domingo, 27 de julho de 2008

A Páscoa do Faraó

Hapuseneb brincava com alguns gafanhotos que tinham sobrado da infestação. Cutucava os insetos, que estavam numa gaiola de palha, com um graveto. As amas já o haviam mandado dormir. Queria despedir-se de seu pai, mas elas disseram que ele não devia ser incomodado, que tinha muitos problemas para resolver ultimamente. O herdeiro acabou se cansando dos insetos e foi dormir. No dia seguinte poderia ver o pai.


Era meia-noite quando um som rompeu o silêncio do palácio. Potoc, po-toc. Potoc, po-toc. Lento, constante, se aproximando. Potoc, po-toc. Uma tênue luz rompia a escuridão dos corredores. Como um archote que se aproximava passo a passo. Potoc, po-toc. Um suave cheiro de sangue fresco acompanhava o visitante. O som ou o odor acabaram por despertar um galgo jovem, primeiro da ninhada, presente que Hapuseneb ganhara do pai. O cão ensaiou um rosnado, mas um golpe poderoso o silenciou. Tudo o que conseguiu produzir foi um ganido baixo, antes que um segundo golpe lhe partisse as vértebras do pescoço.


O visitante se aproximou da porta onde jazia o animal. A luz se projetou nos umbrais limpos. Demorou-se admirando os batentes. Só depois entrou, devagar. Potoc, po-toc. Aproximou-se do leito. Potoc, po-toc. A luminosidade se derramou sobre a criança. Uma grande mão espalmada caiu pesada sobre a boca do infante enquanto dedos fortes comprimiam a face como um torno. Hapuseneb acordou sobressaltado, mas não pôde se mexer sob o peso que o comprimia contra a cama. Não conseguiu emitir nenhum ruído, pedir ajuda ou desvencilhar-se. Os braços magros tentavam em vão afastar as mãos do agressor. Os olhos saltados de terror se destacavam na cabeça calva e olhavam com pânico aquele que trazia a luz sobre o seu leito.


— Não há sangue nos umbrais... — Foram as únicas palavras do invasor e as últimas que Hapuseneb ouviria.


Debateu-se o quanto pôde até que um joelho pesado aterrissou abaixo do abdômen, pouco acima do sexo. Balançava as pernas e tentava com os braços se desvencilhar. O assaltante cerrou o punho esquerdo, que estava livre, recolheu o braço para tomar impulso e precipitou a mão como um aríete contra o primogênito do faraó. Os bracinhos magros nem sequer desviaram o golpe, que atingiu o tronco um pouco acima do estômago, no lado direito. A criança gemeu sob as costelas trincadas. Com a dor nem percebeu que a mão de chumbo se precipitava em outra carga, partindo as costelas que, estilhaçadas, tornaram-se pequenas lanças dentro do corpo miúdo. Uma ponta rompeu a pele e ficou espetada para fora, refletindo em vermelho e branco a pouca luz que a iluminava. Ainda com a mão direita amordaçando a vítima, o visitante tomou com a esquerda aquela ponta que se projetava de Hapuseneb e a empurrou para baixo, qual uma alavanca. O garoto gritou histérico, os olhos esbugalhados jorrando lágrimas, o corpo estropiado jorrando sangue, enquanto a mão pesada não deixava escapar mais que um choro cortado e dolorido, enquanto a costela abria caminho por pele e carne como uma adaga cega, até se chocar contra a borda dura da cama e partir-se mais uma vez. O esforço em gritar desenhava no pescoço fino da criança todas as veias e tendões, projetando a traquéia num esforço inútil para ser ouvido. O assaltante aproveitou e, com o polegar e o indicador em pinça, envolveu a traquéia do menino e pressionou com força sobre-humana. Um som estalado da cartilagem silenciou a criança e um puxão brusco rompeu o duto, dilacerando a garganta já puída. O corpo jovem caiu inerte na cama, alquebrado, vermelho, deixado no escuro enquanto a luz se afastava devagar, coxeando baixo pelos corredores do faraó. Potoc, po-toc.

sábado, 19 de julho de 2008

Velho


Já que o tema da rodada do Duelo foi "Idade" (o texto no post abaixo foi o que eu postei lá no Duelo) aproveito e deixa aqui tb uma versão ilustração do tema. Não tem nada demais. Só mais um velho.

Rememoagem

Da meia-água de telhas de barro, observo a atafona distante. Vã e velha. Abandonada. Apenas um moinho em um mundo que já não enxerga gigantes. Obsoleto num mundo elétrico que dá luz e choque sem dar calor.

O tempo dos moinhos se foi, mas ainda me pesa às costas arqueadas. Como as sacas de farinha me pesavam quando garoto, ao entrar e sair por entre as pás ouvindo o gemer da mó. E como as sacas de farinha, os anos se empilham em minhas espáduas e deixam escorrer o branco sobre meus cabelos. Parcos velos que para ceder espaço ao tempo, precipitam-se como de uma ampulheta. E restam-me tão poucos grãos ainda por cair! Grãos alvos de farinha. Alvos do tempo, que os empurra implacável como o vento empurra as pás. Enquanto, dentro do moinho, à pedra resta apenas o vazio por moer e remoer.

Observo a moenda que se rende à idade. E me curvo dócil ao tempo que me arca o corpo. Enquanto o corpo, à última arca, arca. Até que os anos, empilhados todos uns sobre os outros, se desequilibrem e se precipitem junto com os últimos grãos de farinha. Resta-me apenas o tempo que range em migalhas sob a mó.

domingo, 13 de julho de 2008

As formigas do Père-Lachaise

Como prometido lá no Duelo de Escritores, esta é a versão revisada do conto. Pra ver a primeira versão, lá no Duelo, você pode clicar aqui. Mas nem precisa perder mto tempo. As revisões foram as seguintes: na versão revisada, é o garoto argelino quem canta, o que condiz mto mais à história e às metáforas necessárias. Na versão anterior eu tinha feito os turistas cantarem, o que é um disparate sem tamanho que já foi corrigido. Outra mudança, que eu fiquei receoso de fazer, mas optei por seguir em frente foi alterar as últimas palavras. Na versão anterior, o pacote era pago em 24X. Aqui em apenas 12X. Um mudança mínima que não interfere mto na história, que fiz por dois motivos: a) só depois de escrever fui pesquisar pacotes turísticos e vi que a maioria nao passa mesmo das 12X (em geral, no máximo 10). E, a julgar pelos comentários do Duelo, essa passagem parece ter chamado demais a atenção sobre si mesma, pelo número de parcelas, prejudicando o foco do texto, os dialogismos e as metáforas. Assim reduzindo a hipérbole da última sentença, espero redirecionar o foco às figuras de linguagem usadas no corpo da criação, onde o texto é um pouco mais denso (e onde está sua verdade). O porquê dessa enrolação toda antes de mostrar o texto? Achei que seria interessante um vislumbre do modus operandi da criação e, como essas pequenas alterações mudam (ou não, vcs é quem vão dizer) o texto, achei que seria uma boa oportunidade. Agora sim, lá vai o texto. Vamos ver se agora, melhor.

As formigas do Père-Lachaise
A fila caminhava lentamente, como se as câmeras fotográficas pesassem no pescoço de seus portadores. Uma coluna de formigas seguindo algum traço invisível, a caminho do formigueiro. O céu brilhava azul sobre o leste de Paris, imprimindo manchas redondas de reflexos de lentes nas fotografias que seriam reveladas posteriormente. Seguimos o caminho demarcado por correntes grossas que nos levaram até a amurada de pedra, donde, duas estruturas tórreas se elevavam de cada lado do portão. No alto de cada uma, um disco era sustentado por duas tochas cinzeladas na pedra e, no centro deste, pousava esculpida uma ampulheta alada. Fiquei olhando as esculturas na entrada e a fila foi passando sem que eu percebesse. As ampulhetas, imóveis, não deixavam precipitar nem um grão de areia. Ainda que areia fosse tudo o que eram. Compactada, sólida, mas ainda assim areia. Grãos agarrados uns aos outros temendo a queda. E assim, as ampulhetas não se mexiam. Um cantarolar baixinho me tirou os olhos dos muros, e dei por um garoto de pele parda que entoava uma música qualquer em roupas rotas, a certa distância. Devia estar ali há tanto tempo quanto eu, mas só lhe dei conta quando a fila das formigas de bermudas se foi portões a dentro. Com uma mesura lhe cumprimentei de onde estava, ao que ele se aproximou, sorrindo e cantando, e me estendeu uma canequinha de alumínio, só interrompendo a canção para falar alguma coisa com um sotaque do outro lado do mediterrâneo, provavelmente argelino. O meu francês de banco de escola não pôde decifrar perfeitamente o pedido, mas o gesto de quem pede esmola é decifrável em qualquer idioma de um mundo que não se entende. Dentro da caneca, que devia ter sido estendida já a toda aquela fila, tinha apenas um par de moedas. Dei a entender que não tinha dinheiro, o que, obviamente, ele sabia que era mentira. E cruzei apressado por sob as ampulhetas imóveis e as tochas sem brilho, deixando o menino cantando sozinho enquanto eu seguia as formigas.
De longe avistei a longa fila das formigas fotográficas, com o colorido de idiomas e tecidos contornando as ruelas do Pére-Lachaise. Observei-os de longe e me mantive a alguma distância, seguindo solitário até encontrar algumas figuras conhecidas. Cruzei por Wilde e Bergerac. De longe avistei Proust, mas receei me aproximar e apenas continuei meu caminho sem que me notasse. Cruzei com Balzac e me detive por uns momentos com ele, enquanto as formigas multilíngües andavam à minha volta. Não percebi e já estava novamente no meio delas. E naquele formigueiro, eu era mais uma operária. Molière me chamou a atenção e fui a seu encontro. Ao seu lado, La Fontaine lhe fazia companhia. Cumprimentei-os com um inclinar de cabeça, ao que, aos pés de La Fontaine, um movimento diminuto me chamou a atenção. Sobre a pedra, um círculo de formigas se ocupava em desmembrar uma cigarra. Parte a parte, ela era esquartejada e levada para dentro do formigueiro. As formigas se preparavam para o inverno. Quando levantei percebi que estava novamente em meio àquela multidão de máquinas na mão. La Fontaine me olhou com os olhos frios de pedra e uma vertigem ameaçou me derrubar. Livrei-me da multidão e parti correndo de volta ao portão, me afastando de todos. Das pedras, das pessoas, das formigas. Já novamente debaixo das ampulhetas de pedra, procurei o garoto que havia me abordado, mas já ouvia canção nenhuma. Rondei por ali uns cinco minutos mas ele já se fora. Com peso na consciência, fui junto ao muro onde o avistei pela primeira vez, saquei algumas notas da minha carteira e coloquei-as no canto da amurada com uma pedra em cima, para que o vento não as levasse. Segui os caminhos das correntes sem olhar para as tochas sem luz ou para as ampulhetas imóveis, e voltei para o meu hotel quatro estrelas de pacote pago em doze vezes.

sábado, 5 de julho de 2008

Os ricos pobres e os pobres ricos de Rubem Fonseca

Análise Comparativa dos Contos Feliz Ano Novo e O Outro, de Rubem Fonseca.

“Ó cupidez cega!
Fúria desumana,
que durante a curta existência
a muitos desgoverna,
conduz sempre à perdição!” [1]

Feliz Ano Novo e O Outro têm como premissa primária a violência urbana. Nos dois casos o autor aproveita essa premissa para retratar o contraste das diferenças sociais que ao mesmo tempo criam e são ampliadas por essa violência. O contraste das classes e o encontro – ou confronto – dessas classes é o estopim da violência.

A narrativa, nas duas obras, é em primeira pessoa. Em Feliz Ano Novo pela personagem pobre, em O Outro pela protagonista rica; ambos igualmente anônimos. Dessa forma, o empresário de O Outro pode ser qualquer um de nós (na visão do público leitor, na sua maioria pertencente a classes mais altas da sociedade), da mesma forma e o assaltante anônimo de Feliz Ano Novo pode ser (na visão destes mesmos leitores) um pobre qualquer. Há, em Feliz Ano Novo, uma profusão de nomes e apelidos, mas o narrador permanece anônimo. Pode ser qualquer um daqueles por quem as madames cruzam ou vêem de longe no dia-a-dia, qualquer um daqueles pobres nos sinais, qualquer um daqueles pobres à espreita. Bem poderia ser o pedinte de O Outro. Apesar de Feliz Ano Novo ser narrador supostamente pela ótica de seu narrador pobre, é a visão da classe dominante que é impressa na narrativa. E ela vê o pobre que “não tem dentes, é vesgo, preto”. Ela vê o pobre violento, sem honra ou moral, um bando violento e desordenado que os ameaça, como bárbaros nos portões de Roma. Ele vê um pobre que nutre o ódio contra a classe dominante. Ainda assim, esse mesmo protagonista pobre, avesso a esses ideais “burgueses”, redireciona esses mesmos preconceitos de superioridade da burguesia contra seus amigos, colocando-se superior porque tem ginásio, saber ler, escrever e fazer raiz quadrada, o que lhe dá o direito de “chutar a macumba que quiser”. Já em O Outro, o narrador é um “doutor” executivo, que é levado ao trabalho por um motorista e não precisa dar mais do que dez ou quinze passos. Aqui é ele que representa a classe dominante, com seus assistentes e secretárias. Apesar de puxar o gatilho e ser o veículo da violência mais explícita do conto, não é um personagem amoral. É, aos olhos do público que provavelmente lerá o conto, trabalhador, vítima do estresse que abala sua saúde e caridoso (ainda que não possamos dizer que as doações da personagem ao pedinte sejam fruto da caridade, igualmente, o conto não nos diz que não o é, ficando a cargo do leitor completar a lacuna. Leitor de classe alta, que se identifica com o narrador e estará, portanto, inclinado a ler, ao menos a primeira doação “espontânea”, como caridosa). Ainda que de forma menos maniqueísta, a tônica é a mesma: o medo da violência, o medo que a classe opressora nutre da classe oprimida.

Nos dois contos é o narrador o ator dos atos de violência mais emblemáticos. Sempre contra a classe antagonista. É o narrador o agente da violência. Em O Outro, o empresário que atira no homem/menino na porta de casa e, em Feliz Ano Novo, o narrador que fria e educadamente pede ao refém que se levante para disparar contra ele e desencadear a avalanche da violência. Mas ambos os narradores só libertam a sua fúria após o aparecimento de um estopim externo que coloca em contraste seus mundos ou os aproximando em demasia. Nos dois casos, o prelúdio da violência se dá quando o pobre vai à casa do rico. Essa invasão de privacidade, essa colisão de mundos aterroriza as classes mais altas. A violência não está mais apenas na cidade, não é vista só pela televisão como um voyeur. Ela é presente, invade o lar, o último bastião de defesa da classe dominante. Em O Outro é justamente essa presença do outro que gera a violência, que transforma a tolerância em intolerância, e está na descarga destruidora. Em Feliz Ano Novo essas cenas de contrastes se repetem, cada uma prenunciando a seguinte, num padrão semelhante ao sistema figurativo de Auerbach. Primeiro as lojas de artigos finos para comer e beber vendem todos os seus estoques, enquanto, vendo pela TV, o protagonista se planeja para comer restos de macumba. Dá-se aí a partida ao motor da violência. Em seguida o choque entre os banheiros: um com uma banheira de mármore, outro sem água; um todo perfumado, outro fedido. Gera-se a segunda onda de violência, quando o narrador defeca sobre a colcha da cama, retratando outro ponto comum às obras: a podridão e a sujeira da pobreza invadindo o mundo dos ricos. Em O Outro “o hálito azedo e podre de faminto” encostado bem junto ao corpo, aqui o defecar sobre a cama. Nota-se ainda no ato não só o desprezo da personagem, mas o reforço do universo imagético do banheiro, o foco às necessidades primárias – como a fome e o sexo, igualmente abordados no conto – e a destruição sem motivos. Se em princípio a violência tinha como fim o alimento (motivação para sair de casa, à caça), passou a ser roubar dinheiro e bens (ao confrontar com a casa tão diferente do conjunto habitacional onde mora o narrador) e agora já é gratuita, sem objetivo, sem trazer qualquer retorno. O próprio contraste já é suficiente para gerar a violência. O motor da violência acelera rumo a um moto contínuo, que é desencadeado quando as realidades colidem estrondosamente na cena das “moscas no açucareiro”, gerando uma resposta igualmente estrondosa. A violência tornou-se não apenas gratuita e banal, sem objetivos, mas em si mesma geradora da própria violência. O mesmo Sistema Figurativo onde cada passo prepara para um mais intenso é usado na alegoria ao erotismo e ao sexo. Primeiro a masturbação, depois o sexo negado e por fim o estupro consumado, com a vítima cedendo ao agressor. Em O Outro esse sistema não se repete com a mesma força, mas ainda assim vemos o pedinte dizer ao empresário “doutor, será que o senhor podia me ajudar?” e na mesma tarde o empresário vai ao cardiologista onde provavelmente proferiu as mesmas palavras. O tema da morte também se repete nos encontros: o quase enfarto, a mãe que está morrendo, a mãe que morreu e por fim o homicídio.

Tanto em Feliz Ano Novo como em O Outro, as descrições dos ambientes são superficiais, apenas pontuando um ou outro contraste, levando a narrativa a centrar seu foco nas personagens, nas pessoas. É nelas, mais do que nos banheiros de mármore, que estão as diferenças, os contrastes, e por conseqüência, o choque da violência.

Dado recorrente também nas duas narrativas é o emprego do dinheiro, por parte dos ricos, contra a violência (ou sua iminência) dos pobres. O rico, para proteger seu território, a si mesmo e a sua fortuna, lança mão de parte desta mesma fortuna para afastar os pobres. Não apenas na segurança das moradias, mas também no confronto pessoal. O executivo doa o dinheiro ao pedinte, não por caridade (ainda que já tenhamos comentado que isto pode depender da análise do leitor), mas para livrar-se dele, da mesma forma que Maurício tenta usar os produtos do saque e o banquete para se livrar dos invasores. No caso de O Outro, a artimanha acabou aproximando ainda mais os antagonistas, provocando o inevitável choque; em Feliz Ano Novo é o próprio motivo para o choque e o desencadear da violência.

O ciclo da violência também ocorre nas duas obras, mas de forma distinta. Em Feliz Ano Novo, no que chamei de “motor da violência” anteriormente, onde um ato violento lança patamares para o seguinte mais violento. Já em O Outro, o ciclo é mais focado na continuação e geração da violência pelo medo. A violência do pedinte amedronta o executivo que reage com violência. Aqui, esse medo, como qualquer medo, debilita os sentidos, desvirtuando a própria realidade e apresentando uma visão míope, nublada pelo medo onde um menino franzino assemelha-se a um homem forte. E o disparo, desferido contra aquele homem forte, acaba por atingir muitos meninos franzinos.

A maneira de ler a violência nos contos é também distinta. Em O Outro a tensão pré-disparo é construída durante o conto. A explosão da violência é evidente, mas de forma mais velada, sendo pressionado pelo medo até o arroubo final. Enquanto os fatos narrados encaminham o leitor à intolerância, a linguagem protege esse leitor até o momento derradeiro. Ele senta a angústia do narrador, talvez até o seu medo, mas não é vítima direta dessa violência. Já em Feliz Ano Novo, o próprio leitor se vê agredido. A linguagem crua, chula, a profusão de palavrões e detalhes escatológicos atenta diretamente contra o leitor. Ao mesmo tempo em que é agredido pelo narrador com seu ódio pelo status quo, o leitor é agredido pelo autor com sua escolha de palavras e foco nos detalhes que ressaltam essa violência. A linguagem de Rubem Fonseca nos obriga a ver a nu a violência, a ter contato com ela a cada linha. Não podemos, como em um filme, virar o rosto nas cenas fortes para não vê-las, aqui a violência permeia toda a obra, mesmo quando a cena, em si, não é violenta.

Enquanto um conto nos apresenta ricas personagens pobres, onde o próprio narrador toma o papel do pobre violento e do rico preconceituoso, e domina pela força a classe opressora, o outro nos apresenta os pobres ricos, encurralados, amedrontados, levados ao extremo. E entre ricos pobres e pobres ricos, há uma vida rica em violência, medo e contrastes.



[1] Alighieri, Dante. A Divina Comédia. Canto XII. L&PM, 2004, pg.46.