quinta-feira, 30 de julho de 2009

Se pudesse hoje

Se pudesse, hoje
te queria assim,
........... bem louca.
De rasgar a roupa
e estourar botão
........... [e estourar botão]

Se pudesse, hoje
te queria assim,
........... bem prosa.
Decifrar teu verso
colher tua rosa

........... [Rósea rosa violácea

que se abre já colhida
desabrocha já na mão]

Se pudesse, hoje
te queria assim,
........... assim.
colher teu orvalho
........... [gota a gota]
........... gota
.................a
............ ....gota
te colher pra mim

Se pudesse, hoje
te queria assim,
........... sem roupa.
Toda mãos e toda boca
toda pernas
........... [toda vinhas
........... trepadeira]

Se pudesse, hoje
te queria assim,
........... lasciva.
te amassar o fruto
pra te verter o sumo

reduzir-te a meu consumo.

Se pudesse,
........... hoje.

domingo, 26 de julho de 2009

Silêncio

— Silêncio!

Acordou sobressaltado no escuro. Os olhos baços à meia luz, ouvindo murmúrios baixos. Esfregou com os dedos os olhos que arderam salgados e divisou as duas loiras juntas, lado a lado, nas poltronas vermelhas na escura platéia quase vazia.

— No. Hay. Banda!

O homem no palco declamava pausado e com potência. Um poderoso staccato à capela, num sotaque castelhano.

— There is no band.

Com os olhos, se acostumando a pouca luz e a mente à vigília, pôde melhor divisar as mulheres nas poltronas escuras.

— And yet, we hear a band — Continuou o apresentador sob acordes gravados.
E tudo escureceu numa tela preta e num chiado eletrônico que cessou baixinho. Silêncio. Já vira o filme por vezes sem conta. E sempre acabava por vê-lo de novo. Tentava sempre revê-lo, na esperança de outro final. De uma guinada na história. De um personagem que pudesse surgir e valer-lhe, de fato a audiência. Mas o filme sempre insistia em passar de novo. No hay banda. E de novo estava ele em Silêncio.

Levantou-se, derrubando a vasilha de plástico ao chão. Caminhou sobre os milhos em cima do tapete e abriu a janela da sala. O inverno entrou frio pelo apartamento. Lá fora, as ruas de luzes brancas, todas em silêncio. Por cima dos telhados pontiagudos, o inverno se estendia até o velho teatro. Viu as luzes, o movimento, as pessoas distantes. Mas tudo era silêncio. Subiu no beiral da janela, aguardou o vento frio e lançou-se na corrente, acompanhando o ar gelado por sobre os telhados germânicos. Sobrevoou a movimentação. Atores, músicos, poetas. Artistas. Quadro de esteta elaborada. No palco, um latino estendia a mão, ao que respondia um clarinete invisível. Estendeu o braço a outro lado. Respondeu-lhe um trombone, também invisível. Do alto, com o público e os outros artistas em volta, num grande círculo, a cena lembrava um ritual pagão. Todos vestidos de peles dançando ao redor da fogueira. The bonfire of De Palma. O vento soprou frio de novo e ele se deixou levar. Enrodilhou-se numa nuvem úmida e adormeceu no silêncio de um sussurro linchiano.

Acordou sobre o sofá com dor nas costas e atrasado. Saiu apressado para o compromisso. A cidade ensolarada, o velho teatro. Tomou o lugar à mesa. O discurso manso seguiu até que levantasse a cabeça para o público. Lá atrás, na última fila da platéia, um casal idoso o olhava com olhos famintos. Engoliu em seco, o ar frio. Um clarim fez-se soar distante. Mas não havia banda.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Poema Marginal

domingo, 19 de julho de 2009

A sétima badalada

Olhou para trás. Pouco via além das duas linhas fundas sulcadas na neve que se estendiam até debaixo de suas rodas de madeira. No mais, tudo era branco. À exceção dos troncos escuros dos pinheiros que conseguiam se fazer ver através do nevoeiro.

Um bufar resmungado atraiu-lhe a atenção para ao enorme animal à sua frente, com as patas peludas enfiadas na neve e lufadas nebulosas saindo-lhe das narinas. Sacudia a crina, vez por outra, para livrar-se dos flocos que se acumulavam. Mesmo a besta já estava impaciente. Sacou da casaca grossa o relógio de bolso. Já chegava a aurora, diziam os ponteiros na linguagem muda dos relógios. O dia, ainda mais calado, não dizia nada, enterrado na neve e névoa.

Longe, um sino soou a badalada lúgubre do aguardo vão. À segunda badalada, a besta resmungou, com que adivinhando o comando para partir. Uma terceira badalada soou enquanto a neve começava a já cobrir os rastros da carroça. À quarta badalada, nada mudou. À quinta, apenas um suspiro quente em forma de nuvem despencou por baixo do bigode penteado. A sexta badalada trouxe o som de algo se quebrando. Frágil, perdido na neve, próximo e irremediavelmente distante.

Quando uma forma finalmente divisou-se tênue, entre os troncos encobertos pela neve, já não havia mais badalos, marcas na neve ou aguardo. Havia apenas o silêncio branco. E um suspiro quente em forma de nuvem pendurado no ar.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Ao Diretor Geral

Não era, em nada, similar a um filme americano. Não havia a luz pendente, não havia o good-cop-bad-cop, não havia espelhos falsos na parede. Não havia, na verdade, parede. Na capoeira baixa e seca, pouco se via além do local iluminado pelos faróis. No contraluz uma silhueta insistia:

― Melhor ir falando. Isso pode levar a noite a toda e não tenho a menor pressa de ir pra depê. O café de lá é uma bosta, mesmo.

No chão, um outro vulto encolhido no capim seco. As mãos atrás das costas. De longe, nem seria visto. Àquela hora, de qualquer forma, não havia ninguém para ver coisa alguma. E o vulto sabia disso.

― Eu já disse, só fiz o que ele pediu. Foi o que disse o vulto. Que outra coisa não era, naquela situação, o sujeito. Apenas um vulto.

― Olha ― continuou a silhueta no contraluz ― eu não tô na minha hora de serviço, não tô de uniforme. Não tem nenhuma regra que eu tenho que seguir. Se você falar, você volta comigo, num pedaço só, inteirinho. Peixe pequeno assim, se se comportar, em um ano, dois, tá fora. Eu até dou um jeito de ajeitar o seu lado lá dentro, pra ficar sossegado. Agora, se me enrolar, eu tenho um saco preto no porta-malas que é o seu número. E daí você nem vai sentir o cheiro da porra do café da depê. Ca-dê-a-mer-da-da-gra-na?

― Eu não peguei nada. Só o que o velho me pagou. Como eu ia saber que a caixa era pra ele?

― Tá me achando com cara de otário? ― A silhueta no contraluz parecia perder um pouco da paciência. ― Você quer que eu acredite que o velho pagou pra acabar com ele mesmo? Você apagou o infeliz pra roubar alguma coisa. Se não era dinheiro era o quê?

― Não roubei nada, não. Numa dessas ele queria se matar e só não tinha coragem pra puxar o gatilho.

― Não, não, não. Eu conheço esse tipo de gente. Fresco e com grana assim, se ele fosse se matar ia tomar um punhado de comprimido com uísque num copo de cristal. Esse tipo nem gosta muito da idéia de uma arma, que é pra não estragar o enterro. Imagina receber uma carta bomba na cara. Caralho, a cabeça do velho tava do avesso! Os braços cortados no cotovelo. As mãos não deu nem pra achar. Gente assim nunca ia arrumar uma dessas pra se matar. Suicídio não cola. Você me diz onde tá a grana, eu pego – até deixo um pouco com você, se você cooperar – e a gente faz a prisão na boa. A hora que você sair, ainda vai ter uma grana te esperando.

― Mas eu já disse, eu mandei a caixa do jeitinho que ele pediu. E foi só. Não roubei nada, não. Não sei de dinheiro nenhum. Só tenho o que ele me pagou pra enviar a caixa.

― Tá certo, você não quer dizer, tudo bem. Já vi que não adianta insistir.

A silhueta no contraluz puxou o vulto do chão, deitou-o com o peito sobre o capô do carro, soltou-lhe das algemas, conferindo se não havia deixado nenhuma marca no pulso.

― Vaza. E fica sabendo que eu tô de olho. Se tu aparecer com alguma grana, eu vou ficar sabendo. Vaza. Corre!

Um vulto partindo, correndo na capoeira, tendo às costas a luz dos faróis de um carro solitário, uma silhueta com um trinta e oito apontado e duas balas. No contraluz, o cano curto fumegava. O corpo, entre o capim seco da capoeira, mais adiante, também. A silhueta saiu da frente do carro, abriu a porta, passou uma chamada pelo rádio acusando uma perseguição ao suspeito. Alguns minutos depois, uma nova chamava pedia uma ambulância. O fugitivo tinha sido alvejado.

― Esse café é uma bosta, hein?
― Não muda nunca. Você devia estar acostumado.
― E aí, alguma novidade da tal caixa?
― Esperando a perícia, ainda.
― Pra mim tá na cara que alguém mandou a bomba pro cidadão pra sair com alguma grana. Grana graúda.
― Sei lá. Tá muito estranho. Mas pode ser. O cara acaba de ganhar uma promoção, vira diretor geral, tá com a grana, alguém fica sabendo e resolve explodir com ele.
― Acho que sim.
― Cara, não fazia nem um mês que o infeliz tinha assumido o cargo.
― Nem deu tempo de aproveitar o dinheiro que tava ganhando.
― Pode dizer o que quiser, mas esse é um cargo que eu não queria ter. O cara que tava no cargo antes foi preso com um desvio de verba animal. E isso porque acabou não pagando o imposto de renda, senão ninguém ia descobrir. Aí vem esse velho, assume o lugar de uma hora pra outra, e recebe uma carta bomba de presente. Prefiro ficar aqui com esse café de bosta e manter a minha cabeça em cima do corpo.
― Mas e aí, chegou a ver a caixa antes de ir pra perícia?
― Pouca coisa. Normal. Toda parda, selo do correio, confidencial escrito na tampa, logo abaixo do nome do cargo. “A/C: Diretor Geral”. Tudo digitado na máquina, nenhuma caligrafia.
― Mas a perícia já não adiantou que as digitais bateram?
― Já, já. Parece que foi o cara que você pegou mesmo. Pena que não deu pra pegar o sujeito. Se espremesse ele, devia dar pra descobrir o que aconteceu, ou porque ele mandou a carta.
― Pode ser, pode ser.

Perto da capoeira, numa casa silenciosa, outra unidade de investigação fazia uma varredura na casa do principal suspeito de ter enviado a caixa. Mesmo à luz do dia, distante, era impossível ver a poça de sangue entre o capim seco lá fora. Do lado de dentro, sob a cama, numa sacola de lixo, uma pilha de dinheiro, separada em notas de cem e cinqüenta. Notas sequenciais, descuidadas. Coisa de amador. O investigador encarregado avaliou por cima algo em torno de uns cinco mil reais. Com uma margem de erro para mais ou para menos, caso algo sumisse ou passasse despercebido. Embaixo de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, na estante da sala, um pedaço de jornal rasgado que tinha, na margem, uma nota escrita à mão, com o endereço da empresa e instruções para o envio de uma encomenda ao Diretor Geral, em uma caixa confidencial, para garantir que não parasse na secretária. A digital, dificilmente poderia ser comparada com algum suspeito, visto que os dedos que ali se encaixavam haviam desaparecido sob uma explosão. No canto do jornal, um pedaço de foto de matéria desatualizada e a data de pouco mais de um mês atrás.