sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Pastel

Passava pouco das sete horas. Uma chuva muito fina praticamente pairava no ar. Apenas um spray, relutante em tocar a cidade, agarrava-se nas luzes brancas derramadas pelos postes verdes.

Dobrou a esquina com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco de moletom, a cabeça baixa escondendo-se da umidade ou de algo mais que pairasse no ar. Desceu a Floriano Peixoto contando as manchas de chicletes grudados na calçada. Entrou na galeria de azulejos azul-anos-setenta, deixando para trás o ar molhado e os ecos de um trânsito lento e imbecil. Ouviu as borrachas dos tênis molhados coaxarem pelo velho corredor, até divisar a luz âmbar que escapava da porta em arco, junto com as notas de um samba gravado há muito.

Era cedo, não havia muita gente. Na área das mesas, só duas ocupadas: uma, colada à parede, por este homem que rabiscava com uma caneta Bic em um caderno amarrotado. Outra, do outro lado, por um casal de trinta e poucos, de mãos dadas, conversando abaixo do samba choroso que saía de uma caixa de som em algum lugar. Com uma careta mal disfarçada, dirigiu-se à outra ala do pequeno botequim. Esta, tinha o balcão ornamentado por fregueses costumazes e long necks de vidro verde pela metade.

Ao se aproximar, podia ouvir o resmungar randômico dos homens ao balcão. Baixo, pra não atrapalhar a viola chorosa, buscando um alvo qualquer sobre o que praguejar. O patrão que não entendia do negócio, que parou no tempo, que ficara ultrapassado; o trânsito lerdo e estúpido de uma cidade de três ruas que não escoava sua pequenez; a chuva que insistia em cair lá fora quando não eram meses de calor infernal. Sentou-se num dos bancos, ao que os outros o olharam, só para tornarem a fixar-se nas próprias bebidas. Alguém que visse a cena de fora, poderia apontar certa animosidade na acolhida. Mas visto de perto, de dentro, era possível sentir o consentimento mudo, uma compreensão silente e até uma tênue, muito tênue — quase como as gotas de chuva suspensas lá fora —sensação de boas vindas.

Deixou o corpo arquear para frente, olhou sobre o balcão as garrafas verdes, e pediu uma ao garçom. Não que gostasse particularmente da bebida, mas não parecia certo destoar daquele quadro verde-âmbar, de matiz tristonho, tabaco e silêncio. O samba entoava agora a voz de um negro lamurioso e, à medida que o balcão ia se enchendo, o resmungar foi dando lugar ao silêncio. Logo o espaço ficou apertado e os cotovelos começaram a se tocar. Sentiu-se tomar por um conforto de sofá velho, dividindo silêncios e fumaça e goles verde-âmbar. Dividindo algo mais, muito sutil para ser precisado, mas o suficiente para ser algo. E isso era o suficiente.

O resmungar cedeu completamente no balcão silente. Observando com cuidado, era possível notar um leve embalo, muito tímido, mas ritmado na melodia do samba lento. Primeiro para a direita, depois para a esquerda, já ombro a ombro, casacos se tocando, silêncios se tocando em histórias não pintadas e angústias desbotadas. Algo mais, despercebido, pulverizado no ar, misturado ao cheiro do fumo queimado.

Ficou ali uma, duas, três horas. Bebeu a última garrafa ainda mais lentamente que as outras. Tirou algumas notas da carteira, colocou no balcão, com a garrafa verde por cima. Levantou-se do banco. O som do roçar dos casacos pareceu despertar os homens do balcão, como se um vento frio acossasse o ombro desprotegido. O embalar cessou. O negro triste cantava sozinho. Os outros o olharam com uma pincelada de resignação e, mudos tornaram a olhar o balcão. Com um suspiro, deu as costas, meteu as mãos nos bolsos e foi deixando a luz amarelada, as garrafas esverdeadas, ouvindo às costas o resmungar baixinho querendo recomeçar. Como acontecia todos os dias.

Percorreu o corredor azul sentindo uma falta de cada lado do corpo. Sentiu os ombros frios ao chegar à rua. E aquela estática de coisa suspensa no ar. O sinal piscou amarelo na noite de luzes brancas, postes verdes e céu escuro. Baixou a cabeça e tornou a percorrer a cidade cinza a caminho de casa.

4 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

Um texto q pintou na cabeça e eu não tinha como nomear. Daí ficou esse título, meio pastel.

Anônimo disse...

Gostei bastante

Anônimo disse...

O pastel fica do lado, apenas. De resto, foi muito bom poder reconhecer cada cena, como num filme.

Marina Melz disse...

"..., à medida que o balcão ia se enchendo, o resmungar foi dando lugar ao silêncio". Do-caralho.