terça-feira, 7 de novembro de 2017

Férias em sessenta e quatro



Férias em sessenta e quatro


Nos sessenta,
havia muito barulho na cidade.
Nas férias,
então,
meus pais me enviaram ao campo.

Casa dos avós,
colher fruta
do pé,
comer fruta
no pé
de carambola no fundo de casa.

Brincar no rio,
pescar lambari sem pegar nada,
correr atrás de galinha,
brincar com cachorro.

Barulho, só de mato.

Sem estouro
(de escapamento, meu pai dizia),
sem choro
(de birra, minha mãe falava).

Sem corre-corre na rua.

No campo, só criança corria.
(sem bandeira na mão)

Esconde-esconde,
só com as crianças dos vizinhos
(e sempre a todos se achavam).

Podia deixar a luz acesa até tarde da noite
pra ouvir as histórias do avô à cor de lampião.

As aulas, lá longe.
Nem pensava nelas.
Sequer lembrava que talvez já houvessem começado.

Tinha aula com o avô
(de rosto triste)
a ensinar sobre as plantas.

Tinha aula de fazer pão com a avó
(de olhos marejados).

Tinha aula de saudade
tarde da noite,
quando ouvia a vó chorar baixinho no escuro
(sem saber por quê).

As férias se estenderam.
Estenderam-se os banhos de rio
e os passeios na relva.

À margem do riacho,
pés descalços na água,
perguntei ao rio:
do meu pai, você ouviu?

— Saudades do maroto.
Ainda garoto, vinha aqui me caçar as rãs.
Cabelo molhado, largava barquinho de papel
pra eu carregar.
Dizia que um dia iam chegar ao mar.
Lá bem lonjão, que nem aprendeu num livro.
Queria ser professor, dizia.
Mas faz tempo não dá as caras.
Ia ao pasto, colher margaridas
pra filha da vizinha.

O pasto amarelado pelo sol da tardinha parecia vazio.
Mas perguntei à margarida: meu pai, você viu?

— Vivia por essas bandas, o arteiro.
Os olhos eram diferentes, no resto, você inteiro.
Já faz um tempo não o vejo.
Da última vez, correu daqui para o potreiro.

Um baio velho, amarrado, não se fez de rogado:
— O seu velho eu não vi.
De mais novo me ajudava
com o trato do arado.
Mas parou pra estudar e me deixou o legado.
Se quiser vá procurar,
lá no sótão empoeirado.

No sótão, solitário,
um baú se escondia,
na poeira adormecido.

— Reconheço esse nariz,
que se metia em minhas folhas.
Os olhos já são outros,
mas da lembrança não destoas.
Daquele que veio antes,
lembro por um triz.
Faz muito, muito tempo,
partiu com uma atriz.

Mostrou-me um fotograma
de um rapaz e uma garota.
No rapaz, o meu nariz,
na garota os olhos meus.
Ainda eram jovens
quando pais se tornaram meus.

O baú adormecido
me acordou com contos vários.
Contaram outros causos,
velhos livros nos armários.

Atento a todos eles,
minhas aulas recebi.
Porque não revi meus pais,
finalmente compreendi.

O baú profetizou,
não havia o que fazer:
— A história se repete,
com o tempo você vai ver.

O baú me avisou
e voltou a adormecer.
Homem feito retornei
à cidade de meu nascer.

Dos meus pais nunca encontrei
nem causo nem história.
Diziam à boca miúda,
melhor deixar só na memória.

Depois de tanto tempo,
já quase me esqueci.
Dos tempos que passei,
das aulas que perdi.

Penso apenas no baú,
sonolento a ronronar.
Vendo as notícias, creio,
está prestes a acordar.

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