Estacionou a minivan francesa sob uma árvore em frente à boutique de roupas da moda. Conferiu a maquiagem no retrovisor interno. O batom cor de pêssego delineando os lábios, a sombra discreta num tom acobreado-esfumaçado, os olhos contornados pela delgada linha negra donde partiam os cílios alongados à rímel. Acionou o alarme sem olhar para trás enquanto os scarpins cor de areia iam pisando o branco e preto da calçada arborizada. Cruzou a rua no final da quadra e entrou no terreno de gramado bem cortado. A porta de vidro embaixo do letreiro em preto e prata do estúdio refletia os cabelos alourados em salão, o tailleur sobreposto a uma camisete branca, o pescoço envolto por duas voltas de ouro branco, a saia pouco acima dos joelhos revelando as pernas recém depiladas que terminavam nos calçados que já pisavam o capacho. A porta se abriu fazendo soar uma campainha eletrônica. Não demorou muito o homem saiu de trás da cortina, tirou a máscara do rosto para revelar um sorriso e disse:
— Bem no horário, Amanda. Só uns cinco minutos e já atendo você, tá?
Ela sorriu de volta em consentimento, cruzou devagar as pernas e pegou uma revista de tatuagens para folhear. A agulha se fez ruidosa do outro lado da cortina sobre a pele de algum desconhecido. Em pouco tempo silenciou. Mais uns minutos depois e o tatuador saiu de trás da cortina com um rapaz jovem de alargador na orelha e o pulso inchado por uma recém terminada tatuagem. O tatuador acompanhou o rapaz à porta, despediu-se e tornou a fechar a porta. Conferiu o relógio na parede e falou:
— Prontinho. Você é o último horário da manhã, o próximo cliente é só lá pelo meio-dia. Agora eu sou todo seu.
Ela sorriu sincera e se levantou, deixando a revista sobre a cadeira. Ele a acompanhou ao outro lado da cortina, logo depois de lançar um último olhar à porta.
Do outro lado da cortina, mais quadros na parede branca, com corpos coloridos em molduras minimalistas. A parede do fundo era de um tom berinjela, as laterais brancas e o piso preto brilhante como o da recepção. Um cabide aguardava num canto próximo à maca e um grande espelho ocupava parte da parede ao lado da mesma. A mulher pendurou o tailleur no cabide, ao que o espelho refletiu um decote revelador na camisete. Pelo reflexo ela pôde ver os braços decorados a envolverem e o rosto sorridente aparecer, por trás, ao lado do seu. Ela sorriu para si mesma. Virou-se e, num movimento rápido, foi colocada sentada sobre a maca. Sentiu a mão habilidosa subir-lhe pelas pernas lisas e pelas ânsias comprimidas no peito. Um punho agarrou-lhe a lingerie por entre as pernas e puxou-a junto com repreensões arraigadas, e entulhos de expectativas não cumpridas. Sentiu a saia subir-lhe ao ventre carente e ofereceu o peito aberto, amplo e leve a outro peito livre. Sentiu um coração bater contra o outro, como dois corações deveriam bater, deixou-se penetrar além da carne. Sentiu a agulha entrar e sair seguindo seu traçado, deixou-se possuir pela arte, pelo artista, por ela mesma. Lançou o corpo para trás e, com as costas sobre a maca, pode ver-se no espelho, de ponta cabeça, os cabelos louros pendurados e o corpo seguro por braços de um colorido bonito. Viu-se sorrir um sorriso pêssego.
Fechou o botão aberto da camisete ajeitando a corrente de ouro branco. Conferiu a aparência no espelho e observou as marcas que ninguém via. Invisíveis, mas mais coloridas que os corpos na parede, mais brilhantes, mais vistosas. Olhou para o homem que retornava do banheiro, sorriu menina e fez um tchauzinho com a mão, depois de assoprar um beijo. Saiu pela porta de vidro pelas calçadas branquepretas sem olhar para trás.
O homem conferiu o relógio. Em meia hora arrumou o estúdio, higienizou todo o lugar, conferiu a agenda. Logo a menina estranha chegaria. Ele gostava dela. Garota bacana. Michaela – 12h15. Ouviu a porta abrindo e saiu de trás da cortina.
— Oi, Mica! Quanto tempo! Bem no horário.
— Oi, Denis. Ainda lembra de mim?
A única menina que ele conheceu ou ouvir falar que fazia tatuagens sem tinta. Assim, a sessão não demorou. Em duas horas a cliente olhava-se no espelho, com a saia levemente levantada. A menina pagou o tatuador, despediu-se com um beijo no rosto, e saiu feliz com a saia balançando pela calçada e os cabelos achocolatados vivos sob o sol. Percorreu as quadras até o prédio onde morava, cumprimentou o porteiro simpático e entrou no elevador no térreo. Apertou o botão do décimo primeiro andar e o aparelho se pôs em movimento. No display escuro apareceu em vermelho a sigla “G1”. A porta se abriu e a garota ruborizou-se à visão da mãe. A mulher hesitou por um instante e logo entrou no elevador.
— Oi, fofinha. Como foi lá na Renata?
— Tudo bem — Respondeu a menina com um sorriso franco.
As duas olharam para a frente e viram, no espelho do elevador, dois sorrisos largos refletidos. Um vestido de saia de pregas e uniforme escolar; outro de tailleur, ouro branco e lábios de pêssego.
No espelho do estúdio, o homem se perguntava que tatuador que se preza teria as duas clientes mais fiéis sem uma marca sequer no corpo. “Tatuador de bosta”, pensou divertido rindo pra si mesmo.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
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Um comentário:
Publicado agora no Duelo de Escritores. É a 'continuação' do conto "Invisível", que vc pode ler um pouco mais abaixo, no post de 14 de abril.
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