sexta-feira, 24 de abril de 2009

Invisíveis

Estacionou a minivan francesa sob uma árvore em frente à boutique de roupas da moda. Conferiu a maquiagem no retrovisor interno. O batom cor de pêssego delineando os lábios, a sombra discreta num tom acobreado-esfumaçado, os olhos contornados pela delgada linha negra donde partiam os cílios alongados à rímel. Acionou o alarme sem olhar para trás enquanto os scarpins cor de areia iam pisando o branco e preto da calçada arborizada. Cruzou a rua no final da quadra e entrou no terreno de gramado bem cortado. A porta de vidro embaixo do letreiro em preto e prata do estúdio refletia os cabelos alourados em salão, o tailleur sobreposto a uma camisete branca, o pescoço envolto por duas voltas de ouro branco, a saia pouco acima dos joelhos revelando as pernas recém depiladas que terminavam nos calçados que já pisavam o capacho. A porta se abriu fazendo soar uma campainha eletrônica. Não demorou muito o homem saiu de trás da cortina, tirou a máscara do rosto para revelar um sorriso e disse:

— Bem no horário, Amanda. Só uns cinco minutos e já atendo você, tá?

Ela sorriu de volta em consentimento, cruzou devagar as pernas e pegou uma revista de tatuagens para folhear. A agulha se fez ruidosa do outro lado da cortina sobre a pele de algum desconhecido. Em pouco tempo silenciou. Mais uns minutos depois e o tatuador saiu de trás da cortina com um rapaz jovem de alargador na orelha e o pulso inchado por uma recém terminada tatuagem. O tatuador acompanhou o rapaz à porta, despediu-se e tornou a fechar a porta. Conferiu o relógio na parede e falou:

— Prontinho. Você é o último horário da manhã, o próximo cliente é só lá pelo meio-dia. Agora eu sou todo seu.

Ela sorriu sincera e se levantou, deixando a revista sobre a cadeira. Ele a acompanhou ao outro lado da cortina, logo depois de lançar um último olhar à porta.

Do outro lado da cortina, mais quadros na parede branca, com corpos coloridos em molduras minimalistas. A parede do fundo era de um tom berinjela, as laterais brancas e o piso preto brilhante como o da recepção. Um cabide aguardava num canto próximo à maca e um grande espelho ocupava parte da parede ao lado da mesma. A mulher pendurou o tailleur no cabide, ao que o espelho refletiu um decote revelador na camisete. Pelo reflexo ela pôde ver os braços decorados a envolverem e o rosto sorridente aparecer, por trás, ao lado do seu. Ela sorriu para si mesma. Virou-se e, num movimento rápido, foi colocada sentada sobre a maca. Sentiu a mão habilidosa subir-lhe pelas pernas lisas e pelas ânsias comprimidas no peito. Um punho agarrou-lhe a lingerie por entre as pernas e puxou-a junto com repreensões arraigadas, e entulhos de expectativas não cumpridas. Sentiu a saia subir-lhe ao ventre carente e ofereceu o peito aberto, amplo e leve a outro peito livre. Sentiu um coração bater contra o outro, como dois corações deveriam bater, deixou-se penetrar além da carne. Sentiu a agulha entrar e sair seguindo seu traçado, deixou-se possuir pela arte, pelo artista, por ela mesma. Lançou o corpo para trás e, com as costas sobre a maca, pode ver-se no espelho, de ponta cabeça, os cabelos louros pendurados e o corpo seguro por braços de um colorido bonito. Viu-se sorrir um sorriso pêssego.

Fechou o botão aberto da camisete ajeitando a corrente de ouro branco. Conferiu a aparência no espelho e observou as marcas que ninguém via. Invisíveis, mas mais coloridas que os corpos na parede, mais brilhantes, mais vistosas. Olhou para o homem que retornava do banheiro, sorriu menina e fez um tchauzinho com a mão, depois de assoprar um beijo. Saiu pela porta de vidro pelas calçadas branquepretas sem olhar para trás.

O homem conferiu o relógio. Em meia hora arrumou o estúdio, higienizou todo o lugar, conferiu a agenda. Logo a menina estranha chegaria. Ele gostava dela. Garota bacana. Michaela – 12h15. Ouviu a porta abrindo e saiu de trás da cortina.

— Oi, Mica! Quanto tempo! Bem no horário.
— Oi, Denis. Ainda lembra de mim?

A única menina que ele conheceu ou ouvir falar que fazia tatuagens sem tinta. Assim, a sessão não demorou. Em duas horas a cliente olhava-se no espelho, com a saia levemente levantada. A menina pagou o tatuador, despediu-se com um beijo no rosto, e saiu feliz com a saia balançando pela calçada e os cabelos achocolatados vivos sob o sol. Percorreu as quadras até o prédio onde morava, cumprimentou o porteiro simpático e entrou no elevador no térreo. Apertou o botão do décimo primeiro andar e o aparelho se pôs em movimento. No display escuro apareceu em vermelho a sigla “G1”. A porta se abriu e a garota ruborizou-se à visão da mãe. A mulher hesitou por um instante e logo entrou no elevador.

— Oi, fofinha. Como foi lá na Renata?
— Tudo bem — Respondeu a menina com um sorriso franco.

As duas olharam para a frente e viram, no espelho do elevador, dois sorrisos largos refletidos. Um vestido de saia de pregas e uniforme escolar; outro de tailleur, ouro branco e lábios de pêssego.

No espelho do estúdio, o homem se perguntava que tatuador que se preza teria as duas clientes mais fiéis sem uma marca sequer no corpo. “Tatuador de bosta”, pensou divertido rindo pra si mesmo.

Um comentário:

Rodrigo Oliveira disse...

Publicado agora no Duelo de Escritores. É a 'continuação' do conto "Invisível", que vc pode ler um pouco mais abaixo, no post de 14 de abril.