Sentindo nas costas a palha macia da cadeira, ouvia as ondas, longe, rebentando na praia. Olhava, sem pressa, a dança da fumaça do fumo enrolado na palha, dando gosto ao ar com cheiro de maresia. A vida na Praia da Saudade passava devagar.
A porta da rua se abriu de repente e o vulto da mulher passou correndo chorando pela sala. Desapareceu quarto adentro, onde a porta de madeira verde mal pintada bateu forte, fazendo balançar a santinha na parede acima do batente. Com o susto, o homem deixou o palheiro cair entre as pernas e afastou rápido a chama, com medo de que lhe queimasse a lenha. Jogou o palheiro na pia, fechou a porta de entrada, ainda escancarada, e foi ter com a mulher. Bateu de leve com os nós dos dedos nos nós da madeira velha e entreabriu uma fresta de um palmo na porta. “Mulher?” perguntou e enfiou a cabeça na fresta. Lá estava a pobrezinha, de bruços, chorando e soluçando com a cabeça enfiada nos travesseiros.
—Raimundinha, o que cê tem minha flor?
— Nós vai pro inferno, Tonho! Nós vai pro inferno. — Chorava a mulher entre os travesseiros.
— Mas como nós vai pro inferno se tu acabou de vir de se confessar? Tá tudo bem minha flor...
— Mas nós vai queimar, Tonho. O padre disse que nós pecâmo.
— Nós pecâmo? Mas quando mulher? Se tudo que nós faz é trabalhar, descansar, não fazemo mal pra ninguém.
— Nós pecâmo à noite, Tonho. Com o que a gente faz na cama.
— Mas ora, mulher! Se nós tamo casado! Que que tem de mais? É papel do marido fazer da mulher, mulher. E da mulher fazer do marido, homem. Onde já se viu pecado nisso?
Tirando a cabeça do travesseiro, Raimunda fungou fundo as lágrimas, olhou pro marido, e resmungou:
— Não, Tonho. Mas é do jeito que nós faz. — Baixou os olhos, envergonhada mais consigo mesma do que com o marido. — Do lado que nós faz.
— Do lado?
— É, que nem sábado. Lembra?
— Ora, mulher! Mas nós tamo casado! Ninguém tem que ver com coisa de marido e mulher.
— O padre Castro disse que não importa, que é pecado. E que nós vamo pro inferno! — falou e enfiou a cara nos travesseiros voltando a chorar.
Raimunda passou a tarde choramingando no quarto, orando pro crucifixo na parede sobre a cama. À noite, a mulher mal jantou. Antônio empilhou a louça na pia enquanto ela foi deitar. Em seguida também se recolheu. Deitou ao lado da esposa e percebeu-a, mesmo de costas para ele, tensa, os músculos retesados. Buscando passar um pouco de conforto e segurança, aproximou-se envolvendo a mulher com o braço de arrastar rede, amparando as costas dela com o peito dele. Ela se recolheu rápido com um gritinho escapado dos lábios, contra a própria vontade. Ele se afastou e saiu do quarto, nervoso. Não com a mulher, mas com o padre que atazanava a esposa e se metia no seu casamento. Ficou andando na cozinha de um lado para o outro, frenético, culpando o sacerdote. Ouviu um choramingo vindo do quarto, que lhe cortou o coração. Alterado com o sofrimento da mulher, tomou da peixeira em cima da pia e saiu, posto em pijamas e chinelos, noite a fora pela Praia da Saudade:
— Agora vamo ver quem vai pro inferno. É hoje que desembucho um padre que nem corvina!
O solado de borracha do chinelo não amorteceu o pé pesado contra a porta do Padre Castro, que se abriu de supetão. O homem de torso nu, com o rosto enrolado por uma camisa de pijama, avançou os cômodos com passos largos e lâmina pronta. Foi numa curva do corredor escuro que deu com o casto padre, despido da imponência do manto bordado de cruzes, posto apenas em um camisolão de tecido velho e folgado. A mão do agressor agarrou forte entre o pescoço e o ombro do padre e o fez girar sobre os calcanhares metidos em pantufas, de modo a impedi-lo de identificar o invasor. A lâmina brilhou fraca na pouca luz do corredor.
— Pode procurar e levar o que quiser — disse o padre com voz controlada.
A mão forçou o sacerdote a cair de joelhos, sentindo o fio gelado da peixeira no pescoço.
— Vou levar nada não seu padre. Senhor é que pode encomendar sua alma que vou ensinar a deixar as mulher da praia em paz e os casal sem seus conselho.
— Então é isso? Bando de pecadores! As mulheres todas umas promíscuas, os homens uns bárbaros. Sodoma!
— Pecado é ficar pondo coisa na cabeça das mulher! Destruir casamento e atazanar gente de bem. É hoje que tu vai encontrar o tinhoso.
— Eu sou um homem do Senhor, a morte não me assusta. Vou pro céu encontrar o Pai, e você não pode fazer nada contra isso.
— O senhor vai é pro inferno!
— Os homens santos vão pro céu. O inferno é pros impuros que se deixam macular o corpo.
— O senhor vai é pro inferno! — repetiu o homem em tom ensandecido que, com um empurrão, prostrou o padre que teve de apoiar-se nos cotovelos para não dar com os dentes no piso de madeira que já esfolava seus joelhos. O que a morte não assusta, só o inferno apavora. Mesmo sob as imprecações do padre Castro, sob a ameaça de excomunhão, sob as promessas de danação e gritos de sacrilégio, o invasor fez-se pesado sobre o sacerdote de dedos agarrados à madeira do assoalho, uma baba fina a escorrer pela boca, uma oração entrecortada nos lábios frouxos tremendo. E uma breve, involuntária, e discreta, ereção.
Antônio só deu por si quando se ergueu, ajeitando as calças do pijama, assustado, e fugiu em disparada. O padre, prostrado, camisolão erguido, corpo violado.
No domingo seguinte a comunidade da Saudade surpreendeu-se com uma pregação ainda mais exacerbada, cheia de imprecações à violação do corpo, acusando as mulheres da praia, fazendo, mesmo, as mais sensíveis chorarem. Era mais que um sermão, mais que uma vingança. Soava, isso sim, a um desafio. Na mesma noite, vendo a mulher novamente às lagrimas sob a ameaça do inferno, Antônio retornou à casa do padre. A porta com uma fresta estreita aberta. Entrou sem fazer barulho e vislumbrou o homem no mesmo camisolão folgado, de joelhos, voltado para um altar contra a parede. Parecia rezar. Sem a exasperação da última invasão, o pescador não teve coragem de repetir o intento e condenar o padre, santo, ao inferno. Por um instante o padre pareceu silenciar a oração, deixando o silêncio noturno mais audível. Abaixou-se em prostração em frente à imagem de Nossa Senhora, com o rosto quase tocando o mesmo chão que suportava os joelhos. Ficou naquela posição, em meditação, por muitos segundos. O silêncio e a escuridão assustaram o invasor, despido da coragem da raiva, que saiu correndo ruidoso.
A lua cheia iluminou um pescador correndo na praia, só um vulto longe na noite, e um padre silencioso, fechando a porta de casa com o olhar perdido no chão e um suspiro pendido no peito.
segunda-feira, 30 de março de 2009
quinta-feira, 26 de março de 2009
Resposta a Tomas
José procurou os olhos da esposa. Do sofá da sala, pôde ver a cabeça de Graça aparecer por trás do armário da cozinha, olhos atentos, procurando os do marido. O filho, ainda calado, aguardava uma resposta.
— Então, pai, é verdade? Ele existe ou não?
Tomas percebeu a gravidade da pergunta quando a mãe se aproximou e sentou-se ao lado do pai. A última vez que tinha visto foi quando Aslan tinha ido pro céu dos hamsters. A essa altura, já se preocupava com o beta no aquário. Será que deus também lembrou de um céu para os peixes?
— Olha, filho — o pai começou enquanto a mãe o sentou entre os dois, no sofá — o que você acha?
— Eu não sei — por que os pais sempre respondem uma pergunta com outra? — eu acho que sim, mas o Pedro disse que não. Que os pais só contam isso pra gente se comportar ou ficar feliz.
— Bem, filho — a mãe começou, trocando um olhar com o pai — de um jeito, o Pedro até tem razão...
— Mas como tem razão? Papai Noel não existe mesmo?
— Na verdade não, Tomas. — o pai reforçou.
— Mas quando eu me comportei e pedi uma bicicleta ele me deu...
— Pois é, filhinho — a mãe retomou — a bicicleta foi a mamãe e o papai que compraram e deixaram embaixo da árvore. Um presente porque a gente ama muito você.
— Então tudo que eu pedi pro Papai Noel...
— Olha, Tomas — o pai interveio novamente — você já tá ficando grandinho e acho que já pode entender. Papai Noel é tipo um faz-de-conta, uma história bonita pra quando a gente é criança. Na verdade ele não existe mas é uma fantasia bonita pra gente acreditar, entendeu?
— Mas... se não tem Papai Noel, como é que tem Natal?
— Não, não é isso, Tomas. E Natal, na verdade, não tem nada a ver com Papai Noel. Natal é o nascimento do filho de Deus.
— Falando nisso, querida, é bom a gente ir andando se não quiser se atrasar pra missa.
— Ah, não! Eu não quero ir pra missa de novo!
— Vamos, Tomas. Se comporta que papai do céu tá vendo.
— Então, pai, é verdade? Ele existe ou não?
Tomas percebeu a gravidade da pergunta quando a mãe se aproximou e sentou-se ao lado do pai. A última vez que tinha visto foi quando Aslan tinha ido pro céu dos hamsters. A essa altura, já se preocupava com o beta no aquário. Será que deus também lembrou de um céu para os peixes?
— Olha, filho — o pai começou enquanto a mãe o sentou entre os dois, no sofá — o que você acha?
— Eu não sei — por que os pais sempre respondem uma pergunta com outra? — eu acho que sim, mas o Pedro disse que não. Que os pais só contam isso pra gente se comportar ou ficar feliz.
— Bem, filho — a mãe começou, trocando um olhar com o pai — de um jeito, o Pedro até tem razão...
— Mas como tem razão? Papai Noel não existe mesmo?
— Na verdade não, Tomas. — o pai reforçou.
— Mas quando eu me comportei e pedi uma bicicleta ele me deu...
— Pois é, filhinho — a mãe retomou — a bicicleta foi a mamãe e o papai que compraram e deixaram embaixo da árvore. Um presente porque a gente ama muito você.
— Então tudo que eu pedi pro Papai Noel...
— Olha, Tomas — o pai interveio novamente — você já tá ficando grandinho e acho que já pode entender. Papai Noel é tipo um faz-de-conta, uma história bonita pra quando a gente é criança. Na verdade ele não existe mas é uma fantasia bonita pra gente acreditar, entendeu?
— Mas... se não tem Papai Noel, como é que tem Natal?
— Não, não é isso, Tomas. E Natal, na verdade, não tem nada a ver com Papai Noel. Natal é o nascimento do filho de Deus.
— Falando nisso, querida, é bom a gente ir andando se não quiser se atrasar pra missa.
— Ah, não! Eu não quero ir pra missa de novo!
— Vamos, Tomas. Se comporta que papai do céu tá vendo.
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Rodrigo Oliveira
sexta-feira, 20 de março de 2009
Quatro pés de vento
Quatro pés de vento
Um réquiem para quatro patas.
Não há dois lugares onde o vento sopre igual. E o vento nunca sopra da mesma forma duas vezes. Então, se você quiser dividir algo único com alguém, divida o vento. Um sopro de vento dividido é uma raridade que não se repete. Um daqueles momentos que eternizam o próprio tempo.
Uma tarde de sol dourando o verde, sentar na grama com o céu soprando forte as nuvens, cabelos, pelos, e todos os cheiros e sons do mundo. Hoje, o vento sopra lembranças de uma tarde verde e azul, lembranças de preto e branco e de um vento dividido sob parapentes voadores e cumplicidade. Hoje, o vento sopra torto com a lembrança de que o vento nunca mais soprará igual. Hoje o vento lembra que, aquele vento, jamais deixará soprar; trazendo todos os cheiros e sons e lembranças do mundo. O vento é o uivo do mundo.
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Rodrigo Oliveira
quarta-feira, 4 de março de 2009
Sanhaçassanhado
O mês de março será muito corrido por aqui. Não esperem muitas atualizações nos próximos trinta dias. Quando puder, vou colocando alguma coisa nova por aqui. Em abril deve tudo voltar ao normal. Por enquanto, só uma bobabem q fiz rapidinho pra dizer que postei alguma coisa nova:
Sanhaçassanhado
sanhaçassanhado
se sossega
assanhadão
sossega 'sassecura
se segura
sanhação
sanhaçassafado
só sossega
a safanão
sanhaçassinado
só sossega
no caixão
Sanhaçassanhado
sanhaçassanhado
se sossega
assanhadão
sossega 'sassecura
se segura
sanhação
sanhaçassafado
só sossega
a safanão
sanhaçassinado
só sossega
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