terça-feira, 12 de dezembro de 2017

No meio da noite, à beira do rio.


No meio da noite, à beira do rio.
Ao lobo.

 

Image from Balaa


Quem visse o homem no meio da noite atirando poemas ao rio,
poderia estranhar. Mas não havia ninguém para estranhar o homem que atirava poemas ao rio no meio da noite.

                ***

A ponta da montanha acendeu-se dourada como se o sol acendesse uma vela na cabeceira antes de se deitar. O vale foi se recolhendo e cobrindo-se de sombras enquanto o silêncio ia se instalando baixinho, baixinho. Um grilo ninava as folhas com a sua canção enquanto as luzes se acendiam e se apagavam nas casinhas da cidade embalada pelo rio.

Ao sul dali, ao pé da montanha, o homem viu contra as nuvens violetas os últimos pássaros retornando aos ninhos. Partiu a última tora e conferiu o cume dourado que começava a se apagar, enquanto confiava à barba um último pensar. Deixou de lado o machado, empilhou as toras partidas e arrastou de volta para casa o carrinho com a lenha cortada.

Viu as paredes de madeira cortada, abriu a porta de madeira cortada e entrou na casa de madeira cortada a machado dia após dia, mês após mês. Atirou umas toras à lareira e fez o fogo crepitar, mais pela luz do que pelo calor. Luz, e calor, sabia, vinham da madeira cortada. Como a água quente para o banho e a comida quente sobre a mesa.

Imergiu na tina de água aquecida e deixou-se ficar até que o dia se lhe desimpregnasse do corpo e se diluísse no banho, até que murchassem-lhe os dedos e se arrefecesse a água. Até que ebulissem-lhe as ideias.

À mesa, partiu com a faca sobre uma tábua de corte, o queijo e o pão, e com a mesma faca apontou um lápis de carpinteiro. Acendeu uma vela na lareira e, ainda mastigando, sentou-se à escrivaninha junto à janela que servia de moldura para uma noite anil.

A primeira estrela despontou no céu quando o grafite desenhou a primeira letra no papel. Uma constelação então se seguiu preenchendo as linhas com letras grossas lideradas pelo grafite de ponta achatada. Sob o papel, as nervuras da madeira deixavam suas marcas e influenciavam cada letra. Cada pequena rachadura na tábua acabava sendo transferida para o papel. A vela chorava lágrimas de cera a cada verso de madeira, farpa e grafite. Visto do lado de fora, era só um quadro de luz pendurado na noite, ao pé da montanha, à margem da cidadezinha que dormia margeando o rio.

A vela encolheu, o lápis descansou e os dedos sujos de grafite ergueram a folha. Os lábios se moviam sem som enquanto os olhos saltavam de verso em verso na cadência do estalar de brasas. O homem levantou-se, acendeu uma lanterna no braseiro e meteu lápis e papel no casaco antes de sair porta a fora, noite a dentro. Lá longe a cidade de janelas escurecidas ronronava. A mata ao pé da montanha ressonava tão baixinho que já se podia ouvir o rio cantando na noite lá adiante. Seguiu o caminho iluminando a escuridão até chegar à beira das águas. Pousou a lanterna ao chão e tirou do bolso a folha pobremente adornada pela caligrafia bruta, marcada pelas ranhuras da madeira mal trabalhada. Com uma solenidade afetada, finalmente atirou o poema ao rio.

Cada verso nadou um momento nas marolas antes de imergir nas águas frias. Cada palavra mergulhando e se diluindo nas águas que cortariam o vale enquanto a cidade dormia. Quando o sol nascesse já nenhum traço do poema restaria. A lanterna já não brilharia na escuridão, não haveria poeta, só um homem perdido na mata a partir as toras para queimar na noite. O rio levou embora cada verso, como tantas vezes fez antes daquela. E o rio, o homem sabia, corre em apenas uma direção. Leva a tudo e nada retorna. Era o último poema de farpa e grafite, na última noite à margem do rio. Meteu as mãos nos bolsos e olhou o céu, os lábios movendo-se em silêncio, não ao som das brasas agora, mas das águas. Saboreando o sabor dos últimos versos. Repetiu um pouquinho mais alto, só o suficiente para as palavras se ouvirem acima do arrulhar da corrente. Sem tirar os olhos das estrelas tirou o lápis gasto do bolso para uma última entrega ao rio. Baixou os olhos, e congelou.

Logo na outra margem, muito próximo, um lobo olhava com olhos brilhantes, intrigado. A luz da lanterna lhe caindo sobre a pelagem cor de cravo e canela. A surpresa sobrepôs-se ao medo com a presença do animal. Mesmo assim não ousou se mover. Ficou estático enquanto o visitante espiava com um ar curioso, virando a cabeça de lado, farejando o ar enquanto tateava com as patas a relva. O animal sentou-se sobre as patas traseiras, mirou as estrelas e lançou aos céus um uivo que ecoou acima das copas por todo o vale. Que sobrepujou as margens, as madeiras mal cortadas, as janelas escurecidas e a cidade sonolenta. Que estremeceu o homem e lhe arrepiou os pelos como a lembrar-lhe que também os possuía. Que lhe crispou os dentes como para que não esquecesse que também os tinha. E que lhe palpitou o coração como para certificar-se de que ainda batia. O suor frio preencheu-lhe as ranhuras do rosto como a cera da vela preenchera as ranhuras da escrivaninha, e o punho contraiu-se no susto, agarrando o lápis com a força de um torno.

Com cuidado, o homem andou lentamente de costas, sem tirar os olhos do animal que parecia arder na noite na outra margem. Foi se afastando, devagar, até o rio se perder entre as folhas, quando deu as costas à mata e correu pela noite sem pensar nos riscos de tropeçar na escuridão.

Rompeu porta a dentro e encontrou a cabana escura, apenas com o som do seu arfar. Recostado na porta percebeu como brilhavam as brasas por sob as cinzas e como contrastavam com a escuridão. Com o atiçador cutucou os pontos incandescentes, como quem se certifica se um animal ainda está vivo, e de pronto viu arder de novo as chamas. Então lançou um longo e demorado olhar pela janela, enquanto o punho ainda encerrava o lápis de carpinteiro de ponta romba.

No fim da tarde seguinte, quando o sol acendeu seu candeeiro no pico mais alto antes de deitar-se, o machado já estava guardado. O carrinho cheio de lenha recém cortada já voltava para casa seguindo os passos largos do homem. O lápis desgastado foi apontado mais uma vez e novamente correu sobre a folha, sem se importar com as rachaduras sob o papel. As estrelas já brilhavam fortes na noite quando o lápis descansou. O homem deixou a cabana e, sem a lanterna que ficara para trás na noite anterior, seguiu guiado pelas estrelas e pelas curvas do caminho que traçara outras tantas vezes sem se dar conta. Encontrou a lanterna apagada à margem das águas que refletiam a luz tênue dos astros, que driblava as folhas das árvores. Sacou do bolso o papel e começou a ler o poema em voz baixa. As palavras, atiradas à folhas, ao rio, à noite, ao mundo. Pouco importava se se perderiam entre os arbustos ou na corrente, pouco importava se para nada ou para algo. Os lobos, imaginava, tinham bom olfato. Certamente poderiam seguir o cheiro dos versos.

Não demorou muito, antes do fim da segunda leitura, um par de olhos amarelados surgiu na escuridão, feito um par de estrelas selvagens que se esgueiravam de dentro da vegetação. A pouca luz não permitia ver mais do que a silhueta negra que se aproximava. O homem hesitou por um momento, o animal meneou a cabeça, e o homem recomeçou, tentando manter o mesmo o ritmo e a falsa calma na voz. A figura finalmente se fez visível à margem do rio, sua sombra engolindo o brilho que salpicava na água. E ele ficou ali até o final da leitura. E da leitura seguinte, e da seguinte, em voz um pouco mais alta. O homem pousou o papel ao chão próximo às águas rasas que corriam, pegou a lanterna apagada e se afastou devagar.

As noites se repetiram, com poemas de farpas entregues a um lobo cor de cravo e canela. Nas noites em que chegava mais cansado do que o normal, após o dia ao cabo do machado, ou quando tinha as mãos feridas e o ânimo abatido demais para empunhar o lápis, o homem ouvia um uivo distante romper em meio à escuridão. E tomava a faca para apontar o lápis, e acendia a vela nas toras em brasas da lareira, e escrevia sobre o tampo imperfeito e cheio de ranhuras da escrivaninha junto à janela que emoldurava vale, noite e uivo.

Quem visse o homem no meio da noite atirando poemas ao lobo, poderia estranhar. Mas pouco importava que alguém estranhasse o homem que atirava poemas ao lobo no meio da noite.

Assim seguia, portanto, o homem atirando poemas ao lobo, no meio da noite, à beira do rio.

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