a dirigir-nos assim como fôssemos pontas de canetas sobre papel, deu por si frente à porta de madeira emendada. Bateu duas vezes na porta, mas a segunda pancada não chegou a acertar a madeira. Ao primeiro golpe a porta se abriu devagar, revelando um interior humilde de um cômodo pequeno.
Numa parede lateral, uma portinhola coberta por uma cortina de tecido velho apenas, provavelmente um banheiro ou um quartinho. Na parede dos fundos, um pedaço de cartaz de jogador de futebol colado à madeira um tanto furada. Na outra lateral, três tábuas horizontais encostadas à parede faziam às vezes de bancos e camas. No centro um fogãozinho improvisado com tijolos, com o braseiro aceso e água borbulhando espumante numa panela de ferro enegrecido. Ao redor dela, além dos dois garotos, uma menina bastante mais jovem, com uma boneca manca nos braços, e outra, um pouco mais velha que todos. Essa, com o fardo de folhas numa mão enquanto, com a outra, arrancava as páginas colocando-as na sopa borbulhante. Um dos garotos, com uma colher, mantinha a infusão em movimento. O outro mastigava uma pasta esbranquiçada e úmida. A pequena mandíbula cessou o movimento ao surgir do visitante. As quatro crianças se refugiaram, abraçadas, junto às camas. Olhos temerosos, corpos tremendo, um chorar baixinho e assustado da mais jovem. Do lado da panela ao fogo, uma boneca manca caída e um fardo de papel prenhe de um gozo estéril.
sexta-feira, 15 de maio de 2009
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6 comentários:
Postado tb no Duelo de Escritores. Como mta coisa q tem saído por aqui ultimamente... E falando em Duelo, provavelmente em breve pintará uma novidade...
rodrigo,
dizem q os melhores são o da gula, luxúria e da ira. o bom é q na estante virtual tem mtas opções de usados quase novos da coleção. comprei um exemplar novinho por $9,90 e vou aguardar ele pra ver se veio novo mesmo.
ah, e ñ seria JUB ao invés de JBR?
1 abraço
*ops, JUR.
Certo, eu esperava qualquer coisa, que eles estivessem brincando, ou fazendo qualquer coisa com os papéis (menos ler as histórias) mas isso, putz, putz...
Não precisa nem dizer que ficou genial, né?
Uma dúvida: se passa em Recife?
Virei fã.
Jéssica, que bom que você gostou. Na verdade não se passa em Recife, não. Na verdade, a locação é fictícia, já que eu criei várias alterações de geografia e espaço, que desvirtuaram consideravelmente, provavelmente o real. Mas teve uma referência sim. Bem longe de Recife. A cidade que de certo modo inspirou Relato em Azul foi Kinshasa. Capital da República do Congo, com quem esbarrei em alguma matéria, em algum lugar agora longe da memória. E valeu a visita :)
Blogger Jéssica disse...
Respondendo seu comentário:
Ah, eu lembrei mais recife por causa do fedor e tal, mas seria um Recife meio exagerado, porque tem uns casebres lá perto do rio que dá o perfume da cidade, mas não sei se tem esses prédios todos. Enfim, gostei do mesmo jeito, achei chocante e tremendamente criativo.
:D
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